Capítulo 37: Aos Deuses: os homens (2)
“Naquela noite, a pequenina e gentil garota deu o primeiro passo em direção da morte — testemunhar a fealdade do mundo.”
Izandi, a Oniromante

Procurou por Cei Witernier pelo acampamento, mas não o achou a vista; seus ombros caíram e uma sombra chegou sobre seus olhos. Se aproximou da fogueira onde o Cei dançava e se sentou. O fogo era ruim; estava quente e ardia na sua pele, e olhá-lo fazia que uma náusea. Sua vista enturvava, percebeu; as silhuetas dos dançarinos e do violinista ficaram escuras, falhas.
Percebeu as luzinhas vermelhas dançarem forte; e nunca tinha as visto assim, oscilando na sua cor. Subiram na fogueira como brasas, num momento vermelho forte, noutro um rosado fraco; respirou fundo, percebendo que não estava respirando desde então… De repente, viu os olhos presos nas celas de madeira, escondidos ao fundo do acampamento, sem fogueira, sem nenhum dançarino ou cantor.
Viu luzinhas brancas vagando pelo ar, oscilando para um branco ainda mais forte; e, diferente das outras, se movia muito mais rápido do que o normal. Como se estivessem seguindo um caminho… Garota, ouviu. Garota…, ciciou o vento; a voz rouca, rouca e profunda, cheia de cansaço e sequidão. Quando se deu conta, os pés estavam formigando; formigas pareciam caminhar sem sair do lugar.
Estava na metade do caminho até os prisioneiros.
Garota, sussurrou no seu ouvido. Rapidamente virou o rosto: doze celas para doze homens de pé e acorrentados com ferro nos pés e braços, espalhados quase como uma parede de corpos tristes. Um deles estava roendo os dedos; outro estava tão ensanguentado que parecia mais tisnado do que Jenna, e nele o sangue tinha secado ao ponto que rachava como um tecido rasgando ao se mover.
Outro tinha uma flecha atravessada na barriga, e a segurava pálido, olhando para o céu.
Hyd fez o Sinal de Ilasis.
“Que os Deuses lhes sejam bons.”
— Ei, melher maldíta! — grunhiu um com o queixo ensanguentado e seco, com um cataplasma amarrado no ombro. Hyd engoliu em seco e deu um passo falho para trás, sua bengala furando o chão molhado de neve derretendo.
— Hah! — grunhiu outro, suado e sem um dos braços. — Nos tragah algo!
Sentiu a mão da bengala fraquejar e a garganta secar.
Suor esquentando as costas.
— Querremus algo pra cômer! — bravejou um com uma cicatriz horrenda, tentando juntar as mãos nas grades, mas os braços tinham feridas fundas e frescas demais para isso. — E beberr!
— E-e-eu… — pigarrou. Cerrou a mão livre. “Eles merecem alguma coisa. Estão feridos e com fome.”
Reparou o corcunda com o olho fixo em si, arregalado. Era de um amarelo claro, alaranjado… Hyd engoliu em seco e vacilou a mão da bengala, quase a soltando. Uma gota de suor escorreu pelo vestido e desceu até seu calcanhar. Aquele homem tinha um queixo pontudo e nariz aquilino, com várias cicatrizes no pescoço e no rosto, e seu cabelo estava tão tacanho quanto uma ovelha nunca tosada. Um dos olhos estava coberto por um tapa-olho de couro, sujo de sangue seco; mas do ombro direito, torto, parecia mais ter virado uma segunda cabeça, enquanto o esquerdo não parecia ter forças para sustentar qualquer posição que fizesse, ainda que apoiada em um galho quebrado e velho.
— Garota — ele chamou; um soprano agudo e cansado. Foi-lhe como… Havia luzinhas brancas saído dele, notou Hyd. — Garota.
— S..Sim…
— Nos traga algo… Não comemos nada desde a manhã.
Hyd piscou e girou os calcanhares. Um dos aprisionados deu um grito agourento enquanto ela ia. Chegou em uma das fogueiras cheia de suor, e Cei Asseliers fechou o rosto assim que a viu.
— Por que ajudá-los? — perguntou ele.
— … — encolheu os ombros. Sentia algo estranho; as luzinhas brancas estavam farfalhantes demais, muitas demais. Nem a fogueira, que tanto libertava as vermelhas, conseguia dominar a cor branca ao redor de suas brasas.
Observou sua mestra por trás do ombro. Seu rosto estava rosado, e violinista tinha a mão sobre sua coxa e outra sobre uma bebida. Hyd corou.
— Certo — riu Cei Ehrle.
Hyd percebeu os próprios ombros recuando ao ver as sobrancelhas planas do Cei. Guardou o pensamento no seu coração enquanto esfregava uma mão na outra.
Não durou muito para que uma das servas entregasse uma panela menor, cheia de uma sopa que fedia e borbulhava.
— Eu vou com você, senhorita Maribetye — falou o Asseliers, estralando os dedos, com um pedaço de osso na boca. — Não posso deixar alguém tão importante chegar perto de gente podre assim. Odeio espiões.
