Capítulo 36: Sangue de mãe (2)
“‘Niad nedheren ri draverakerter!’, ela dizia muitas vezes. Desejar a morte de uns não estava nem perto das coisas que já fizera.”
Izandi, a Oniromante

Ela fungou mais uma vez, então se levantou, se recompondo tão rápido e seriamente que o coração de Willmina se assustou.
— Consegue falar, Senhora Willmina?
Willmina tentou falar, todavia a garganta seca como barro frágil depois de dias ao Sol a fez sentir dor. Focou os olhos. As silhuetas começaram a se juntar, pouco a pouco. Dois biombos a cercavam pelos lados, e detrás de si, alguma luz descia pela janela e resvalava sobre a ala do medista e suas costas: uma luz lânguida, tão opaca que parecia não querer iluminar nada.
Reparou estar coberta por algo mais branco do que sua pele. “Algo me aperta”, pensou. “Algo macio sobre algo duro e outra coisa viscosa e nojenta.” Reparou que sua barriga estava muito maior, coberta também por algo — e por um cobertor. A garota, finalmente percebeu, saiu de perto foi à direita em um passo organizado.
Tentou mover as mãos mais uma vez. O primeiro segundo foi fácil, como se houvesse muita energia sobrando, porém assim que moveu pouco mais que um centímetro, foi como se os braços fossem feitos de pedra. Despencaram, e sentiu dor e exaustão de dias montada sobre um cavalo — mas sem o prazer do vento à face.
— Finalmente acordaste, baronesa — disse uma voz neutra e rouca. Ouviu um estalo e mais um par de pés se movendo. — Tens que agradecer à garota, mas, por agora, peço perdão pela intrusão.
A garota se aproximou, carregando consigo um jarro com algo fedorento. Cile Henri soltou a bengala. “Desde quando ele usa uma?” Ele retirou alguma coisa dos bolsos da sua toga, então derramou todo o conteúdo no jarro.
— Me perdoa pela intrusão, senhora Willmina — disse a garota, pegando-a pelas costas e pernas para pô-la erguida.
O cobertor foi tirado vagarosamente, e à medida que observava-o, Willmina sentiu a garganta fechar e um frio enregelante mordê-la até os ossos. Estava inteira enfaixada. Seus braços estavam amarrados à talas. E o pior de tudo… estava esquálida, magra como um cadáver… Mas sua barriga continuava enorme, como deveria ser. “Quanto tempo? Quanto tempo fiquei dormindo?”
Enquanto seu coração descompassava ainda mais, o medista misturou o conteúdo do jarro com todo afinco que seus anos puderam permitir. A menina ruiva abriu a boca de WIllmina com muito cuidado e delicadeza, então o cile despejou um copo do caldo de gosto forte, que caiu vagarosamente dentro da garganta da mulher.
— Perdoe-me pela falta de delicadeza, Vossa Graça, mas é o que tens para agora. Beber água pura ou comida sólida neste estado pode fazer mais mal do que bem.
Fechou os olhos. Tantas vezes o homem de olhos de noitibó tinham curado a sua… sua… Abriu os olhos como se fossem verter sangue. “Eu… Eu a dei o sangue! Dei o Sangue para ela, pois a… eu a matei… Matei minha filha… Onde ela está?! Já a ascenderam?!”
Tentou abrir a boca, tentou mover-se e tentou mais dezenas de coisas, mas ela não aparecia; lágrimas não saíam dos seus olhos mais. Estavam cansados. “Estou cansada.”
— Ela está bem — falou o cile, sem hesitação na voz. — Saiu desacordada e antes de você, saudável… na medida do crível. Sei aonde ela vai, mas não onde está. É o que tenho e posso dizer.
“Como assim ‘tenho e posso’?!”
Tentou grunhir — uma irritação forte na garganta a fez parar. Sentiu um toque suave da mão luvada sobre sua mão esquerda. A garota se aproximou; as cores se juntaram, ainda que pouco, como se uma pintura de lama feita por uma criança, mas fora o suficiente para reparar em quem era. Mais uma vez o cile a alimentou com o caldo.
— Ela está bem, senhora Willmina. Hydele estava muito bem, ainda que dormindo, quando foi embora a pe… — calou-se Nianna. Pôs a mão na boca, ocultando o pouco do rosto que ainda mostrava. — Estava muito bem de saúde. Até as marcas das sangrias sumiram, e ficara até um pouco mais alta! — Abriu um grande sorriso no rosto encoberto. — Se a trás felicidade, ela também parecia mais forte. Até a cor da sua pele melhorou um pouco. Está mais parecida com a senhora!
