Índice de Capítulo

    “Relações de família não são meu forte.”

    Izandi, a Oniromante

    “Apesar de que já sabia ler e escrever desde os três…”

    E fechou os olhos. E os abriu. Estava arrematada no canto. Seu pescoço dobrado pressionava o queixo contra o peito dolorosamente. Acordara sentindo fedor de fumaça. Amava o cheiro de incenso, mas detestava o de fumaça…

    Jen acordou quase ao mesmo tempo. Rapidamente, ela saltou da cama e se cobriu com uma calça e um gambesão — a luz vermelha se projetava para dentro da tenda, bruxuleante e ardilosa. O fedor de couro queimado não tardou, e Hyd fechou o nariz de tanto susto, e um calafrio aterrador mordeu os ossos de Hyd quando ouviu um grito estridente rasgar à noite, um berro desesperado que calou os batimentos do seu peito.

    A mestra de armas balançou sua cabeça, sem fazer barulho. Hyd não conseguiu não fazer barulho — os gritos triplicaram, e os dela aumentaram. A mancha branca se aproximou. Hyd notou pezinhos rosados, vacilantes. Ouviram gritos. Muitos gritos, um coral monstruoso que deixava sua pele quente e os dentes tremulando.

    — Mestra Jen… — cochichou, apertando os dedos. A noite densa se clareava, e o pouco que teve de sono impregnava seus olhos como se tivesse areia. — O que…

    — Se vista e pegue a bengala — sussurrou. Seu queixo reto se apertou; seus olhos negros apertavam o semblante irado. Hyd o fez, jogou por cima o primeiro vestido que achou e segurou sua bengala.

    No outro instante, a mestra de armas jogou-lhe uma adaga — uma embainhada e quase reta lâmina, cuja extremidade fazia uma curva.

    — Não saia detrás de mim. É uma ordem, ouviu?! — sussurrou em voz de grito. Como pôde esquecer? Sua mestra era uma mestra de armas e, acima de tudo… sua protetora. “Onde está Cei Witernier? Onde está meu Cei?”

    Seu coração disparou. Batia tão forte que doía contra as costelas. “Onde ele está?’

    ‘Me proteja, por favor…”

    Jenna abriu devagar as travas, cada uma jogando vento quente dentro da tenda. Hyd cruzou os braços e empunhou a adaga. Se acalme! Fique calma! As patinhas rosadas se mexeram, duas ficando suspensas no ar. Fique calma! “Desembainhe-a”, gritou-se, os dedos tremendo.

    A luz das Luas era inexistente — fora calada pelo barulho das chamas e da fumaça. Jenna desembainhou a espada, mordeu o dedo e esfregou-o no sulco da lâmina longa. A espada começou a cintilar e sua dona entrou em riste. Não saia detrás de mim, recordou. Deu todos os passos fraquejantes e franzinos que conseguiu, e a mestra logo saiu da tenda. Sua bengala fazia pouco barulho.

    Mas lá fora, era o inferno.

    Imediatamente Hyd testemunhou um dos herboristas ter a garganta cortada por um dos acorrentados — o que a xingara de mulher maldita, cheia de sotaque. Assim que as viu, ele lambeu os beiços e atacou com a espada. Jenna não permitiu. Ela disparou para frente, e assim que as lâminas se bateram, ela virou o corpo para a esquerda, jogou a perna direita para trás e transpassou diagonalmente a lâmina no pescoço do homem. Entrou no pescoço e fugiu até o olho esquerdo, então foi puxada para frente, jorrando tanto sangue que maculou até Hyd.

    E a pequena filha de Willmina Zwaarkind ficou de olhos arregalados e sem ar.

    A mancha gorda chiou. Hyd coçou as palmas das mãos, fungando, todavia o ranho parecia infinito no seu nariz e garganta. “Para, para, para, para, para, para, para, para!”

    Jenna a pegou pela mão. O acampamento estava em chamas. Não respirava. Como se respirava?! “Para, para, para, para, para, para, para!” Se acalme!

    — Vem! — gritou à pupila.

    E naquele segundo, uma flecha atingira seu ombro. Ela grasnou de dor e tropeçou, quase caindo em cima de Hyd — totalmente atônita. O homem transpassado ainda estava no chão, jorrando sangue pelo chão lamacento. Seu sangue tinha coberto seu corpo. Seu sangue tinha manchado o vestido rosado de Hyd. Um feixe vermelho pintou-a com morte. Jenna se levantou de supetão, mordendo os beiços grandes, e antes que uma segunda flecha viesse, disparou uma adaga contra o peito do homem.

