Índice de Capítulo

    “‘Niad nedheren ri draverakerter!’, ela dizia muitas vezes. Desejar a morte de uns não estava nem perto das coisas que já fizera.”

    Izandi, a Oniromante

    Margaridas, crisântemos, petúnias, lilases, tulipas altas e calêndulas e seus cheiros circundavam sua vista. Os botões fechavam, ela via, e as belas flores balançavam com o vento inquieto. A pradaria estava ficando escura, ela via. A grama meneava para trás, ela via. Havia um ribeiro fraco que puia as flores com respingos como chuva, como lágrimas, ela via.

    O céu ficava taciturno, ela via. As águas chiavam, ela ouviu. O vento chiava pelas plantas, ela ouvia. Ouvia uma voz doce, uma voz de menina, tão macia e deleitosa que seu coração sentira alívio de dezenas de dores.

    Ah! Nifař, Nifař, Nifař! Pássaro do amor!

    Mas não havia pássaros no céu, viu. Nem nas árvores, pois não havia árvores ali. Nem animais. Não via insetos voando; era noite, já era noite, e parecia que seria uma noite sem fim, ela pensou.

    A Lua de Prata estava alta; reluzia. Lembrara das aulas da Ciência dos Astros. Dizia: a Lua de Prata refletia o Sol. “Então por que a Lua Branca não era tão luzidia quanto? Mas as estrelas? Não havia cabimento na teoria; não, não.”

    Ah! Nifař, Nifař, Nifař! Do teu bico gorjeia: “Ela canta por mim?”

    Ouviu tropel; mas não via cavalo, não via manada; mas sentia o barulho ao chão, pisar forte de dezenas rumando algum lugar. Ouvia clangor; havia melodia. Um compasso organizado; tud!, tud!, tud! Um traço cinza subiu ao céu, vacilava; era fino ao longe. Tud! Onde estavam as coisas? Sentiu os pés ardendo. “Eu tenho pés?”, pensara.

    Um fulgor atingiu seus olhos. Havia uma parede esmeralda; uma fortaleza inteira sobre um rio — uma cidade inteira sobre um teso, como uma colina grande e alta, cortada. Sentiu o coração arder de dor; pontadas dolorosas, uma mão fervente apertando seu pescoço.

    Torres altas, uma de cada lado do rio; muralhas cercavam como um longo retângulo com ameias longas, altas e grossas, negras como basalto. “Já estive aqui. Detesto esse lugar. Odeio esse lugar. Odeio essa gente. Odeio esse barulho.”

    Ah! Nifař, Nifař, Nifař! Já não há suportar; cederei.

    “Odeio essa música!”

    Mas o que não odiava? Odiava as pessoas que viviam sobre o rio. “Traidores, há traidores aqui; há traidores ali. Traidores da minha paz.”

    Um homem e uma garota e um homem de armadura sentaram na mesma mesa, ela viu. Um era jovem, ela viu. Tinha armadura com ombreiras largas, ela viu. O outro era adulto em aparência e idade, ela viu. Sorria, ela viu.

    O jovem trouxera uma bela ruiva para o mais velho, ela viu. A menina se despiu: alta para os Homens, ruiva, grande em todas as direções. O adulto não se importou com a dança. Conversava com a garota enquanto a dançarina dançava para os três; palavras sujas — fim da paz, da sua paz… e mais de quem? “Eu os odeio, os odeio!”

    Ah! Nifař, Nifař, Nifař! Pássaro do amor!

    Uma floresta cor esmeralda se mostrou aos seus olhos cansados; tanta luz que doeram como se estivesse dormindo há semanas. Amieiros via; nenúfares mortos congelados, boiando no lago ao lado, verde-escuro, cercado por juncos em três direções. Havia uma garota próxima do lago, ela viu. Viu coisas levadas ao vento, pequenas esferas luzentes, brilhantes como estrelas ao céu. Elas vagavam ao redor da menina, que tinha um espadim em mãos.

    Uma mulher jovem estava ao lado da menina, sentada com pés na água fria. A neve ainda estava no chão, mas o céu era o de um final de inverno — cinza, porém sem nuvens álgidas. As esferas dançavam devagar ao redor da menina.

    Antes que percebesse, sentia-se feliz. O sangue pulsava alegre pelo corpo, mas no corpo de quem? “Quem é ela?” Notava a menina vermelha: suas bochechas estavam vermelhas como um tomate; reparou um rapaz não muito mais velho.

    A menina tinha uma voz doce e macia e não escondia isso, como também não conseguia ocultar uma meiguice e arteirice. Abaixou a face e errou o movimento com o espadim, então deixou-se cair no peito do rapaz.

    Ele abraçou-a sem maldade, ela viu. Não existia calor, ela reparou. Sentiu seu coração alegre. Não desgostava do rapaz — e agora com certeza gostava mais. Aquela menina a deixou cheia de felicidade. “Ela está bem. Ela está bem. Está viva, alegre e bem.’

    ‘Minha pequenina.”

    Sentiu uma lágrima escorrer do rosto… escorrer pelas bochechas e pingar ao peito… escorrer — e pingar na barriga. “Está grande. Ah. Estou grávida. Estou esperando meu filho.’

    ‘Eu tenho uma filha. Tenho um esposo. Tenho um filho. Tenho uma casa. Terei mais um filho. Onde eles estão?”

