Capítulo 44: A Última Vez (2)
“Foi um nome que surgiu como o vento. Uma das três partes de algo que seria bem lembrado até o final daquela Era. Três metades: um dragão que tudo sobrevoa, uma espada que a tudo aguenta e uma cegueira que tudo enxerga.”
Izandi, a Oniromante

Apertou o grosso aglomerado de penas, que juntos pareciam um único par de longas penas prateadas. Seus músculos não relaxavam, mesmo no frio que vez ou outra fazia sua mente vacilar. A libré de Draconeiro o salvava nesse aspecto.
Era composta por camadas e mais camadas de tecidos e couro e óleo-de-dragão costurados sob pressão — se lembrava-se corretamente. Um conjunto de felpos macios aqueciam e apertavam sua pele, enquanto os externos se misturavam ao louro-aveia de seus cabelos. Piscou profundamente e, mesmo na primavera, lufou uma visível nuvem de ar pálido.
Natharel não era a única razão de exaustão do id Baene. Poucas horas antes de seu treino, tinha comprometido seu nome com um pequeno empréstimo para o Banco do Dragão. Nada que o Tesouro da Cidade não pudesse pagar, sabia, e Aretes era surpreendentemente bondoso com seus prazos. Iminência de guerra, meu amigo, ele disse. Deu-lhe um prazo de vinte anos. Ezekel de imediato partiu para os portos e as guildas — encomendou navios. Muitos navios. E, é claro, ouviu coisas — descobriu que marinheiros gostavam de falar.
Um navio recifano cheio de escravos, pálidos que nem alabastro, todos louros e ruivos e cheio de mulheres atracou no Porto do Dragão, dissera um. Ezekel semicerrou os olhos. Estava preparado para enviar uma carta de questionamentos para Sua Majestade Mynsom, e assim que teve papéis em mãos, só pôde pensar em navios e em Ofina. “Meu último dia antes de partir”, refletiu. Sua amada e adorável esposa partira para uma casa-de-bolhas sem sequer avisá-lo. Sua cicatriz latejou ao mesmo tempo que Cei Sefriri surgiu como uma sombra reluzente e, saltitante, disse: — Os homens dos Goldwey chegaram, senhor.
“Estarei dando a proteção da Cidade para um montículo de serpentes”, refletiu e, pouco depois, bebeu de um delicioso suco de amoras e teve os braços quase cortados fora por Natharel.
Assim que saiu do treino, suado como um rio, as cinco aias de Ofina lhe esperavam do lado de fora. “Finalmente terei minha paz com minha amada?”, rezou. As aias o levaram para um banho, primeiro. Ele não reclamou. Fora vestido com um tabardo laranja com bordados floridos, calças de algodão e seus cabelos foram penteados com uma trança, com perfumes doces aspergidos no seu peito. O cortejo de donzelas recifanas o levou pelo Palácio durante um belo anoitecer. Ezekel subiu longas escadas, e pensou estar sendo levado para seu quarto e em alguma travessura da esposa.
No entanto, as aias lhe levaram até um dos jardins suspensos do Palácio… Eram cinco grandes pilares drapeados, interconectados por arcos e longas prateleiras, cheias de jarros. Uma das criações de Gunter, o Artífice: cada um dos cinco lados possuía das mais belas flores que cresciam somente em cada um dos Cinco Reinos de Wouleviel. Não possuía teto, mas um pequeno vitral inclinado se formava no meio, conectado às pilastras; e nem paredes.
Todavia, agora tinham: paredes de seda escura, e uma silhueta feminina e gestante mexia em coisas cá e lá. Ezekel foi atingido por um forte odor assustadoramente doce. O céu da Cidade de Diamante estava enfaixado por largas e esparsas nuvens cinzas, que ladeavam o rosado do anoitecer com um tom de azul primaveril agradável aos olhos.
Bandos de aves o davam tons de brancos, vermelhos e azuis enquanto atravessavam os céus, separando-se e descendo às árvores no jardim dos besouros, e as aias riam. Ezekel ignorou os passos delas indo embora, deixando-o só no teto de uma edificação tão alta que gostaria de nem pensar na queda.
Dera poucos passos, cada vez mais sentindo o agradável cheiro das rosas — e assim que passou pelas sedas, percebeu que não era cheiro de rosa nenhuma. Chá borbulhava num bule de vidro, sendo despejado em uma xícara por delicadas mãos quase tão negras quanto o vestido e a noite que chegava, e mesmo ele não emitia um cheiro tão doce.
Enrubesceu-se de imediato ao reparar na esposa. Seu nariz já havia sido domado, mas seu coração não aguentou muito depois. A bela recifana tinha sua pele refletindo luz e, sem nenhuma culpa, fitou o marido enquanto despejava um líquido vermelho-escuro dentro das xícaras de ambos.
Sentiu o cheiro do cacau misturado com algo… Mel de vespa-vigária, percebeu; o odor permeava o pequeno laboratório onde estudava insetos com seu falecido professor. “Deuses. Ela está louca…” E, no entanto, Ezekel percebeu que o seio totalmente nu senão por somente a cascata de cachos pretos era a coisa mais bem coberta nos trajes de despedida da amada.
— Nosso adorável reitor aconselhou-me a evitar uma quantidade alta em demasia — ela melodiou, sorridente; seus olhos se misturavam ao negrume do anoitecer. Ezekel engoliu em seco, com um pequeno sorriso no canto da boca. — Todavia, meu adorável homem-moça não está grávido e, portanto — sorriu ainda mais profundamente; ela retirou um segundo frasco, não muito maiores que polegares… e despejou todos numa só xícara —, não sofrerá dos problemas que eu sofreria.
