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    “Relações de família não são meu forte.”

    Izandi, a Oniromante


    Hyd bramiu um gemido trôpego e doloroso, cuja metade ficou preso na garganta como se vomitasse areia quente. Algo — um solavanco — a fez mexer o pescoço, mole como se água, e um gemido ainda mais alto veio ao bater a cabeça em uma superfície de madeira. Ela cerrou os olhos doloridos, e sua cabeça bateu-se novamente. Lágrimas saíram dos olhos. “Mãe!”, chorou, e sua voz não saiu novamente. Era como se… Percebeu algo amarrado na sua boca — algo fedorento e nada macio… duro e com gosto de leite podre.

    Se acalme.

    Os olhos entreabertos mal conseguiam ver um palmo à frente; tão distorcida e embaçada a visão, e quando tentou olhar para cima, percebeu não o corpo da sua mestra, mas um teto de madeira tão próximo que quase tocava seu nariz. Se acalme! Espasmos fizeram sua mandíbula tremer, acompanhada pelos dedos. Estavam ásperos; o ar era áspero. Esmagado. Se acalme! Sua mão direita ardia no punho, doendo tanto que não sabia descrever. Algo escorria de sua cabeça…

    Um solavanco a atingiu de novo, e o mundo escureceu antes que concluísse ser sangue.

    Depois de tanto tempo desmaiada, os dois meses que lhe foram ditos, fechar os olhos a enchia de medo. Não queria desmaiar novamente. Já era fraca. Já era pequena. O que faria se dormisse mais? Como… como seria notada por algo além de pena? Como cantaria sorrisos na face dos pais? Do irmão? De Mestra Jen e Nia? …Ou… de Cei Witernier? Não quisera dormir, na tenda, não com toda a fraqueza que sentia.

    No primeiro dia, somente desmaiou de exaustão, e quando a segunda noite subiu aos céus, não queria e não queria dormir de maneira alguma.

    — Senhorita Hydele — Mestra Jen falara, com o tom sonolento e olhos mais fechados do que abertos —, se não dormir, vai ficar com os olhos feios. Seus olhos são lindos, é bom que continuem assim.

    — Eu não quero… — abraçou-se, escondendo-se dentro do cobertor; nem o conforto da cama parecia chamá-la ao sono. — Quero ficar acordada… Me traga um livro, por favor, qualquer livro…

    — Senhorita… — balbuciou sua mestra.

    Uma corrente de vento seco estapeou seus olhos; com uma fungada dolorosa, mofo a fez parar de respirar pelo nariz. Se acalme. Se acalme!

    Mestra Jen não se segurara naquela noite. Enquanto Hyd tentava se esconder mais e mais, pondo forças que não tinha para acender uma vela ao seu lado, a recifana saltou para sua cama e invadiu seu cobertor. “Como poderia tentar algo tão perverso?!”, questionara-se a donzela. Na noite que ficara com Nianna e princesa Silale, dividiram um cobertor e cama, também — mas aquela era larga o suficiente para que não ficassem grudadas. Sua mestra não tomava esse cuidado.

    Hyd debateu-se contra ela, mas não durou muito. Suas forças foram embora e seus braços mais pareciam toras cansadas ao mar. Logo estava com o rosto escondido no seio da mestra, ouvindo seu batimento… E continuou assim… Pouco a pouco, fechando os olhos… Todas as poucas noites…

    “Onde estou?”, conseguiu pensar. Seus olhos vacilaram. Mestra Jen cometera o deslize uma segunda vez, na noite seguinte — e muito pior. O travesseiro teve de suportar somente a cabeça maior da mestra de armas. Descobrira que as mãos da sua mestra ficavam estranhamente macias, invés de calejadas, quando era hora de dormir. As cicatrizes não eram bonitas de se ver; não precisava vê-las. Um solavanco bateu sua cabeça mais uma vez. “Para… Para!”