    Caiu agonizando no chão.

    — Vem, Senhorita! — grasnou. “Para, para, para, para! Parem!”

    Quando se deu conta, Cei Witernier estava ao seu lado. Estava aninhada no peito ensanguentado de Jenna. Seu Cei estava com a testa sangrando. Juncos e bétulas os rodeavam. “Por que meu Cei está ferido?” Seu nariz avermelhado estava quebrado, pingando sangue como um rio. Ele segurava seu braço esquerdo, com a mesma mão que segurava a espada longa. “Quem te feriu?” A mancha se aproximou. “Onde estou?

    Ela piscou várias vezes. Pela primeira vez em tanto tempo, via escuridão. Estava escuro, manchado, tudo estava torpe e sujo. Seus pés roçavam uma juta áspera, uma superfície feia. Outro solavanco fez seu cotovelo e antebraço estatelarem e rasparem sobre o chão cheio de farpas. Ouviu chiados, um ruído que a fez cerrar os dentes.

    — Minha Senhorita — arfou Cei Witernier —, nós chegaremos em um lugar seguro em breve! — prometeu, apertando o ferimento no ombro. O rosa do seu vestido estava vermelho. Sentia o sangue quente de Jenna manchando seus ombros; uma luz azulada fugia dele. Centenas de vaga-lumes de corpo delgado brilhavam por ele. — Nós estamos próximos de Vela Cinza. Reconheço estes — arfou, parando de falar. — Esses juncos…

    Praga. Filha de adultério! Cria do inferno! Praga!, soou. Hyd abocanhou o ar. “Por quê?! Por quê?!”

    Jenna tropeçou em uma raiz. Hyd só pôde ver-se voando antes de se estatelar e rolar no chão pouco coberto de neve. Sua testa bateu contra uma raiz; a força jogou sua cabeça para cima e fez sua nuca estralar. Quis chorar. Neve e lama entraram nas suas unhas. Respirar fê-la engolir neve e lama. A mancha ficou ainda mais próxima. Viu um par de olhinhos vermelhos na sua direção.

    Cei Witernier se aproximou, jogou a espada no chão e pôs Hyd de pé. “Minha bengala”, percebeu. Onde estava? Estava de mãos totalmente vazias — nem nos pátios e salões do castro dos Beesh ficava assim.

    — Senhorita — ele arfou. — Fique atrás de mim, por favor…

    Jenna se levantou, cuspindo. A raiz deixou uma marca roxa no seu olho sem cicatriz e seu sangue pintou a neve branca. Ela agarrou de volta a espada.

    E ouviram passos.

    — Corre com ela — gritou ao Cei.

    — Fiquem parados e os deixo viver — ressoou uma voz rouca, fazendo eco pelas árvores altas. Nem os chorosos olhos impediram-na de perceber os amontoados de vaga-lumes que rumavam sua barriga. Eles circundavam o homem corcunda.

    Vermelhos, leitosos, marrons e azulados, todos o arrodeavam como a água rodeava seu corpo na banheira.

    Ele caminhava devagar. O galho que usava como muleta era o passo mais firme do que suas altas e magras pernas davam, de um jeito que seus joelhos tortos pareciam mais se arrastar. Tudo nele era… Hyd não queria olhar. “Por que sinto tanta dor dele?”, perguntou-se.

    — Quem é você? — bravejou Cei Witernier, pondo-se diante de Jenna. — O que você quer, andrajoso?

    — …Eu?

    O corcunda levantou os lábios debaixo, que tremularam como ondas da banheira. Hyd viu a cor leitosa ao redor dele, quase tão pálida quanto a pele mal cuidada do corcunda, aumentar. Ela se tornou dominante, então rumaram sua barriga; e a donzela fechou os dentes. “Dentes”, pensou ter visto. “Ele tem dentes na barriga. Ele tem dentes na barriga…”

    “Pare, pare, pare, pare, pare.”

    — Você… me chamou… de andrajoso?

    Soltou a bengala.

    — A mim? Eu?

    Suas mãos espasmaram. Tremeram, giraram. Hyd viu a mancha abaixar a cabeça. Os olhos vermelhos olharam para os lados. O corcunda deu um passo quase caído para frente, abrindo sua boca para respirar como se não tivesse pulmões. Seus dedos começaram a se jogar fora de ordem, balançando quase que demoníacamente por suas mãos magérrimas e ossudas!

