Capítulo 4: Sob as costas da orca (2)

Nada aconteceu até o quarto dia da viagem. Viajaram, entendiaram-se, rezaram para o Deus-Azul — e somente Faina para os deuses das ilhas, cujos rostos estavam esculpidos em todas as montanhas de. Comeram e conversaram.
As montanhas saíram do seu horizonte, indo para o Sul. A noite já era quase completa; os minúsculos traços do velho espirito Sol perdiam para a neve. “Se fosse para o sul agora, depois das Agulhas, seria pega por algum homem roxo?”, pensou. “Eles queimariam meu rosto também?” A ideia encheu-a de calafrios, ao menos como imaginava que eram.
— Oy rassa, poderia sair de minhas pernas, por favor?
— Será se devo?
— Por favor, elas estão dormentes!
— Mas aqui é confortável!
“Ambas merecem-se”, pensou Auta. “Eis outra que crescera: Mirta. Eras uma gota de água quando subira naquele barco… Que bom que sobrevivera.” Teria sido difícil sobreviver sem saber a língua do lugar. Era uma boa razão para agradecer ao Deus-Azul. Quando as paredes do barco se renderam a tempestade… “Ah, pobre de mim!”
Perdera um príncipe no ventre, um marido e rei para a raiva do mar e três servas que amava desde a infância. “Pobre de mim”, pensou mais uma vez. Mesmo não sendo viúva por muito tempo, ainda tinha saudades de seu Ominel… e de seu Nikol também. Não o via desde que Faina descobriu a gestação e foram exiladas mais uma vez. Bebericou um doce melado do mel rosado, fantasiando com os dois.
— Mãe, Mirta — chamou a rassa. — Que nome devo dar se for um rapaz?
— Ainda não decidiste? — bradou Auta, olhando com desdém para a filha.
— Homens recebem nomes de homens por homens. Não sou homem…
“E nem tenho meu homem.”
De repente resvalou a face mais uma vez. “Como ele era mesmo?”
O pensamento a atormentou. Não o nome da criança — já havia decidido no terceiro mês que se chamaria Sakkonya, se fosse menina —, mas o rosto. “Como era sua face?”, se perguntou. “Abri as pernas para um homem que não lembro do rosto… Fora ao menos bom?” Procurou na cabeça. Repetiu as palavras-chave que Mirta e Auta a ensinaram. Lembrou-se que era loiro. Que era alto. Forte… não se lembrava do resto.
— Ghaa!
— Faina?
Suor pingou da testa e das costas.
Receberam mais comida e presentes nos dois dias seguintes. O caminho que tomaram parava em toda vila que podia, todavia as contrações de Faina pioraram. De sete dias, Mirta passou a imaginar ao menos doze. Quando chegaram a uma vila mais baixa, sombreada pelas colinas abaixo, esperaram três dias inteiros, imaginando que entraria em parto. Não fora o caso. Foram presenteados com os melhores cavesões da aldeia, e os aldeões se ofereceram para levá-las até o fim do caminho.
— Acalme-se e respire — disse a Esposa de Deus. — Não se preocupe com nada, somente aperte minha mão. Vai ficar tudo bem.
E desceram mais, e viram o relevo mudar subitamente. À direita e esquerda, um talude congelado se deformava em subidas e decidas irregulares como ondas do mar. As florestas ficavam mais esparsas, e caminhos de água salgada invadiam a terra por várias direções. Sentiram o cheiro do mar, e no último dia de viagem, a Noite se aproximou tão quanto seu destino.
Viam uma cidade grande, com talvez quatro mil habitantes, cuja estrada estava coberta por gramíneas quase mortas; e a cidade, cercada por paliçadas espinhosas e longas apontadas para todas as direções. Detrás delas via o horizonte: dezenas de blocos de gelo espalhados, e ao mais distante, ilhas de terra que mal conseguia enxergar. Seguiram em passo rápido.
— Alto! Quem vem?! — gritou um homem desinformado, vestido uma túnica peluda e com uma lança de pedra e ferro fundido.
— Arrundria — falou regiamente Mirta, que saíra da carruagem por um breve segundo. Só de ouvir o nome, os guardas abriram espaço de imediato.
As pessoas das Ilhas Brancas, as Bello Ystéa, eram diferentes das da Montanha do Leão, notou Faina. Cobriam-se com pouco metal e pelagem, tinham cabelos mais curtos e loiros e eram mais baixos; mas espalhavam lareiras em todos os lugares como os seus faziam.