    Ouviu um chiado — um ruído desagradável. O ar entrou obstruído por sua boca e nariz, levando consigo um ar ocre e podre. Tentou mover suas pernas; não conseguiu mais do que estender os dedos dos pés descalços. O ruido veio de novo — ainda mais alto. Uma sequência cadenciada de ruídos estridentes e baixos aturdiu seus ouvidos. “Onde estou?!”, gritou para si. “Onde estou?! O que fiz?!”, chorou. As lágrimas somente pioraram sua visão — os contornos quase invisíveis se desfizeram em manchas sombrias, como à noite sem Luas.

    As nuvens tinham ido embora aquela noite, recordou. Um solavanco jogou seu pescoço para trás, fazendo-a sentir um impacto doloroso na nuca; teve seu gemido contido pela coisa que obstruía sua boca. O fedor de sopa fervente ficou presa nas suas roupas, mesmo que não tivesse chegado perto das panelas. “Sim”, recordou-se vividamente. O vento frio atingia sua pele confortavelmente, balançando suas tranças, à mesma medida que Cei Ehrle golpeava as grades de madeira e metal do corcunda.

    — Cei Ehrle, pare! — gritara Hyd. “Ah, sim”, recordou. Saltara quase que sem sua bengala, pisando em falso ao lado de uma pedra. Caiu quase que de joelhos nas pernas do castanho. — Phare com isso! Não… — fitou as luzes avermelhadas ao redor do corcunda — tolerarei… mais…

    “Por que estão tão vermelhas?!”, percebera. Os vaga-lumes dançavam em carmim ao redor da barriga dele, e a cada piscada, Hyd notava que ficavam mais vermelhas. Garota, ouviu por dentro dos ouvidos. Praga.

    Bateu com os ombros na parede. Lágrimas de dor escorreram pela face de Hyd; seus lábios secos se fecharam. Cei Ehrle, apesar de toda a monstruosidade que fizera, beijou as costas da sua mão. “Praga”, relembrou-se. “Plebeia feia e magra.” Por que as pessoas estavam lhe ofendendo tanto? “O que fiz?” Suas costas bateram contra a parede de novo. Ouviu o chiado, mais alto. Uma mancha branca e vermelha surgiu na frente do seu rosto, pequena demais…

    Mestra Jen aparecera pouco depois, e Hyd estava exausta demais para reagir. Foi pega entre os joelhos e costas, e seus olhos cansados repararam na face da amiga mais velha. O corado de quando estava sendo cortejada, a esperteza facial que ainda não conseguia entender, fora sobrepujada por olhos cerrados e lábios soerguidos e hirtos. “Ela me aninhou no peito”, recordou-se…

    Foi levada de volta para sua tenda. Lembrava-se bem disso. As servas de Cei Ehrle a prepararam um banho. Não gostava de terem entrado em sua casa temporária e mudado as coisas de lugar, porém piscou de gratidão. Dobraram suas roupas e as puseram no baú, e pelo tempo que havia passado, a banheira tinha água gelada, tão confortável… Desta vez, foi o lado direito da cabeça quem bateu no teto. Era duro… Mas a água tinha sido fria e macia.

    Mestra Jen a banhou e desfez seu penteado enquanto resfriava.

    — Obrigada — sussurrou, vendo os cabelos flutuarem na superfície da água cristalina. — E desculpa… por atrapalhar seu cortejo — corou.

    Sua amiga encostou o dedo na sua bochecha.

    — Não se preocupe muito com isso — sussurrou, tentando imitar a voz de Hyd. Às vezes, lembrou, ela tentava fazer isso, mas nunca conseguia. A voz de Jen era um forte contralto. Doía nos ouvidos vê-la agudar a voz, ainda que fosse divertido. Hyd sorria e ria com sua voz desaparecendo, mesmo que a mestra ainda tivesse muito fôlego. Seus dedos rasparam pelo chão de madeira. Uma farpa penetrou seu mindinho; trincou os dentes e gritou. “Pare! Para! Para! Deuses, socorro!” Se acalme! — Eu consigo arranjar outro. Aliás, aquele ali tocava mal demais. E cantava pior ainda! — Beijou a bochecha de Hyd. — Prefiro a companhia de uma pedra. Ou da minha amiguinha aqui, mil vezes!

