Índice de Capítulo

    “Venha, Ó, Fogo Pálido!

    Venha-nos e nos dê um rei!

    Venha, Ó, Chama Bruxuleante!

    Venha-nos e nos dê um rei!

    Venha, Ó, Negra Chama Correta!

    Destrua nossos inimigos

    e nos dê O Rei!”

    Izandi, a Oniromante. Excerto de “Mistérios da Pedra de Gelo”


    Achava o perfume de mel, das Ilhas Quentes, fedorento. Os óleos pesados e densos pingavam nos ombros e costas; pior somente quando os óleos eram esquentados pelo pente quente de sua mãe. Faina detestava ambas as sensações; o odor azedo e forte que exalava. 

    Desta vez puseram menos. Não queriam fazer qualquer coisa que pudesse gerar ameaças ou que desgostasse — demais. Sua hora chegava.

    Fitando suas caretas e muxoxos pelo espelho de ferro, se esforçava para não desistir no meio do caminho. Mirta estava sendo mais delicada do que das últimas vezes. Pela primeira desde que fora exilada por seu bisavô, sairia do paço e veria sua terra, a Terra dos Leões. Estava feliz, mesmo que as súbitas contrações forçassem seus dentes a cerrarem. 

    — Só mais um pouco, Oy rassa — falou Mirta, a última Esposa de Deus que vivia entre elas. Apontando a palma da mão para uma escrava, esperou que o último dos óleos fosse-lhe entregue e pôs nos cabelos negros-cinzentos da mestra. Faina fez outra careta. — Está quase pronto. Dará à luz com os cabelos e face tão linda que seu filho correrá risco de se apaixonar — brincou.

    Faina mordeu o lábio de cima e se pôs a fitar o rosto de leão na montanha mais alta que já vira, a Bastarima Rundria. O pico transpassava as nuvens; olhos verticais das suas faces pendiam o julgamento sobre o chão congelado, o cabelo juboso e revoltado e rosto branco congelado pareciam ver tudo.  A prova de que os Arrundria eram deuses entre os homens emanava daquela montanha de gelo puro — leoninos nos cabelos e nos olhos, alvos como um inverno impiedoso, gigantes como não eram os Homens. 

    Quase por um instinto materno, Faina tocou a opada barriga. “Vai nascer como eu?”, pensara. Torcia para que não. Desapareça, coisa repulsiva, ele gritara quando a exilou, com a voz rouca de alguém que já estava velho demais. Não estava cansada, mas seus olhos pesaram e cederam à montanha, como se os olhos fincassem na sua mente e os dentes bestiais no peito. Mestiça!, gritara. É uma gato! Saia, desapareça! 

    “Eu apartei nosso sangue demasiado.”

    — Gosta deste, Oy rassa? — Mirta apresentou-lhe um vestido trago por uma escrava, que possuía anéis no nariz e uma coleira de metal azul no pescoço, com uma corrente que bifurcava e cingia os pés. A sacerdotisa dos deuses das Ilhas Quentes ergueu o vestido: era branco, de liéve reluzente e de poucos detalhes.

    — Me agrada, Mirta. — Sorriu. “Ficar triste não é bom. Tristeza atraí os olhares dos deuses corvos e queimados.”

    Mirta deixou o vestido sobre uma arca de madeira envernizada com pus de nevadeira e, assim que Faina voltou seu olhar para o céu quase totalmente escurecido, sentiu o calor se aproximar da nuca. Saltou de chofre como sua gestação não permitia, com o rosto contorcido de susto e um grito afiado, que fez neve próxima saltar dos ramos das árvores.

    “O pente parece mais uma espada!”

    — Não quero ir, desejo continuar aqui. Prefiro congelar!

    — Oy rassa — brandou Mirta, com o timbre e tom de voz que sempre enrubesciam Faina, piscando seus olhos castanhos-claros, mal cobertos pela franja de diminutos anéis castanhos de cabelo —, sei que não sente frio. Nenhum Arrundria o sente, e é de conhecimento comum a todos daqui! Mas graças a Sua Majestade vossa mãe, agora também conquistaram o calor. Então sente-se de volta à cadeira, Oy rassa, e aguente por um momento; a boa beleza dói.