    — EU? — Agarrou sua barriga magra; sua túnica magra e suja mostrou as costelas ossudas. Cei Witernier arfou, apontando a espada por cima da cabeça. “Parem com isso, parem, parem!”

    — Peço desculpas pelo… hehf, que afirmei! — arfara Cei Witernier, tentando empunhar a espada com as duas mãos. Jenna fraquejou. Suas pernas caíram e sua espada se fincou no chão. — O que quer conosco, senhor?

    — Vocês? — olhou para Hyd. Ela engoliu em seco; uma soma de sentimentos atarracou seu coração. Chorou por pena, cerrou os punhos de raiva, cerrou os dentes de medo… — Ela. Deixe a praga aí. Vão embora. Não. Não vão. Vocês vão ficar. Vão me contar onde ela vive. Aí vou matá-los. E depois, mato a maldita. E mato a cria dela. Mato, mato, mato…

    — Sinto que… não posso… permitir isso…

    Cei Witernier olhou para donzela, quase fechando os olhos de ametista. “Pare, pare, pare!” Ela juntou as mãos. O que poderia fazer além disso? Era fraca, magra, pequena. Que outra coisa teria além de pena? Seu Cei, que lhe prestara juras com os olhos tão púrpuras… Ele brandiu seu aço, se disparando contra o corcunda com uma estocada; seu alvo não se moveu. A espada fincou seu peito, e Cei Witernier fez o que pôde para verter sangue.

    Mas a criatura não sangrou.

    Witernier sim. Sangue e bile verteram de sua garganta enquanto virava um vulto. Um rastro de respingos de sangue acompanhou seu corpo no ar por metros antes que batesse em um amieiro.

    — Um. Ele já… Ah — suspirou o homem. Jenna penetrou uma faca na sua garganta e uma espada no seu coração.

    Hyd engoliu o ar podre e medo. As partículas vermelhas circundaram a palma do homem, e Jenna não conseguiu fugir. A cintilante luz azulada preencheu sua face, porém a mão agarrou seu rosto.

    E o fedor de carne queimada gritou ainda mais alto do que o grito agonizante da sua amiga.

    — Você vem comigo, então — ordenou o corcunda. Como um soprano tão belo poderia ser tão rouco e esfacelado? — Vai para longe. Praga. Praga imunda. Você tem o cabelo parecido com ela. Tem certeza de que é filha dela? Não, você é. Você é, é filha dela. Eu vejo no olho. Nesse pedaço azul no seu esquerdo. Tem três cores de olho. Eu vejo. Vejo bem, vejo BEM! BEM! MALDITO ELÓI! ROUBOU TUDO DE MIM! — Chutou Jenna na garganta. Hyd fechou os olhos, chorando; ouvia os gemidos e lágrimas dolorosas da amiga. A mancha se aproximou. Seu parzinho de olhos vermelhos mostrou um fociinho pontudo e pelos longos na sua ponta. — Roubou minha mulher! — chutou Jenna no seio. — ROUBOU sua virgindade de mim! — pisou nas suas costelas. — ROUBOU nossas filhas de MIM! DE MIM!

    Hyd grasnou de puro medo e dor. Forçou os olhos a fecharem com força, mas um par de dedos ossudos e fedorentos agarrou suas pálpebras; o único olho amarelo-âmbar cravou-se nos seus.

    O rato fuçou perto. Hyd percebeu que o que tinha na boca era um pedaço de queijo podre — e sua visão desentorpeceu o suficiente para notar ratos. Três ratos menores rodearam o rato branco…

    E então um par de mãos negras e amarradas os esmagou, com um impacto violento que mãos de mulheres não deveriam ser capazes de fazer.

    A donzela reparou Jenna sorrir. Dentes quebrados, o rosto inchado e sujo. Seu corpo nu fedia a algo que não conhecia, com ainda mais cicatrizes e queimaduras… Seu rosto tinha uma palma queimada. “Ele também me queimou”, lembrou. O grito que dera fora o mais alto que já ouviu. Uma corda estava amarrada nos seus punhos queimados, uma queimadura negra e feia…

    — Não faça barulho — sussurrou. Ela vagarosamente estendeu os braços machucados para detrás da cabeça de Hyd. Então a segurou pela nuca. Fez esforço, um nada quase aterrador, e pôs a donzela entre o peito machucado, sujo de sangue seco. — A gente vai sair daqui… eu prometo… Por favor, Hyd… Não faça nenhum barulho…

    E dormiram.

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