Índice de Capítulo

    “Assim morreu Norq’Riq, que já foi o lar dos gigantes, de deuses e de vulcões que rugiam e disparavam ouro ao chão: o início da barbárie.”

    Izandi, a Oniromante. Excerto de “Mistérios da Pedra de Gelo”


    “Estou quase aí, meu Krazhii”, disse-se feito uma prece. Balançou a cabeça para o lado e para o outro, com tanta força que Mirta ouviu o pescoço de Faina estralar diversas vezes. A da pele-de-mar piscou os olhos. Sua mestra estava com olhos mais escuros do que a de um madrugador que passava os dias acordados — e as noites também. Uma escuridão densa pincelou sobre seus olhos, e a mulher parecia ter mais cinquenta anos do que tinha.

    Desde o momento que o Cara-Queimada apareceu, um tempo muito curto tinha se passado — mas a tez de Faina enrugara como um rio pedregoso durante a seca.

    Faina começou a morder a unha.

    — Repita as palavras-chave, Ay rieq — aconselhou à amiga. Faina balançou a cabeça de novo. Um punhado de neve caiu nas suas costas, todavia ela sequer reagiu, ciciando uma mistura de sílabas e palavras que ninguém da hoste além de Mirta conseguia entender.

    Toda a hoste ouvia o vento chiar entre os lariços cobertos até os primeiros galhos com neve, que afundava aos passos deles. Ouviam também tremeliques dos dentes de mais de quinhentos homens rangendo, do céu, cujas nuvens se moviam como água em um rio, como se ainda estivessem decidindo se a nevasca pararia a trégua contra os castigados. Os deuses pareciam decidir que sim. Faina queria acreditar que os Homens também.

    O Cara-Queimada cortou um galho da copa de um abeto soterrado pela neve.

    Nãoo ewstamos longe — ele disse. Atrás dele, dois guerreiros, munidos com machados, mantinham um passo apertado, a poucos centímetros do de face esfacelada. — Éw atrás daéla colina de newve, Pisa-Terra.

    Faina assentiu com a cabeça e abraçou os próprios braços, como se algum frio a agarrasse. O Cara-Queimada olhou para isso com um susto. Chefe Tihimil aproximou-se, com seu martelo de guerra em mãos. O metal de vulcão pesava em suas mãos velhas, mas a força e tamanho da arma fez o encapuzado voltar a andar.

    O Chefe olhou para Polegar, que assentiu com a mão. Faina olhou para frente. Duas colinas de neve tinham se formado dentro do bosque. Estavam no topo da primeira, que era quase seis metros mais baixa do que a segunda. Imaginou a Rieq que toda aquela neve tinha soterrado as árvores, pois invés delas, havia neve, neve e mais neve obstruindo seu norte — e depois dela, seu filhinho, nas mãos das mesmas pessoas que mataram sua mãe.

    “Isso é uma armadilha”, constatou para si mesma. Lufou um ar quente. Haviam mandado até mesmo um deles para irem buscá-los. Estavam com seu filho, e no coração, Faina sentiu como se todo seu povo estivesse sendo levado para pular no fogo… E que outra alternativa tinha? O Pai-da-Neve alvitrou que abandonasse seu amado Krazdoro e fazer outro filho… “Desde quando isso foi opção?”

    Mirta cutucou sua barriga. Estava tão absorta em pensamentos que não reparou que estava quase no topo da segunda colina. Abriu os olhos e esticou as sobrancelhas ao máximo que pôde — viu fogo, uma grande chama vermelha dançando sobre a maior fogueira que seus olhos testemunharam. Seu brilho e ardil eram visíveis de onde estava, a quase duas centenas de metros, deixando uma sombra longa cobrir o chão de terra debaixo de árvores descongeladas. Um paredão circular formara-se como uma muralha, e tendas de couro e madeira estavam protegidas pelo calor da fogueira.

    O Cara-Queimada saltou de uma vez e deslizou pela colina, chegando ao solo. Os guerreiros atrás dele fizeram o mesmo, e Tihimil também. Faina pôs as mãos no ombro de Mirta e a retirou do caminho. Em um espaço curto, toda a sua hoste começou a fazer o mesmo. As escravas de cama tinham sido deixadas para trás, ainda assim, quinhentos homens deslizaram até a falda do acampamento dos homens que tiraram a vida da mãe de sua Rieq.

    A Rieq desceu depois, devagar, sem reparar à frente. Mirta compartilhou o calor da mente calma com o toque na mão.

    — Ei, Mirta. — Piscou lentamente. — Posso te dizer algo?

    — Sim, diga.