— Agradecida, Cei… — Uma sobrancelha saltou. — Espiões? — perguntou, sua boca abriu e fechou várias vezes depois que disse isso. — Não são dissidentes?
O Cei lambeu o topo do lábio.
— Ah, eu duvido muito. — Pôs a mão no pomo da espada. — Nunca vi aqueles caras na minha vida, e conheço quase todo mundo no território do meu amoroso pai. Esses homens todos ali são meus; eu que decido quem vai receber a sopa. — A levou até muito próximo dos aprisionados, com dois homens seus segurando a panela com sopa, mais dois com flechas retesadas e seu escudeiro, um garoto mais jovem, mas bem mais alto do que o Cei. Assim que estava sob a sombra das jaulas, falou: — Agradeçam a bondade da senhorita Bloen aqui. Se não fosse por ela, os deixaria com fome.
— Mi dê isso! — bravejou o de braços feridos. Hyd fitava de soslaio o corcunda, que tinha o único olho parado, travado nela.
Cei Erhle Asseliers pegou uma tigela e encheu de sopa. Um sorriso saiu da boca e seus lábios ficaram retos, assim como as sobrancelhas, escurecidos feito uma noite só de nuvens. Hyd girou o anel no seu dedo. “Não gosto disso”, pensara. “Deveríamos…”
No outro segundo, o dos braços feridos gritou de dor. Hyd cobriu a boca e sentiu ânsia de vômito.
— Ah, não me diga! Sério que disse o nome do meu pai?! — bateu entre as barras com a tigela. “Onde está meu Cei?!”, gritou Hyd. — Pra quem você trabalha, cacete?!
— Du-duque! — gritou o sem braço. — Nos trabalhamus pro duque! Ele mandou a gente fazer essas coisas…
— Ah!
O Cei cobriu a boca. Ele voltou à panela no chão, encheu uma tigela com sopa, então retornou. O sem braço abriu um sorriso desesperado enquanto o Cei passava a tigela por entre a grade. Uma gota caiu no seu pé, porém sequer piscara.
— Como comerei? — disse o aleijado, com um pouco mais de cor no rosto.
— Quem disse que vai comer? — falou o Cei, sorrindo. No outro instante, bateu na traseira da tigela e despejou tudo no pescoço e queixo do aprisionado. Ele gritara e dor e tentou se abaixar, porém as correntes o mantiveram de pé. Hyd engoliu em seco e virou o rosto; e o corcunda estava na sua vista mais uma vez.
Ele suspirou.
— Foram os Hoones — afirmou.
Cei Asseliers voltou o rosto para o corcunda. Seu escudeiro ficou com o rosto empalidecido e sacou sua espada no mesmo instante, olhando para a lâmina como se procurasse algo. Já Hyd sentiu o coração disparar. Não ver o corcunda nem piscar com o Cei se aproximando com a espada desembainhada deixou sua garganta dura.
— Meu senhor! — falou ela ao Cei, em voz de grito. — Não o machuque, por favor!
— Ele disse algo bem feio, minha senhorita.
— Foram os Hoones que nos pagaram — disse de novo. Hyd fitou as luzinhas que fugiam do corpo do homem; eram um branco leitoso, que se movia de um jeito tão… regulado… — Dez lírios de prata pelo trabalho, mais dois de prata pra cada plantação queimada e um de madeira pra cada homem com mais de dez anos morto.
O Cei ficou de olhos arregalados. Os outros aprisionados mexeram a cabeça em sinal de sim.
— Garota — falou o corcunda.
— Você não tem direito a falar com sua salvadora, imundo! — bravejou o Cei, mirando a espada no pescoço do corcunda; Hyd não viu uma luz, um fogo sequer aceso nos olhos ds dois.
— Garota — continuou. — Quem é seu pai? O conhece?
— Eu mandei se calar, canalha! — Virou o rosto para trás, enfurecido. No outro instante, o coração da menina disparou ao vê-lo atacando com a lâmina. Arrancou lascas da grade e saltaram faíscas pelo metal.
Hyd virou o rosto. “Está doendo”, pensara. Sentia o coração tomado de dor como o de uma mãe vendo um filho ser castigado pela maldade dos homens.
— Garota — chamou o corcunda, com um sangue escuro escorrendo pela bochecha. — Você conhece seu pai?
— Eu… — Ergueu o rosto. — Sim, eu conheço meu pai…
— Senhorita! — bravejou o Cei, cerrando os lábios e dentes.
— Qual o nome dele?
— Ereken Zwaarkind, senhor. — Juntou as mãos no regaço e sentiu a nuca pesar.
A menina deu um passo a frente, apoiada na bengala. O corcunda abriu um sorriso por um átimo de segundo, mas o fechou, contorcido como uma minhoca se mexendo.
— E sua mãe? Sua mãe?!
— Ela se chama Willmina, senhor…
— Willmina… Will…mina… — Abriu um pequeno sorriso no rosto, como uma pequena fresta entre escamas da casca de uma árvore. — Ah, sim… Um nome raro… — E sorriu, e os vaga-lumes brancos avermelharam.
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