Capítulo 41: As sinas do homem (2)
“Ah! Pobrezinhos! Ratos possuem uma vida tão curta…”
Izandi, a Oniromante

Abaixou-se. A túnica de linho era a única parte da libré que ainda usava, e agora teria que pedir a alguém que a lavasse. A vela revelou profundidade de pés sobre os musgos. Pés leves indo à sua esquerda, pés ainda mais leves e distanciados à direta…
“Ela correu. Puta merda!”
Levantou-se de supetão, ergueu a vela e foi à frente. “Por favor, não morra.”
A primeira dezena de passos quase o fez deslizar e cair para à morte, outras vezes quase apagou a vela. Decerto, apagou uma vez, mas uma brasa vermelha ainda ardia na corda. Soprou até que emitisse luz, uma luz agora mais fraca e bem mais arriscada. Bert caminhou com o coração saltando no peito. Sentiu sal nos olhos por uma gota de suor, e não o limpou por estar protegendo a luz.
— Merda — sussurrou. Sua voz ecoou à frente. — Ah— suspirou, e sua voz ecoou. “Como pude me esquecer disso?”
Fitou as paredes, cheias de pequenas portinholas de madeira ou pedra rolante, e encostou a orelha no chão. Fechou os olhos e suspirou; o último barulho que permitiu fazer era o do coração. Uma onda de frio atingiu seus dedos, como se o sangue parasse de fluir, e então suas mãos por completas ficaram frias e quebradas; então os braços e pernas.
Ouviu seu sangue correr nas veias e o coração bater. Ouviu uma gota de água cair de uma estalagmite, balançando a pequena poça que formara. Ouviu ratos se reunindo para devorar um cogumelo; ouviu seus corações, animados. O som de miados distantes chegou aos ouvidos. Percebeu que gatos de rua adentraram lá e saltariam ferozes contra as prezas.
Ouviu um fungar; o espichar de uma pisada pesada demais para ratos. Ouviu um coração batendo acelerado, dedos roçando joelhos… Bert se levantou. Seu coração parecia bombear lama. Agarrou a chama da vela com força para acordar da letargia.
— Silale! — gritou, e sua voz ecoou como um rosnado de lobo. Ouviu um barulho poucas dezenas de metros de distância, e partiu em direção dele.
Quatro caminhos de rocha talhada e velha pendiam, iguais se não fosse o tempo, todavia Bert sabia qual queria. “É essa jura maldita!” Caminhou no escuro, tocando o lado esquerdo da parede. Temeu armadilhas, mas não seria tocado por elas — fez ahvit percorrer por dentro do corpo; uma luz amarelada ardia por sua pele.
Logo viu uma pálida e álgida luz caindo do teto; amontoados azuis de cogumelos bulbosos pintavam caminhos e mais caminhos de pedra lisa e suja. Notou um gato caçando um rato, correndo pelos irregulares e desiguais taludes ovais que paravam em uma gigantesca planície, onde havia um frontão de ferro enferrujado e freixos estranhos e fedorentos.
Um caminho fino, que tinha um teto a pouco mais que meio metro acima do chão, levava onde um coração humano batia. “É bom você estar bem”, pensou, mesmo que já soubesse da resposta. Amanhã, a encontraria sorrindo, como sempre, indo para a biblioteca do castelo, conversando com servas e dormindo cedo; mas seu pé pisou em lama, musgo velho. E nunca mais tocaria no assunto, senão uma provocação. “É bom que esteja bem…”
— Você falou meu nome — ouviu. Levantou a cabeça tão rapidamente que bateu-a no teto; sentiu um calor doloroso no escalpo, e nem assim tirou os olhos dela. Mais do que a calça beje de juta ou a camisa de linho, ou a túnica, cravou os olhos nas olheiras vermelhas suavemente pintadas no seu rosto; tristeza. — O que faz aqui? — questionou ela, corando, mas olhando para baixo.
Bert açodou-se e subiu o caminho quase saltando. Libertou suas costas a poucos passos dela. “Tão baixa”, pensou. Ela mal batia no seu peito, sequer chegava lá. Seus cabelos tricolores surgiam como onduladas fitas até o penteado no topo da cabeça, mas um único fio castanho despencava ao nariz redondo e curto, ainda assim, Bert percebeu que era pontudo, de alguma forma que dava vontade de tocá-lo.
Uma batida descompassada ardeu no seu peito. Sentiu algo adorável no que os olhos viam: um queixo quase plano, arredondado como se um cacho de uvas fosse composto por uma única uva ovalada, mas uma alva uva de bochechas esbeltas e roseadas, de lábios tão vermelhos…
Esfregou a mão na testa. Seu peito ia e vinha.