    — Aqui, pequenina, venha — disse uma mulher. Conhecia a voz? Buscou na sua cabeça; viu coisas, mas não sabia dizer o que eram. Conhecia a voz?

    Tudo que via era um óculos na face formosa da mulher: óculos, olhos amarelos e uma cabeleira caril.

    — Quem…

    De chofre a mulher correu. Sentiu-se compelida a correr. Deu-se conta de que havia montanhas ao seu redor. “Não, são colinas”, lembrara. “As montanhas estão em todo lugar, em toda parte. Os pântanos estão sobre os montes.” Pisou numa poça, esmagando um nenúfar e saltou. Sentiu-se suando.

    Estava seguindo os passos da mulher, ela reparou. Estavam rasos sobre o cascalho das pedreiras, sustentadas por aureiras, amieiros de madeira vermelha e freixos, flendeiras e rasgadeiras tortuosas. Reparou um lugar; seu coração se encheu de ânsia e ira.

    Uma cidade do topo da colina mais alta, que descia em suas casas até a falda, então se reerguia nas colinas menores ao redor. Ela não lembra, ela não lembra, disseram. Fez escolha tola, não lembra, não lembra. Reparou pessoas na cidade. Eles eram muitos, de feições angulares e corpo altivo. Sua pele não era branca, reparou, nem morena ou como a da mulher que cuidava da menina à beira do pântano. Assim como a sua. “Quem são?’

    ‘Não, eu os conheço.”

    Reparou uma menininha correndo pela cidade. Ela era menor do que todos ali, e de todas as pessoas, ela era a única que encostava os pés inteiros no chão, e suas mãos estavam ensanguentadas. Havia autoridades correndo atrás dela, porém, mesmo que muito menor, era mais rápida.

    “Não! Não!”

    A mão da menininha ficou dourada, e um dos que corriam atrás dela caiu. Os outros se assustaram; sangue fluiu pelo peito aberto. A menininha subiu no topo de uma grande torre, escalando com mãos nuas. Ela se sentou, acomodada. Sua mente titubeou. Ela não lembra, não lembra. Então ouviram trombetas.

    Num segundo, os muros da cidade tremeram e cederam; um lobo, alvo, um lobo destruiu os muros. Tud!, tud!, tud!

    “Não, não!”

    Ele tinha um manto. Verde, balançava um manto verde, luzidia estrela nas costas!

    A bandeira verde estava chiando, o vento a balançava. “Sangue, sangue… tanto sangue…’

    ‘Eu não quero sonhar com isso! Não! Não! Meu lugar é com meus filhos e esposo!”

    Haaahffff! — arfou, tão alto que fora mais um grito, e assim que parou, suas costas bateram contra a macia cama. Assim que o lufar cessou, sentiu sequidão na boca, como se dos lábios à garganta fosse um deserto.

    Uma veleteto tinha luz forte configurada, pungindo contra seus olhos a menos de um palmo do seu rosto. Conhecia o lugar, conhecia o teto que mal conseguia ver. As paredes de tijolos velhos e austeros do castro dos Beesh, sem a tinta velha e ressecada, era o lugar que jamais esqueceria. Mexendo primeiro os dedos, tentou retirar a veleteto de tão perto, mas seus dedos mal se mexeram. Gemeu de dor; sua voz mal saindo.

    Uma coisa grudenta estava na sua pele, algo como um óleo viscoso e pesado, apertado por alguma coisa que prendia o calor no seu corpo. “O que eu faço aqui?”, questionou-se. Não era verão. Não recordava Hydele doente.

    Sua filha deveria estar saudável e bem, com o frio do inverno a deixando mais viva — como sempre acontecia em todos os invernos. “Não, não; Deuses, ela deveria estar bem. A chegada do rei e filhos atrasou seu Segundo Batismo, mas ela… ela…’

    ‘Eu a matei. Atravessei sua barriga com fogo…”

    Os dentes tremeram como a terra em um terremoto. Fechou os olhos, sentindo uma lágrima escorrer pelos olhos, que logo viraram duas, então muitas, despencando como uma cachoeira cansada, vertendo suas últimas águas antes da sequidão.

    Sentia o coração doer; pulsando, querendo quebrar suas costelas. Fungou, com o nariz seco, uma, duas, três… Uma sombra, um negrume cobria sua mente. Como se por punição divina, as memórias lhe vieram de uma vez só: a voz doce da filha e sua arte na harpa, a canção dolorosa — vários caindo ao chão, vítimas de um ar verde…

    Ter usado magia contra sua única filha viva, sua amada pequenina…

    Ela não lembra, não lembra!, ouviu. Aquela voz maldita na escuridão do seu sonho ressoou mais uma vez. Willmina rangeu os dentes.

    — Senhora Willmina — ciciou uma voz terna e preocupada, e Willmina então reparou que não conseguia ouvir direito. Não conseguia enxergar quem era; mas a pessoa desligara a veleteto, e pôde enfim abrir os olhos sem sentir dor.

    Estava vestida em uma libré branca clara, que cobria as pernas e braços e cabeça. “Cile”, pensara. “A medicada desta vez sou eu.”

    — Você finalmente acordou, senhora Willmina — ouviu joelhos baterem no chão; a pessoa fungou. — Finalmente…

    “Não é o cile”, concluiu. “Ele não choraria ao me ver. Quem é? Por que trata uma assassina de filhos?”

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