    — Fique aqui, não desça mais do que isso… — disse, cansada até no tom de voz. O cansaço fê-la pensar na mulher do sono outra vez. Abandone. O Pai-da-Neve disse a mesma coisa. Não seria o certo a se fazer?

    Mirta acenou e fechou um dos olhos.

    — Tens convicção disso, Ay rieq? — Soprou um vento quente, que esfriou no mesmo instante. — Ainda creio que meu alvit…

    O pescoço de Faina pareceu não ter mais forças para segurar a cabeça, mas seus redondos e escuros olhões negros estavam acesos, queimando uma pequena lenha seca. A mãe apoiou a cabeça na mão, então deu as costas para a sacerdotisa estrangeira. Mirta engoliu em seco. “Tens as rugas de uma Alta-Mãe…”

    — Certo, Ay rieq.

    A Primeira desceu o resto da elevação com um passo trôpego, e se apoiou no primeiro da sua hoste que viu. Semicerrou os olhos. Não conseguia reconhecê-lo. Sentira que todo seu corpo e mente estavam guardando suas energias para algo mais importante — e seu coração bateu de um jeito que nunca sentiu antes, uma batida devagar, lenta como um urso enquanto hibernava. Via toda sua hoste como manchas brancas cobertas por manchas negras, segurando manchas cinzas e ao redor de manchas pálidas.

    O homem segurou-a pelos ombros e beijou sua testa, um beijo vindo de cima. O toque… mãos desnudas… Ele fedia a peixe e sangue. Faina meneou a cabeça com o pouco de forças que ainda tinha, e ele a sustentou com o braço esquerdo.

    Percebeu que andavam, devagar e organizadamente — o máximo que podiam naquele espaço tão apertado. Reparou que seus pés se arrastavam pela neve mais do que a pisavam. “Não importa… Eu não quero fazer um novo. É meu filhinho, a única coisa minha.”

    Ouviu um barulho. Vozes em uma língua cujas palavras pareciam batidas em metal oco. Sentiu os pés sendo arrastados por mais tempo e desgostou da mudança da textura, do macio para um áspero e lamacento. Então ouvira dezenas de passos sobre a terra fofa, cordas estendendo e o metal riscando pelas bainhas.

    Ouvira passos abafados no lamaçal e estalidos da grande fogueira; subitamente seu coração libertou toda a energia guardada como um disparo. Sentiu seu corpo feito o céu em uma tempestade de raios: choques cruzavam seus membros, e gavinhas pareciam percorrer pelo seu sangue. Ele fervia. As manchas tomaram forma, e sem olhar para quem a dava suporte, se ergueu de supetão e observou o lugar onde estava.

    O acampamento era sobre uma grande clareira. Árvores descongeladas faziam uma fronteira junta dos paredões de neve que as rodeavam. Tendas de couro tinham Caras-Queimada dentro, e de soslaio reparava que muitos estavam armados, cerrando os dentes de raiva, frio e medo. A fogueira ardia a menos de vinte metros, alta como um incêndio, tão quente que conseguia ouvir pequenos suspiros e gemidos de alívio dos seus. Alguns dos Caras-Queimada saíram das tendas, outros se esconderam.

    Logo uma linha de homens grandes e altos se formou menos que dez metros de onde parou. Eles estavam munidos com arcos longuíssimos e flechas do tamanho de uma pessoa, preparados para dispará-las. Todos cobertos com pele e gordura de focas. Todos com o rosto queimado: rosa, branco e com crostas avermelhadas de queimaduras. Faina engoliu em seco e abaixou o lábio.

    Erga os ombros, Faina.

    — Estou aqui, como foi acordado — falara a Primeira, erguendo a cabeça como se algo lhe pesasse o pescoço. “Eu não estou com medo.” — Devolvam meu filho e meu pai. 

    Os arqueiros Cara-Queimada mexeram suas cabeças e trocaram palavras que Faina não entendia. Sua fala pareceu como sons do eco de batidas, misturados em uma superfície de metal. A Rieq deu um passo à frente, o que fez os arqueiros quase retesarem seus arcos — e seus homens fazerem o mesmo. Ela arregalou os olhos de susto, mas uma brisa de confiança foi depositada nas suas costas. Eram doze arqueiros, mas tinha quinhentos homens atrás de si — sem os vinte arqueiros que foram prometidos; contudo, em um espaço melhor do que o entre árvores.

    — Estou aqui, como vocês pediram! — Pôs a mão no peito. — Onde eles estão?