— Eu vi uma ratinha correndo pelo castelo e vim segui-la — falou, tirando suor da testa —, mas me deparei com uma gata vestida de gato.
“Droga, não costumo ser tão fraco pra bebida!”
A princesa resvalou o rosto. Não estava nenhum pouco real — e muito menos agradada. Ou feliz… Seus olhos pareciam estar prestes a despencarem, cair de um abismo profundo. “O pai dela está morrendo, seu idiota.”
Bert observou os arredores. Um forte archote iluminava uma pequena caverna, ao lado de uma bolsa de couro e papéis. Sentiu cheiro de tinta e álcool etílico, quase vencendo o fedor perpétuo de musgos, e reparou que não havia musgos no chão ao redor da bolsa.
— Você gosta dela? — questionou a princesa, sem nenhum pouco do tom satírico de sempre. Bert engoliu em seco. Ela caminhou até a bolsa, sentou-se e molhou uma pena na tinta. — Gosta de Betha?
— Você a conhece?
— Não desvie do assunto, Bert! — bravejou. Bert engoliu o ar sujo e coçou o escalpo.
“Isso não é justo”, pensou. O que havia de tão injusto nela?
Jogou-se ao lado dela, sua espada emitindo um clangor tão alto que espantou um gato. Cravou os olhos nela, que contraiu os ombros, e sentiu seu lábio secar. Ela o ignorou e começou a rasurar um feio desenho no papel velho.
— Gosto dela, sim — respondeu. — Mas não menos do que gosto de você, princesa.
Ela enrubesceu até o pescoço. A mão da pena começou a tremer, espirrando gotejos de tinta sobre o papel e sua calça. Silale soprou alto, respirou fundo, então voltou a fazer os traços que Bert não entendia.
— Minha teoria estava certa — sussurrou Silale, sem olhar para Bert. Como se recuperasse a compostura, cerrou os lábios em um bico largo e virou o rosto. — Fazes de propósito para me irritar. É assim somente comigo, ao falar asneiras e evitar dizer meu nome até quando estamos sós. — Cravou os furiosos olhos de mulher em Bert, que contraiu o pescoço. — Filósofo Heynes Beckden falou sobre tipos de amor na amizade, mas duvido que seja o caso. E, por favor, se gosta mais de mim do que dela, não faria isso com ela. Faria…
Bert respirou ar podre. Pôs-se na frente dela, os olhos cravejados no dela.
— Silale.
Ela abriu a boca e suspirou.
— Sim, esse é meu nome. Fico feliz que ainda se recorde.
— Por que gosta tanto que eu o fale?
— Talvez porque tenhas uma voz bonita. É de família?
— Não herdei nada da minha família. — Lançou um sorriso amarelo. — Não desvie o assunto, Silale.
— Você se parece com o barão Zwaarkind.
— Não… Quem me dera.
— Ah! Então é assim. Entendo. — Guardou a tinta. — Te respondo quando me responderes. Gosta dela?
— Já disse que sim.
— Então tenho medo do que faria comigo, se supostamente gosta mais de mim — afirmou, em voz de sono e riso. De repente enrubesceu mais que o ruivo dos cabelos. — Digo…
Bert começou a gargalhar; sua risada ecoou por todo o lugar. “Merda.”
— Não disse nada cômico, Bert — resmungou, os olhos semicerrados furiosamente.
— Eu sei, eu sei — limpou os olhos e fungou. — Eu sei.
— Não, não sabe! — “Que alto!”, bravejara ela consigo. “Alto e irritante!” Queria atingi-lo na cabeça com a caneta, e ficou ainda mais furiosa por ter que se controlar (e por saber que não alcançaria).
— Posso ao menos pedir perdão pelo que viu? — questionou ele, ficando de cócoras. — Pode não parecer, mas ainda tem um pouco de dignidade em mim — riu, pondo a mão no queixo.
— É muitíssima pouca. — Ela juntou as mãos. Estava com frio, notou Bert. “Deveria ter se vestido melhor…”
— Fuuuh… — suspirou, se ajoelhando. Ela de repente começou a sorrir muito arrogantemente, destacando as covinhas nas bochechas e rebrilhando os olhos de safira… — …
— O que foi, Bert?
— …Me perdoe, Vossa Alteza, princesa Salile… Minha amiga?
— Sim! Sua am… ã? — conseguiu dizer antes que algo interrompesse sua boca. “Maldito”, pensou Bert. Resistira àquela sede por um segundo, um único segundo, mas o movimento foi quase que primevo, instintivo. Viu-os vermelhos e quis prová-los. Roubá-los. Tocou o carmesim dos lábios dela com o dedão, e antes que ela pudesse reagir, seu lábio e o dela se encontraram.