    — Prefiro não ser bela, então — refutou Faina, risonha. Notou sua nuca coçando e virou o rosto para sua mãe, sentada no cadeirão de nevadeira… Aquele olhar de olhos semicerrados fizeram-na tremer. — …Perdão.

    — Sente-se — mandou, e sua filha fez de imediato, esfregando os dedos da palma da mão.

    As quatro chaminés acesas do quarto espirravam estalidos acima; Faina calada ficou enquanto a Esposa de Deus manuseava a arma mortal. Com olhadelas, a leoa com cara de doninha observava os cachos de Mirta e de sua mãe. Não eram daqui. Estrangeiras. Eram mais; sua mãe tinha amigas; Mirta, outras sacerdotisas como ela. “Eu, elas.”

    “Ele não ligava para isso”, pensou. “Aquele homem gostava de mim independente disso. Me trouxe carne de porco, hidromel velho e uma ave, uma tão bela coruja.” Pegou seus olhos fugindo de soslaio pela janela: as nevadeiras já escondiam seus frutos dentro dos galhos cada vez mais densos de folhas brancas e o céu ficava negro de forma gradual. “Será que ele ainda está vivo? Tihimil e Drazis contavam que o sul era cheio de bárbaros e de caras-queimada…”

    — Está cada vez mais linda, Oy rassa! — uma das escravas falou, uma que não tinha correntes e coleiras.

    — É minha filha, mar do meu oceano, pois! Que mais esperastes tu, afinal? — gargalhou orgulhosamente a mãe, com o tom mudando em idas e vindas como o mar que tanto falava. “Pelo mar do Navegador, nem fora todo alisado e já tem minha altura!”, pensara. 

    — Sou filha de meu pai também.

    Auta de Miçia levantou-se e deu um curto beijo na testa da filha. Estudou-a com orgulho desenhado nos olhos; cada contorno e silhueta agora crescida filha, tão alta como jamais imaginou que um Miçia poderia ser. Puxara cada detalhe seu. Não tinha a face dos Arrundria, nem os cabelos, nem os olhos leoninos, mas toda farteza que seu sangue pôde lhe dar.

    — Lembro-me de quando cabias nos meus braços, de quando ficavas a engatinhar por entre os cantos do palácio, fugindo das amas de leite e de mim, e de qualquer outra pessoa. Minha doninha saliente. Bastava que não fugisses às escondidas com aquele bastardo. 

    Faina resvalou o rosto.

    — Vistam-na logo; e você também, Mirta. Nos acompanhará. — Cruzou os braços. Fitou Faina mais uma vez e deu um meio sorriso. — Não consigo entender o sotaque da parteira dos Vladein; deles em geral. 

    Pensara que sua mãe sairia de perto. Escondeu mais a face de sua vista, mas vira os dedos morenos da mãe se aproximarem da bochecha. Sentiu a maciez do toque.

    — Eu te ajudo a levantar.

    Sorriu. 

    — Sou grata, Ay raza. — Agarrou a mão e pusera força; o ventre pesava como uma pedra de gelo-velho. Assim que fora solta, Faina prestou uma mesura servil. Como sua mãe ensinara Mirta, como de praxe, dizendo ser o correto a se fazer de onde viera. Ensinara a todos os servos, escravos e chefes. E detestava ver sua filha fazendo isso, ao ponto de ranger os dentes.

    — …Cresceu, mas o rosto de doninha continua o mesmo — riu, desdenhosa e com os braços cruzados.

    — Herdei da senhora! 

    — E mesmo fora; uma pena que não herdaste os bons feitos e modos de uma recifana bem-nascida!

    — Nem sei onde fica isso, mãe!

    A Esposa de Deus prestou uma longa mesura, rindo calada como um pássaro-de-voz de um bardo. Assim como Auta, tinha a tez amorenada dos recifanos e era baixa, mas se recusava a vestir-se com as peles grossas de baleias que o povo das Ilhas Frias usava para não congelar, pois baleias eram sagradas, protetoras do mar.

    De súbito, sentiu uma pelagem escura e grossa sobre os ombros — o peso dos antebraços de Faina e suas mãos, caídas suavemente sobre o busto azulado do uniforme remendado de sacerdotisa-azul.

    — Eu não congelo, você sim — riu ela, até com os olhões negros e redondos dos Miçia.