A primeira paliçada tinha seis metros, era negra como carvão e grossa o suficiente para uma pessoa morar entre suas paredes. A segunda era mais bonita, colorida com cinza e vermelho, as cores do Chefe das Ilhas; Faina não era tão inocente, mas ficara desnorteada e assustada com a estátua de um homem devorado por um leão branco, com seus órgãos expostos para todos verem.
Moinhos de carvão entre as casas caiadas e rudes soltavam sua fumaça escura, complementando a negridão no céu, crianças mais velhas eram ensinadas sobre a lança, enquanto as mais novas brincavam. As ainda mais novas recebiam o leite de suas mães, e as meninas aprendiam a costurar nas tendas de ensinamento.
“Me pergunto o que terei para ensinar aos meus filhos”, pensara Faina. “Não sei… Não sei de quase nada.”
Descendo na única via, as praias congeladas dispunham de pescadores em botes sobre o gelo fino… e um porto. “Isso não existia aqui!”, brandou Faina em sua mente. Havia placas de madeira bem presas para amarrarem os botes nas estacas, mas nunca houve um porto. Não se construíam portos nas Terras Brancas há mais de seiscentos anos, quando o Rieq Svaor matou seu irmão e cessou as invasões às Ilhas Quentes, e mandou que os portos fossem destruídos e sua madeira virasse parte do seu palácio.
Sua mãe lhe deu um sorriso arrogante.
— Mãe…
— É exatamente isso, minha doninha.
Os coelhos de um vendedor saltavam pelas ruas quando desceram; os moradores ficaram desnorteados quando notaram quem saia e a pedra entalhada nos madeiros da carruagem. Mirta não aguentou e trocou suas sapatilhas por botas, com Faina rindo da situação e andando descalça, como sempre preferiu.
As mulheres mais uma vez fizeram fila para pedir bençãos, e os homens em idade de casar também. Foram muitos, e nenhuma contração veio em todo aquele tempo. Quando finalmente terminaram, foram recebidas pelo filho caçula do Chefe da região.
“Um gato”, percebeu Auta. Era um homem esbelto e espadaúdo de quatorze anos, dono de curtos cabelos loiros esbranquiçados e olhos vermelhos, vestido com uma túnica cinza e vermelha adornada com setas de aço abotoadas. “Chama-se Razin”, lembrou Auta, com o rosto enraivecido. Detestava as olhadelas que ele dava ao traseiro da filha, mas ela não parecia desgostar.
“Faina ainda é solteira…” relembrou, mas não significava nada, afinal…
— Unngh!
A expressão de susto que sua mãe fez foi a coisa mais engraçada que Faina viu em dias. Mirta riu com a boca coberta e parou no instante que Auta fitou-a. A grávida parou de rir depois de muito tempo, e ainda voltava a rir depois de um instante ou outro. Já tinham chegado ao porto: uma casa alta e larga com duas plataformas de caibros em cada lado.
— Ah, que saudades tinha de ver um desses…
— Eu também… minha senhora! Eu também! — respondeu Mirta, chorando.
Faina não compartilhava do mesmo amor, todavia ficou boquiaberta também; aquilo era mais alto do que seu passadiço! Doze metros de altura sem contar com os mastros, um corpo largo semelhante à baleia desenhada no escudo de sua mãe, oito mastros longos e marrons como o casco esmaltado e uma proa que parecia uma lança.
“Então isso é uma corela…”
— Não é nem um décimo de uma verdadeira — respondeu Auta, como se lesse a mente da filha. — Quando meu neto tiver crescido o suficiente e Lubojacz virar Rieq, Faina minha, viajaremos para minha casa… Nossa casa. — Deu um sorriso amarelo para a filha; Faina sentiu seu peito doer, os olhos da mãe vermelhos de marejados. — Sinto que chorarei, logo serei mais rápida.
Levou a mão ao busto e, dentre os seios volumosos, tirou uma garrafa de vidro. Levantando a mão à Mirta, esperou uma velha caneta cuja ponta jazia enferrujada. As letras redondas e pequenas… Observou a mãe por a folha amarelada dentro da garrafa, dar para Mirta tampá-la e proferir uma oração, então jogá-la ao mar, sendo levada ao longe pelas ondas.
E sentiu algo quente escorrer pela coxa.
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