    — Eles não entendem o que você fala, Rieq — ouvira de um homem. Faina clicou os dentes e cerrou os olhos. Ouviu a voz grossa do homem ciciar mais palavras em língua que não entendia, então passou a ver sua cabeça surgir por detrás dos arqueiros altos. — É tradição do meu povo que só um da gente fale a sua língua.

    Os arqueiros deram espaço para que o Cara-Queimada passasse à frente deles — mesmo que não precisasse. Poderia simplesmente ter passado sobre eles. “Ele tem altura de um Arrundria”, pensou Faina, de coração esmaecido. O homem deveria beirar os três metros de altura, pensou ela, a barba loira chegava no peito, grossa como o peito de um urso. Estava trajado com peles de focas e baleia, e seu rosto tinha padrões de tintura tatuados sobre as marcas de queimadura.

    Detrás dele Faina reparou um homem muito menor. Estava vestido com roupas estranhas, e era tão branco que não parecia ter sangue correndo nas suas veias.

    Num átimo, vários homens da sua hoste saltaram à frente. Os arqueiros Cara-Queimada retesaram suas flechas mais uma vez, e o homenzarrão ergueu o braço e gritou: Kerda-ka!, sua voz emanando como uma tempestade sobre o lamaçal e os arredores. Faina ergueu o braço e cerrou os dentes, fazendo seus homens pararem, mesmo que a sede por sangue estivesse visível nos olhos deles. “Vocês os odeiam”, reparou. “Mas ainda tenho esperança.”

    Erga os ombros, Faina. “Não tenho espaço para sentir medo.”

    — Você é o líder deles, suponho — ela falou, dando mais um passo à frente. O homenzinho pálido meneou a cabeça e se escondeu perto dos arqueiros.

    — Algo assim, Rieq. Você é mais jovem e bonita do que imaginei… Quantos Dias já viu? Três? Quatro?

    — Já… vi quinze Noites, contando com esta — respondeu, percebendo que estava arqueando os ombros por causa da gravidade da voz dele.

    — O que é Noites? — Bateu os dentes duas vezes e enfiou a mão na barba. — Você atrasou um dia, sabia?

    — … — Seus olhos saltaram das órbitas e seu semblante se encheu de desespero.

    Ele ergueu as mãos.

    — Não precisa se enraivecer, Rieq — disse, dando um passo para trás e um sorriso no canto do lábio. Seu cenho estava franzido, mas as queimaduras tinham levado suas sobrancelhas. — Eu prometi que conversaria. Veja, eu tenho coisas que você quer e você tem as que eu quero. — Meu nome é Jellewk.

    Virou a cabeça para trás e disse palavras na sua língua. Um dos arqueiros deu para trás e saiu da formação. A Rieq lufou no canto da boca e piscou. Jellewk calou-se e ficou esperando, até que ouviram o barulho de algo sendo arrastado no lamaçal. Logo vira o Cara-Queimada puxar um monte de madeira. Faina bateu os joelhos na lama quando reparou ser um caixão.

    — Tenha isso como um… gesto de bondade. Geralmente queimamos os mortos.

    O caixão foi posto aos seus joelhos. “Pai”, disse-se, a voz da mente igualmente cansada e morta. A filha começou a chorar. Ele estava pálido, seco. O corpo que uma vez fora imponente, cheio do sangue divino da sua família, estava esquálido, cinzento. Os ossos marcavam a pele flácida, que nem os músculos mortos conseguiam sustentar. A mesma roupa que usara no Rugido estava sobre sua pele, suja de sangue na barriga; um corte enorme na roupa mostrava mais outras dezenas…

    “Pai…”

    Fungou o catarro que vinha antes das lágrimas maiores. Rangeu os dentes e os cerrou, esperando que aquilo a desse alguma força. Levantou seu trêmulo, magro e exausto braço, então o moveu. Tocou a mão do pai. Sem temperatura — não havia calor nenhum no corpo. Desceu os dedos para sua mão… e sentiu rachaduras se formarem pela pele do pai, de Nikol, seu pai. Poderia contar nas duas mãos o número de vezes que pôde vê-lo — mas era seu pai…

    “Pai!”

    — Não queríamos matá-lo — disse líder dos Caras-Queimada. — Mas ele lutou de volta quando chegamos aqui…

    — Mat… — cobriu a boca. Pontadas lancinaram seu coração. — Meu filho… Vocês…

    — É claro que não! — Cruzou os braços e ergueu o pescoço grosso. — Eu não mataria um bebê, Rieq!

    Ele estendeu a mão, agindo como se não existisse mais de oito metros entre ele e Faina. Erga os ombros, Faina. A Rieq se levantou sozinha, ouvindo que seus homens se moviam vagarosamente.