Macios, percebeu, cheirosos, doces. “Como um doce…” Ela resistira por um segundo, como se fosse uma parede, então sentiu os lábios tremendo… estremecendo. A porta foi aberta, ela abriu e deixou o vento entrar. Seu coração disparou. Eram duros e secos os lábios dele, rachados por sol? Ou seria por muitas pancadas? Sentiu calor, aspereza e sabor de vinho roçando os seus…
“Por quê?”, refletiu ela.
Como se as batidas do peito fossem iguais, sentiram o calor dançar entre sua carne, no âmago dos lábios. Era como se um feroz dançarino surgisse, amigável, um dançarino solitário que queria companhia, e ela o deu. Virou o pescoço, mesmo que só um pouco, e seus ombros foram à frente; pequena, frágil, delicada…
E dançaram, calmos ao primeiro toque, mas não durou; o sabor suave… Dançaram, e dançaram como se provassem o sabor um do outro. Soltaram-se por um segundo. Os dançarinos soltaram as mãos e se separaram.
O filete de saliva pingou entre os lábios, sem se romper até tocar o chão, melando o queixo de ambos como se gritasse uma mensagem. Silale sentiu o rubor nas bochechas e se jogou para trás. Há quanto tempo ele segurava por trás de seus ombros? Há quanto tempo estava com o peito escorado no dele, abraçada em suas costas e de joelhos sujos pela poeira?
Desde quando as Cavernas do castelo eram tão quentes?
Diante da vermelhidão tímida… Bert estava empalidecido e com olhos trêmulos quase saltando da órbita…
— Você… — sussurrou a princesa; o par de lábios mais macios que tinha provado… Tinha coberto o rosto avermelhado com os joelhos, cobertos pelas roupas de homem. A Bert, as roupas esfarrapadas e mal costuradas a deixaram ainda mais feminina.
Ele arfou, com um gosto amargo no peito. “Que droga é essa?” Uma ardência queimou no seu coração.
— O que… tem eu?
— Por que fez isso? — ela bravejou, mostrando o rosto avermelhado e furioso. — Eu tinha pedido um amigo…. não isso… Destine isso a outra mulher, não a…
Bert fechou os dentes, de um jeito tão atrapalhado que a vermelha, ruiva, castanha e loura fechou sua boca e olhou atentamente aos olhos cinzas e cabelo tacanho. “Mas que…”
— Perdoe-me?
— Es…tá perdoado — ela falou, entre arfados e o rosto avermelhando mais e mais. Bert deu um passo de joelhos para frente, olhando-a de mais perto. — Saia de…
Seu rosto ficou tão vermelho quanto as madeixas vermelhas do cabelo tricolor.
— Não quer fazer isso de novo, não é?
— Dá próxima vez que for explorar esse lugar — sussurrou, parou e arfou. Silale levantou os olhos, com a boca meio aberta. “Tem algo preso na minha garganta!” Seu peito ia e vinha… Ela escondeu o rosto, rubro. — Me chame…
Ela cobriu o rosto com os joelhos mais uma vez. Conseguia ouvir o coração dela disparado no peito, se movendo tão velozmente… Os lábios doces e vermelhos… “Não faz isso de novo, seu miserável”, ele se disse, mas suas mãos já tocavam os joelhos dela.
— Eu só queria um amigo — ela sussurrou, mas sua voz parecia a de um coração gargalhando. Suas mãos encostaram nas dele. Calejadas, duras… tremiam mais do que as suas? — Seria estranho um homem, cavaleiro e Cei que seja, entrando no quarto de uma princesa.
Bert coçou o rosto pálido. Olhou para ela, escondendo o rosto no peito, quando recordou-se de algo.
— Eu… sou um ótimo… caçador… de ratos — afirmou, e os lábios de ambos se encontraram mais uma vez por longos segundos antes de Silale o empurrar, o aceitar para uma terceira e quarta vez. — E deveria parar em ser só meu amigo — falou, dessa vez ela mesmo começando o quinto e o sexto beijo. — Só isso, enten… — Bert não perdeu mais tempo. — Se…ja só… ami…go… — ela arfou, o empurrando com força para que caísse de cócoras no chão. Ela se levantou como uma explosão, quase batendo o escalpo na parede da caverna. — Só meu amigo! Pare aí mesmo, Cei Bert… — Abraçou-se, olhando para o cavaleiro pálido com olhos irritadiços… — Pare, viu… Pare…
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