    As escravas logo vieram e Faina estendeu os braços. Envolveram o ventre e seios pesados de leite com zibelina e, sobre o resto da silhueta, a liéve confortou a pele e acobertou com frescor. Auta, como de praxe, alvinegra com um vestido branco simples pelo corpo em ampulheta e a manta peluda de pele de cavesão, com penduricalhos de dentes de orca-dentuça brancos como leite de bisonte. Mirta usava as mesmas roupas de sempre, o vestido de sacerdotisa.

    As escravas ajoelharam-se quando as três saíram. 

    Grossos e lapidados caibros de nevadeira, larício, abeto, e zimbro compunham o teto, paredes e assoalho do palácio, com dezenas de lareiras de rochas lisas retiradas dos vales na Ponta Quente, a Goryiya Sveê ao norte das Ilhas Frias. O portão de saída era guardado por dois eunucos enormes, portadores de lanças com mais de meio metro de lâmina; ao abrirem as portas, a ventania que precedia os sete meses de noite jogaram os agora lisos cabelos de Faina para o céu.

    A larga carruagem levada por oito cavesões já era esperada; não era o Chefe Tihimil.

    — Oy rassa, Ay raza, sacerdotisa — cumprimentou o velho da cabeça abobadada e careca, mas com a barba mais longa que Faina já viu. — Vim para as ver, mas esse velho aqui perdeu o fôlego! 

    Mirta sussurrou na orelha de Auta, que sussurrou na de Mirta.

    — Ay raza diz que “sua Faina herdou-lhe bem” — respondeu Mirta, de queixo erguido. 

    — E percebo o quão está certa, Ay raza. — O velho sisudo levantou-se com dificuldades; as camadas e mais camadas de metal, couro e lã não lhe ajudavam muito. — Mas acho que vim em mal momento. Estão de viagem? Sente-se bem para isso, Oy rassa? Soube que a hora se aproxima…

    — Sim, estou muito bem. — respondeu Faina. — É… cansativo, mas estou bem. Às vezes…  Estamos indo para as Ilhas Brancas.

    — Hmmm… Então tomem cuidado, soube que a região está cheia de ursos e lobos da neve. — Tihimil as deu as costas de maneira cortês, como lhe fora ensinado por Auta. — Espero conhecer a criança com saúde, Oy rassa. Tenho certeza de que o Rugido de Lubojacz será em breve, e tenho certeza de que ele quererá sua presença. Ama-as muito!

    Mais uma vez Auta sussurrou, sorridente.

    — Espero que não como favoritas — respondeu Mirta, de forma singela e com um suspirar profundo ao final.

    Tihimil mais uma vez abaixou a cabeça, deu longos passos para trás e montou seu o cavesão.

    — Voltem logo e seguras, e vão com cuidado… A morte é branca e tem seus dentes e machado de neve, dizia o pai do meu pai e o pai dele.

    Auta sussurrou.

    — “Estaremos atentas”, disse Ay raza — respondeu Mirta.

    “Lanças e Dentes”, pensou Auta, de braços cruzados. As três esperaram Tihimil distanciar-se em direção da pisoteada trilha de saída da floresta, então foram para a rústica, mas espaçosa carruagem com cheiro de mel. Auta a detestava: madeira velha, envernizada e mal ornamentada a compunha em todo lugar. Para sentarem, espessas pelagens de lobas e cavesões. As três sentaram próximas enquanto escravas levavam arcas com comida e roupas para dentro, e logo vinte eunucos cercaram a carruagem. 

    Entraram em movimento pela mesma viela que fora Tihimil. 

    Faina sentiu uma contração que a fez gemer e apertar as hastes de madeira e a mão de Mirta. A dor demorou para passar. Como ondas geradas por uma gota, havia se alastrado do ventre pelo resto do corpo. Suava. A Esposa de Deus fingiu que a mão maior não tinha machucado a sua.

    — Quer um bolo de mel, Oy rassa?

    — …Eu… Acho que um bolo de mel com camarão? — Abriu um sorriso. — E… lombo de cavesão bem salgado!

    Mirta riu. Tinham trago pouca coisa além de queijo, carne salgada e mel. A viagem era longa, mas, em qualquer aldeia que passassem, doariam veleiros de comida para Faina assim que a vissem de pé. Foi assim quando saíram da floresta e transpassaram a cadeia de montanhas que as separavam do leste, ao final da noite. Observaram ao sopé do talude uma aldeia com não mais de quinhentos viventes e algumas dezenas de escravos acorrentados. 