    — Seu filhinho está com minha mulher. — Virou o rosto para uma tenda. — Ela pariu um há algumas semanas, mas tem dois peitos. Foi perfeito para ela. O menino é quase meu também.

    — Me dê — sussurrou Faina. — Devolva meu filho e eu te dou qualquer coisa.

    Jellewk ergueu os lábios descamados. O Chefe Tihimil se aproximou de Faina, com seu martelo de guerra em mãos. O Cara-Queimada ficou de olhos bem abertos para a arma. O velho carregava o próprio peso na arma, talvez até mais.

    — Tem certeza disso, Rieq? — perguntou Jellewk, se aproximando.

    — Es… estando sobre meu domínio, sim.

    Faina ergueu os ombros e olhou nos olhos azuis do loiro. A resposta o deixou animado. Cerrou os punhos e trinou palavras na sua língua, quase como uma canção. Contudo, no meio da sua comemoração, ouviram um grito de mulher, seguido de um grito de homem, interrompido tão bruscamente que congelou o espírito de todos os que ouviram.

    Jellewk semicerrou os olhos; seu semblante irou-se. Enfiou a mão nas roupas de pele de foca e tirou de lá uma espada curta, límpida e sem o pontilhado do metal das Ilhas. A mãe sentiu o coração batendo descompassado; um Cara-Queimada saiu da tenda, com uma espada em mãos e um morto baixo segurado pelo pescoço. Sangue vertia como um rio da sua cabeça, que fora transpassada pela espada.

    — Hah — suspirou Jellewk. Tihimil franziu o cenho e mordeu os dentes com tanta força que Faina ouviu estralarem.

    “Polegar?”, ela imaginou. O Cara-Queimada jogou o corpo do velho e baixo amigo de Tihimil ao chão. O sangue escorria da sua testa, mal saindo e congelando. Um floco de neve caiu sobre seu rosto, e então vários começaram a descer dos céus. Uma onda de medo fez a mãe contrair os dedos, e uma de raiva fez o velho Chefe segurar seu martelo com tanta força que sua sede por vingança estava visível, como uma sombra enegrecendo ao seu redor.

    Jellewk falou na sua língua para o outro Cara-Queimada, que meneou a cabeça. Suspirou e lambeu o lábio.

    — Serei franco — ele disse. — Deveria matar vocês por causa disso. Mas deram sorte. Meu amigo Hweden matou seu amigo antes que ele tocasse na minha mulher. Perdoo você, Rieq. — Ele pegou sua espada pela lâmina e a jogou como um fardo de feno no chão. — Quero seu sangue, a benção dos seus deuses. E queremos o norte.

    Juntou as mãos, apertando-as para esconder a ira que ardia nos olhos. O homem pálido meneou a cabeça.

    Faina olhou para a lâmina.

    — Meus ancestrais escolheram ficar longe de vocês e congelar — disse o líder Cara-Queimada, retirando um jarro fino, mas longo, da sua túnica. Parecia ser uma bexiga de animal. Sentou-se na lama. — Nós não queremos mais. — Inclinou a cabeça e esticou o jarro. — A benção e posses depois das Agulhas.

    — Em troca, meu filho e o fim dessa loucura?

    — Pode ser — ele disse, se levantando. — Prometo aqui e agora, em nome de todos os deuses do fogo e da neve, que meu povo não atacará o seu enquanto sua linhagem existir.

    Tihimil se pôs na ponta dos pés velhos e cheios de artrite e tocou o ombro de Faina.

    — Há mentiras na voz dele, Rieq.

    — Eu sei, mas… mas…

    “Meu Krazhii… Se for o necessário…”

    — Dê ele pra Mirta e leve eles pras Ilhas Brancas, por favor — ciciou para o Velho Tihimil. Ele meneou a cabeça e desviou os olhos. Viu em Faina um semblante alegre.

    Ela deu um passo depois do outro até a lâmina. Jellewk sentou-se à frente dela, então estendeu o jarro até que houvesse uma boca grande o suficiente para que alguém entrasse. Faina se abaixou e pegou a lâmina. Havia sujado com lama, mas do fio ao corpo, era impecável — um metal liso, prateado e brilhante, tão brilhante que via o seu rosto cansado refletido.

    — Eu te perdoo, Jellewk, a você e seu povo.

    — Aceito o perdão, Rieq — ele disse. — Peço perdão também. Não mandei que meus homens fizessem o que fizeram…

    Faina fez um sorriso amarelo repleto de raiva e medo.