Sentiu lágrimas escorrendo na face. “Ah… que felicidade… Deuses, agradeço… Agradeço! Rogo-Lhes para que a protejam ainda mais…”
— E tudo isso graças ao seu tratamento, Nianna — o cile encostou a mão no ombro dela. — Deve agradecer esta menina, baronesa.
“O que ela fez?”, queria perguntar, mas no fundo sentia o coração calmo o suficiente para que não se importasse. Estava em alívio… e sentia uma pequena coisa lá também. Um sentimento estranho; uma batida forte no peito, descompassada, como se sentisse o coração no seu ventre batendo.
— Deveria ir estudar em Ocas Ciled também, senhorita Nianna. Seu talento para a Ciência da Medicina não deve ser desperdiçado.
“Também?”
— Não me parece boa ideia — ela respondeu. — Serei a rainha de Aarvier em breve. Talvez mais próximo do que deveria.
“Mais próximo?”, pensara, imediatamente lembrando-se do rosto acinzentado do rei Rheider Bloemennen, o Flor do Dragão. Ouvira certa vez que fora chamado assim por deixar seu dragão-real solto a bel prazer, invés de dormindo no Ninho-do-Dragão. E, por causa disso, toda vez que saía do seu castelo, o dragão o seguia.
“Um Draconeiro doente de tal forma…” Draconeiros respiravam um ar árido e fagulhas de raios das nuvens. “Como um homem assim ficou doente?”
“Me pergunto se funcionaria com Sua Majestade”, pensara Nianna. Se o devolvesse a saúde, com certeza seria retribuída. A generosidade do Flor do Dragão era conhecida. Ainda que por um instante, lembrou-se de quando sua mãe ainda vivia.
Rei Rheider tinha vindo ao Ducado Beesh, ficando no Vale, e por causa disso viajou para fora do castelo pela primeira vez. Conheceu a noiva do irmão graças a isso, conheceu Silale e Howan Bloemennen e, acima de tudo, viu o coroado rei de toda Aarvier dar todo o seu prato para um mendigo que passava próximo.
— Não fiz nada demais — ciciou ela. — Só vi algo e juntei com outro.
— E rendeu um remédio maravilhoso; melhor! — Bateu a bengala no chão. Willmina ainda não via os detalhes do rosto, mas tinha certeza que havia um cenho franzido de fúria no rosto cheio de olheiras. — Uma forma de remediar melhor!
Willmina piscou e mexeu os dedos. Sua barriga grunhiu baixinho. Subitamente, sentiu dor nas mãos, como se houvesse calos estourando lá. “É o remédio? O tal tratamento?”
— Sei que tens conhecimento sobre estas coisas também — ouviu a barriga de Willmina grunhir —, baronesa.
Cile Henri parou. Mexeu na gola da sua bata de medista e murmurou. Nianna mexeu a cabeça e atendeu, saindo de perto das duas. Ele alimentou a mulher mais uma vez, então a pôs um pouco mais deitada, e retirou o que restava da coberta. Nianna logo se aproximou, trazendo consigo novas ataduras de lã, um jarro e uma tesoura.
Com as mãos cálidas, o medista puxou uma das ataduras no ventre de Willmina. Ela não resistiu, por mais que a coisa viscosa entre a atadura e a pele estivesse tão impregnada que pareceu estar arrancando pedacinhos da sua pele. O medista cortou verticalmente, e Nianna desfez os nós lentamente, retirando as tiras encharcadas e grudentas com afinco e delicadeza.
Enquanto se assustava com o corpo emagrecido e esmaecido, seu ventre estava grande, saudável. O umbigo estava protuberante, assim como fora com sua pequenina Hydele e seu amado Marneigg; a pele estava mais pálida, porém com certeza a barriga estava maior do que na última gravidez. “Mas da última vez foram gêmeos.”
Fez um sorriso cansado…
O medista porém tinha o rosto enegrecido.
— Normalmente não diria isso para alguém que acabou de acordar de dois meses desmaiado, principalmente para uma gestante, Vossa Graça. No entanto, é um caso duro. Sua filha não está mais aqui: partiu, ainda em sono, com a mestra de armas Jenna e alguns responsáveis indicados por mim e pelo duque. E, por vários momentos, Vossa Graça, seu corpo tentou abortar a criança… mas ela sobreviveu, quase como se tivesse devorado seu corpo. Fiz um total de trinta e um partos seguros e acompanhei o crescimento de mais de cinquenta gestantes, mas esta é a primeira vez que vi isso.

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