Vestido-trepadeira era um dos muitos nomes recifanos que tinha aprendido na língua da esposa; pouco depois de um gole daquele chá adulterado, descobriu que a razão não era a sua semelhança com uma trepadeira de verdade.
Os efeitos ainda duravam, mesmo que poucos. Ezekel suspirou, inclinando a cabeça de alguma forma que imaginou reduzir os ventos gélidos de beijarem suas bochechas e rosto cansado. Seu escalpo também não aguentou muito.
— Artreni se cansará em pouco — avisou Natharel aos gritos, apertando-se na sua parte da sela. Detrás dele, baús estavam amarrados por centenas de cordas grossas. — Que bom que sugeriu voar nela, irmãozinho!
“Fala isso porque está acostumado com o voo!”
Ezekel mordeu os dentes graças ao rosto calmo do irmão; os músculos do seu peito queimaram de dor. Ele engoliu a dor em silêncio, piscando repetidas vezes para aquecer os olhos congelando. Seus cabelos estavam quase de pé. Apertou as pernas na sela e abaixou a cabeça novamente; tanto a espada longa quanto a de pena-de-dragão tremeram na sua cintura.
— Acha que estamos onde?! — gritou Ezekel.
— Muito longe da Cidade de Diamante, isso eu garanto!
— É SÉRIO!
— Estou falando sério! — gritou Natharel. Apertou-se na sua sela. — Não sou um Draconeiro Vinculado, irmão! Não posso olhar pelos olhos de Artreni! Se pudesse, eu saberia…
O solo abaixo de seus pés não tinha nada da beleza que testemunharia se estivesse sobre rodas de carruagem; borrões de verde e azul pouco iluminados pela alvorada eram tudo que seus olhos conseguiam distinguir daquela altura. “Draconeiro Vinculado”, repetiu o rapaz para si. “Seria interessante…” Subitamente, seus braços relaxaram, puxando as penas para cima — Artreni respondeu, inclinando seu corpo e voando ainda mais alto.
— Pare com isso! — bravejou Natharel. Ezekel sentiu arrepios e jogou seus braços para frente. A dragão-real empurrou seu corpo em um sutil mergulho, junto de um alto piado. Vendo o irmão grunhindo de medo, Natharel agarrou as mãos enluvadas e apertou-as nos amontoados de penas.
Artreni se estabilizou no ar.
— Que desmaie, mas NUNCA relaxe seus braços! — ele bravejou, gritando de propósito na orelha do mais novo. — Irá matar-se assim, em nome dos Deuses, irá nos matar!
Ele grunhiu mais uma vez. “Se acalme, se acalme! Foi você quem sugeriu ir em Artreni”, pensou consigo. Fechou os olhos por um instante, ergueu o peito e cerrou os dentes. “Fui eu quem disse ‘Se voarmos, chegaremos mais rápido. Poderei me organizar melhor e voltar para cá rápido.” A hora estava cada vez mais próxima… Só a ideia de não estar ao lado de Ofina por algumas semanas deixava seu coração amargurado. Deixá-la sozinha no parto era mil vezes ainda pior.
No meio dos “eu te amo”, às vezes surgiram nomes diferentes — nomes para os filhos. “Estava difícil conversar com aquele chá enchendo meu cérebro e corpo com fogo”, relembrou-se, corando. Foram meia centena de nomes que saíram de suas bocas, quando não no meio de “eu te amo” e o gosto da sua língua dentro da boca com gosto de uvas e chá. “Aceitarei qualquer nome que der a eles”, pensou. “Mas voltarei a tempo disso.”
— Pouse Artreni! — ordenou o irmão. Ezekel franziu os olhos e engoliu o ar frio. — Ela quer descansar. — “Como sabe?”, pensou o mais novo, todavia não questionou em voz alta.
Inclinou as grandes penas da dragão-real calmamente, então sussurrou Ao solo na Língua dos Dragões-Reais. Deveria ser sussurrado, sempre; Alderner, o Pescoçudo, uma vez devorou seu Draconeiro em uma mordida por ter gritado na Língua. Desde então, nenhum Draconeiro repetiu o mesmo erro…
Ventos riscaram o rosto dos Godwill e da dragão enquanto desciam vagarosamente em direção a um par de baixas montanhas ladeando um serpentinoso rio com largura para cinco ou seis navios passarem lado a lado. Ezekel mordeu os lábios de excitação — não somente por finalmente poder tocar o solo com seus pés e se livrar do frio.
“O Vale!”, comemorou na sua mente. No entanto, quanto mais a dragão-real diminuía a altura do seu planar, mais Ezekel percebia o quão errado estava em sua dedução. O Castelo das Garças não existia na sua frente, mas sim uma alta colina com uma vila e grama ressurgindo.
Ao seu leste, as montanhas baixas eram irregulares e pouco pontiagudas, com cumes tão baixos que não sabia se deveria chamá-las de montanha.
“Eu me enganei mais uma vez”, pensou. Natharel soltou suas mãos, e queria o casado soltar as suas também. Queria também dar meia-volta e retornar para a cama onde deixara sua esposa em felizes e acanhados arfares. “Não deveria ter aceito a Coroa dos Acenos”, concluiu…
— Está será a última vez que te deixo tão longe — repetiu para si, sem perceber a voz alta.
— O que disse, irmãozinho?
— Nada. Oh!
“Este seria um ótimo nome… E um bom aviso.”
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