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    “Naquela noite, a pequenina e gentil garota deu o primeiro passo em direção da morte — testemunhar a fealdade do mundo.”

    Izandi, a Oniromante


    O vento forte e primaveril tentava retirar o toucado branco de sua cabeça, balançando as agora duas tranças cor de cobre. Antes os usava por achá-los belos. Agora, porque não queria ver a marca na sua testa. O que sua mãe diria se a visse com uma… marca tão estranha? Uma tatuagem? “Mamãe dizia que nunca precisaria de maquiagem por já ser perfeita”, pensou, todavia uma tatuagem pareceria passar dos limites.

    A grama sobre seus pés descalços era fina e fraca, pouco crescida, sombreadas pela formação rochosa salientada. A grande rocha era como uma parede erodida com várias rachaduras, exibindo tons diferentes das pedras e das luzinhas marrons e leitosas, que quase não se mexiam. Conseguia ver diversas ruínas cobertas de musgos, cogumelos congelados e urze morta, por quase todo o pântano abaixo.

    O irregular talude onduloso seguia a cair por mais quilômetros em direção do seu norte e leste; mas no mais longe do oeste, conseguia ver montanhas acidentadas e assimétricas em um plano quase reto, coroadas por densa neblina e salpicos de nuvens pouco pesadas. E por lugar nenhum via o castro dos Beesh ou o Olho que Chora, nem sua família.

    “Mas mestra Jen está, e meu Cei também.”

    Nenhum nome assemelha-se à beleza do seu, a dissera, beijando a costa da sua mão. Ele diria a mesma coisa ao nome “Hydele”?

    Alto lá! — brandou seu Cei Justin Witernier ao séquito que se aproximava debaixo do talude, e Hyd escondeu-se atrás da perna da mestra. Sentia mais apoio na coxa musculosa do que com sua bengala.

    A noite estava caindo. Uma nuvem de poeira e terra era levantada pelo tropel de duas onzenas de cavalos rápidos e do grito de homens cansados e correntes clangorando. Cei Witernier deu um passo em frente, tocando um berrante de aviso, e o som estridente ecoou pelas árvores e orelhas. Hyd gemeu de susto, tapou as orelhas e focou os olhos.

    Os homens tinham cotas de malha manchadas de lama e sangue, mas alguns tinham tabardos com um brasão: o Cervo Atravessado dos Asseliers.

    — Abaixem as espadas — disse Hyd. — Abaixem as espadas! São os Asseliers!

    Jen olhou-a por baixo do peito, forçou os olhos mais um pouco e logo deu as costas para a hoste.

    — Levantem um estandarte do duque! — ela mandou. Um dos homens de armas obedeceu e trouxeram consigo um estandarte com o brasão dos Beesh: o Olho que Chora. O vento o fez oscilar; porém a hoste viu e diminuiu o passo.

    Um deles não; levantou o braço para que os outros parassem, e partiu em frente — estava sujo de sangue e lama nos cabelos. Hyd desviou sua atenção: viu vários homens andando a pé, pálidos e molhados de exaustão, acorrentados a homens nos cavalos. Era um loiro magricelo; um obeso cuja banha chegava nos joelhos; um corcunda que… um corcunda que parecia seu pai…

    Engoliu em seco.

    O cavaleiro se aproximara mais, até estar perto o suficiente. 

    — Salve! Um bom entardecer, donzelas — cumprimentara o rapaz, sobre seu alazão castrado. Ele logo saiu e recebeu um cumprimento de Cei Witernier, prestou uma vênia e uma piscada para Jenna e continuou: — Sou Cei Erhle Asseliers, filho do conde Gunter Asseliers, mas não tão cheio de energia quanto meu velho — zombou. “O bastardo do Pomar Branco”, pensara Hyd. — São mandados pelo duque, nosso suserano Radan Beesh, ou lestinos mentirosos?

    — Sou Cei Justin Witernier, filho de Cei Hunk Witernier, ex-cavaleiro da Guarda Real e há pouco nomeado cavaleiro da donzela Maribeyte Bloenn por ordens de Sua Majestade — fincou sua espada no chão. — E o nome do Duque do Sul é Theolor.

    — Nem… — ele disse, coçando o queixo com poucos fiapos de barba castanha quase loira. Cei Witernier retirou da sua libré um papel enrolado, tanto selado com o Pavão Coroado quando assinado com o nome do próprio rei. Assim que o leu, o Cei Asseliers quase teve os olhos fulgurando fogo e susto.

    Deu um assobio infantil e abriu um sorriso que mais parecia uma linha reta.

    — Não sabia que tinha gente tão importante por aqui… — fitou Hyd de soslaio, sorrindo. — Certo. Rapazes — gritou —, vamos para mais longe e montar acampamento!

    — Não há porquê — interpôs o de nariz vermelho. — Vejo que vós estais cansados, mas nós não ficaremos aqui por muito mais tempo.

    — Tem certeza disso? — Fez um bico no lado direito da boca. — Não quero assustar a senhorita Bloen com nossos prisioneiros.