    Se lembrou de ter corado e sorrido.

    Subitamente, Jen fora até a tenda e a fechou com as tiras de metal. As veletetos foram acesas com dois tapinhas de Jen, libertando uma fraca luz pela mobília e chão de tapetes felpudos. E ainda mais de chofre, sua amiga despiu-se e entrou na banheira, jorrando a água fria.

    Gh! — ela fez, cerrando os dentes. — Como gosta de algo tão frio? — questionara, mas Hyd não prestara atenção. Não era só no rosto e nas mãos, notara, cicatrizes estavam por todo o corpo negro da mestra. Uma queimadura existia ao lado do seu umbigo, enquanto uma cicatriz branca subia do seio direito até o sopé da garganta; marcas pontilhadas cobriam sua perna esquerda, e uma queimadura ainda pior estava meio escondida na lateral direita. Sua mestra carinhosamente cobriu suas vergonhas, então riu e puxou Hyd, a deixando de costas e descansando no seu peito.

    — Obrigada por vir comigo — falou, ainda que sua voz estivesse tão cansada que mal saia da boca. Hyd viu a mancha aproximar-se: gorda, felpuda, cuidadosa. Ela virava uma parte ou outra da cabeça para os lados, cheirando o chão. Sua bochecha esquerda bateu no chão; as lágrimas aumentaram. Se acalme!

    — Era o mínimo que eu poderia fazer, Senhorita — cantarolou, jogando água na sua nuca. — Tem um ditado legal nas Ilhas: água sozinha não faz onda. Significa…

    — Acho que entendi de primeira — interpôs Hyd, apreciando a água gelada. Ela enterrou mais o corpo; tinha sorte da banheira ser espaçosa o suficiente para deitar-se por inteira. — Aqui, dizemos: uma andorinha sozinha não faz sombra.

    — Ah! Também tínhamos um ditado sobre andorinhas. — Cutucou a bochecha rosada da ruiva. — Pensando bem, você parece uma andorinha.

    — Ãh?

    — Pois é! — Cutucou a outra bochecha. — As duas tem a cabeça redondinha, um bico pequenino…

    — Eu não tenho bico…

    — Mas tem um narizinho bem pra frente! — Jogou água na sua cabeça. — E um queixinho pontudo. E também, as duas cantam de um jeito lindo.

    “Ah”, lembrou-se. Era bom ser elogiada. Deixava as bochechas vermelhas e o coração acelerado; os ombros levantavam e os olhos piscavam, com pequeno biquinho nos lábios.

    — Eu — falou — te ensino a tocar harpa e cantar, se me ensinar recifez.

    — Eh? — Abraçou Hyd. Sua voz pareceu tremula e surpresa. — Não sei, acho melhor não. Digo, quer dizer… — Hyd olhou por trás do ombro, sentindo os olhos incharem. “Mestra Jen corou de verdade, e de um jeito diferente”, riu. Nunca imaginou por algo assim. — Quer dizer… não sei se consigo… Já não falo recifez há tanto tempo que acho que esqueci. — Praga, ouviu dentro da cabeça. Balançou-a, assustada, e Jenna jogou mais água, afagando seus cabelos. — Mas eu não sei escrever recifez. Fico devendo essa…

    Hyd suspirou. “Por favor, pare…” Sua visão escureceu de novo. Um solavanco jogou seu peito para cima, batendo seu rosto contra o teto. — Não precisei ler para aprender harpa, aos meus quatro… — respondera Hyd, sorridente. “Apesar de que já sabia ler e escrever desde os três…”

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