    Tinham uma estrada salgada, cercada por uma alameda de casas e casebres ricas em chaminés e braseiros. Toda a plebe se preparava: colhiam frutas e congelavam animais, secavam gravetos e toras e colhiam verniz; as mulheres amaciavam os seios e comiam ervas para alimentar os filhos mais novos. A noite se aproximava e o dia mais quente congelaria a lava dos vulcões no horizonte. 

    Ainda assim, quando chegaram, os aldeões lhes deram leite, carnes secas, peixes e pós de ervas moídas. Se ajoelharam para Faina, e as mulheres grávidas, inférteis e recém-paridas pediram para beijarem seu ventre. 

    As ofertaram uma casa para descansarem. O seguinte dia foi tedioso para as três. Mirta pôs-se a ler os livretos na língua das Ilhas Coral que escondia nas mangas esvoaçadas do uniforme, Auta dormia ou acompanhava-a na leitura. Faina tinha dificuldades para ler as letras da língua-materna da mãe; eram redondas demais, pequenas demais, grudadas demais e tinham tantas regras que desistiu de entendê-las. Sempre ficava com dor de cabeça, mesmo com os truques que a sacerdotisa lhe ensinou.

    Invés disso, poupou esforços e aguentou contrações, olhando para as florestas congeladas cheias de pinheiros e nevadeiras. “Ele está bem?”, se perguntou. “Talvez estivesse com Draziz”, imaginou. O desejou naquela noite. Lembrou do vento e do toque aconchegante da neve, das mãos calejadas agarrando por trás da sua coxa enquanto os lábios se deliciavam do seu suor. Fora mais uma contração quem a acordou, e deixou com raiva. 

    “Lubojacz tem suas mulheres e mais dezenas de favoritas, mas eu não posso ter um homem?”, bradara. Percebeu uma chama de desgosto crescendo no peito. Nunca sentira aquilo pelo primo, somente pelo bisavô, o Rieq, e às vezes por seu pai e Draziz. “Nenhum dos dois veio me visitar. Não me trouxeram nada, flores ou peles…” Mas Lubojacz a visitara. O amava, como o bom primo que era. Quase como se fosse um irmão — um que sempre estava distante.  

    Repousou nas cochas de Mirta. “Por que meu bisavô, o Rieq, perde tanto tempo pensando em mim quando desgosta de mim?” Invés de brancos, tinha os cabelos da mãe. Invés de uma juba, tinha cachos; olhos lilás ou vermelhos ou amarelos, tinha negros e redondos. Invés de alva que se escondia na neve, tinha manchas ainda mais aqui e ali. Se não fosse alta como um Arrundria… “Talvez tivesse me dado de esposa a Tihimil”, riu. 

    Já tentara isso uma vez, mas Auta intervira com o argumento de que não havia sangrado. Se é uma mestiça, Roy Rieq, que sirva as leis do meu povo também. Não se casa mulher que não sangrou. Faina se lembrava com deleite da face nodosa do bisavô se contraindo de ira. Lembrava da rizada controlada de seu pai e da descabida de Draziz. 

    “Draziz também possuía má fama”, pensara. Não foi a primeira vez que fora trancafiada dentro do palácio, porém sempre recebia notícias do tio infame: sempre banhado de sangue, levando patrulheiros da cidade para combater Caras-Queimada, recusando mulheres das Tribos e fazendo bastardos altos de leoninos com as Bárbaros do sul…

    Faina não o detestava, pois sempre foi bem tratada por ele. Recebeu doces, roupas de peixes e até fora ensinada a beijar por ele. 

    Seguiam próximas da Serpente Congelada. Na tarde do segundo dia descansaram em mais uma vila, onde os plebeus a deram dois javalis inteiros e uma veste adornada de metais e brilhoso como escamas de peixes. Comeram guisados e assados de coelhos, com mel de nevadeira e abelha sisuda, cenouras vermelhas e cebolas silvestres fritas. Era, definitivamente, a melhor parte da viagem. Se havia uma coisa que as três dividiam, era a falta de paciência para com viagens. 

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