    Hyd deu um passo à frente. Estava arfando e com suor sujando o toucado. “Não posso me assustar”, pensou “, pois serei uma maga de guerra.” Seus olhos caíram para suas pernas e sentiu a língua secar. “Maga de guerra? …O quão… rápido aceitei isso?”

    Respirou fundo, balançou a cabeça para espantar os pensamentos e respondeu:

    — Não há problemas, senhor Cei — afirmou. — Não tenho o que temer com tantos cavaleiros. Também há espaço — fitou os acorrentados; de novo seus olhos bateram no corcunda. — E nós sairemos em breve…

    — Ótimo, então! — Ele apertou o próprio ombro, mexendo o pescoço para estralá-lo. — Bem que precisávamos de alguém que soubesse escrever! Ah! os Deuses são muito bons mesmo!

    O castanho se aproximou de Hyd e abaixou-se, cavalheirescamente. A garota cedeu sua mão, e o castanho e jovial Cei a beijou vagarosamente.

    — Espero não trazer nenhum problema, bela donzela.

    — Espero que não traga nenhum problema à minha Senhorita — falou Cei Witernier, fitando de soslaio os prisioneiros. — É realmente necessário tratamento assim para aquela gente? Parecem à beira da morte.

    O Bastardo de Pomar Branco semicerrou os olhos e sorriu. Deu as costas para o cavaleiro e Hyd, então voltou ao alazão e cavalgou até seus homens. Imaginou a garota que ficariam lá embaixo por pouco tempo, mas não subiram mesmo depois de alguns minutos. Jen a guiou de volta à tenda.

    Hyd encontrara forças para voltar a andar sozinha fazia alguns poucos dias, mas ontem tentara brandir o espadim que seu pai fizera. Jen havia trago-o consigo, junto dos calções-saia que sua mãe fizera. A camisa e colete de lã e couro e os calções-saia estavam dobrados sobre sua cama, junto com o óleo que passara nas mãos após o treino. Seus dedos doíam.

    “Mas é melhor do que não fazer nada.”

    — Mestra Jen — disse Hyd —, por que aqueles homens estavam acorrentados?

    — Eu não sei — deu de ombros. — Mas não me parece mal motivo. Ontem vi um filete de fumaça subindo da direção onde tinha uma vilazinha conhecida, e eles vendiam ótimas galinhas…

    “Eles também estavam ensanguentados…”

    — Espero que não tenham feito mal a ninguém.

    — Também espero que sim — disse a mestra, abaixada e com um sorriso perolado.

    O número de fogueiras do acampamento aumentou de uma para seis quando Hyd acordou de um rápido cochilo. A noite já tinha chegado, cobrindo a terra com seu domínio escuro, os jogando em uma terra fria escondida atrás das árvores — mas à Hyd, parecia mais cinza claro do que negro, cada cor escura quase tão luzente quanto de dia.

    Nuvens pesadas ocultavam a Lua Branca, enquanto a Lua de Prata luzia mais, nunca parada no céu, movendo-se vagarosamente em direção do norte. Luzinhas vermelhas crepitaram da fogueira, estalindo junto das brasas e então seguindo para longe, e Hyd viu nos homens do Asseliers um monte de luzinhas marrons e brancas enquanto fincavam seus estandartes no chão e levantavam suas próprias tendas. “Quando me acostumei a vê-las?”

    Viu Cei Asseliers segurar a mão de uma serva que não viu chegar — e não somente de uma. Notou mais uma carruagem ao final de onde os cavalos estavam atados, comendo feno ou descansando. Elas prepararam panelas e carne de cabrito; o cheiro de ervas doces, batatas, cenouras e beterrabas cozidas era levado pela brisa leve que era trazida das montanhas ao longe.

    Enquanto elas faziam isso, um dos homens do Asseliers sacou um violino, e o castanho e mais jovem puxou a moça para mais perto de si; o violinista fez um Dó sujo, que fez o lábio de Hyd entortar e o ouvido doer, mas o Cei ignorou e a garota sorriu. Um dos homens do cavaleiro começou a bater desritmado no tronco onde sentava, e outro começou a cantar mal uma música feia.

    Cei Erhle Asseliers tinha um sorriso que pendia entre a criancice e a fase adulta, com um queixo quase imberbe e cabelo castanho-claro (já limpo) refletindo a luz do fogo, como os olhos pouco profundos e castanhos. Vestia um colete de linho com trabalhos simples sobre o peitoral de malha. Mantinha uma espada longa embainhada à cintura, mas sua postura era uma bagunça enquanto dançava com a garota também castanha.

    Feito uma sumagreira fazendo sombra sobre estradas de terra, ficou atrás do violinista lhe olhando o pescoço. “Talvez devesse cantar algo”, pensara, tampando um dos ouvidos. No entanto, ao ver a luz acesa nos olhos dos dançarinos e dos musicistas que fariam um surdo pedir por silêncio, se viu sorrindo também. “Há Berts em todos os lugares.”

    Lembrou-se que mais cedo haviam pedido por ajuda de alguém que soubesse escrever, no entanto, pensou não ser a melhor hora.

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