    Pegou a lâmina com a mão direita. “Não doerá mais do que um segundo”, mentiu. Desviou o olhar e cortou. Uma gota veio primeiro, então uma segunda, e pingaram para o jarro. “Mais fundo”, disse-se. Imaginou Krazdoro brincando. O sonho com ele sob o Sol das Ilhas onde Mirta crescera surgiu na sua mente.

    “Brisa, calor, o vento calmo da manhã, água em copo, um pinheiro cheio de folhas. Neve parada. Uma floresta cheia. Pássaros dormindo. Ovelhas cansadas. Um barco parado no porto. O mar quieto. O sorrir de uma criança. Da minha criança.”

    Ficou a lâmina inteira no antebraço, então puxou o máximo que teve forças para fazer. O sangue vermelho verteu. “Um barco parado no porto. O mar quieto. O sorrir de uma criança. Da minha criança. Meu filho comigo. Meu amado brincando no porto.” Tirou a lâmina de lá, segurou com a outra mão. Jellewk abriu um sorriso misturado com surpresa. Faina fincou a espada no outro antebraço. Puxou até o cotovelo. Sangue verteu, vermelho escuro…

    Sua visão enturveceu. Engoliu o medo. Arrancou a espada, que deslizou da mão sem força. Seu sangue manchou seus braços, e deslizou como água de um jarro para um corpo. Arfou. Fechou os olhos. “Um barco parado no porto. O mar quieto. O sorrir de uma criança. Da minha criança. Meu filho comigo. Meu amado brincando no porto. Mirta o educando. Meu filho adulto. Pastoreia ovelhas, brande a espada.”

    Viu uma branca brasa correndo no ar, e de repente sentiu nada dos ombros adiante. Um segundo, uma hora — não fazia diferença. Os braços despencaram. Sentiu os pelos da capa de Tihimil atrás dos seus ombros, e um puxão para pô-la de pé. Ouviu um choro, estridente, e pôs força nos olhos. O máximo que conseguiu.

    O choro do menino era o mais estridente que já ouviu, mas reconhecia desde o tom até o jeito que chorava. Uma mulher veio calmamente, vestida com peles do cabelo até o pescoço, e um par de dentes de leão-marinho pendia no pescoço — e nos braços, Krazdoro chorava. Seu Krazhii.

    Acabara de sangrar e mais do que no próprio parto, mas respirou com mais alívio do que quando seu menino recebeu à luz. Ignorou Jellewk. Ignorou Tihimil e sua falta de força. Pulou da ajuda do Velho e correu até a mulher, e mesmo com nenhuma força nos braços, agarrou o menino.

    O choro cessou no mesmo instante. Faina sorriu, pressionando o seu filhinho entre os braços. Sentiu as mãozinhas dele tocando sua clavícula, tão inocente que não reparava o sangue da mãe sujando a trouxa que o cobria. A Cara-Queimada trocou um sorriso maternal com Faina, que depois a deu as costas.

    Seu Krazhii sorriu, com os olhos dourados entreabertos. “Está mais cansado do que eu, não é? Mas não continuará assim.”

    Shiii, shiii — suspirou. — A mamãe está aqui. Shii…

    Seu bebê fechou os olhos e dormiu, feliz.

    Caminhou vagarosamente até Tihimil.

    — Eu os perdoo — disse a todos ali, virando-se para eles. — Cumpram sua parte, por favor. São… — suspirou. Vagarosamente, Tihimil se tornou uma mancha negra e grisalha; os Caras-Queimada, as tendas, a lama sob os pés e o sangue azulando no braço. Manchas sem silhuetas, que se moviam… — Agora… são… minha… Sétima Tribo…

    — Nós aceitamos, Rieq — falou Jellewk, com um movimento no rosto que Faina não conseguiu diferenciar.

    Apertou o filho com mais força e beijou a testa dele.

    — Es…tão… todo…s… no m… eu… cora…

    Jellewk virou o rosto. Faina viu um movimento súbito nele. Viu vagarosamente Tihimil dar um passo para frente. Ouviu um zunido. Viu algo brilhar prateadamente na sua direção. “Uma estrela?”, pensou naquele átimo. Pensou por um instante. Então se engasgou com sangue e caiu de joelhos no chão.

    Não via o quê, mas algo tinha atravessado seu peito.

    Mas a dor do corpo não era nada. O sangue despencando da boca não era nada. A dor dos joelhos batendo na lama não era nada. Do seu corpo batendo no chão, fazendo a coisa atravessar suas costas não era nada — a dor do coração e dos olhos era pior.

    Pois viram que a flecha não atravessara só ela.

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