Capítulo 46: Ode ao inferno (1)
“Dê-nos o Rei, dê-nos o Rei!”
Izandi, a Oniromante. Excerto de “Mistérios da Pedra de Gelo”

— Entorpecida pelo beber. Após, pelo medo e desespero. Segues fazendo-se tudo possível para não ter a clareza das coisas. Abrides vossos olhos, Faina Eykarisna Arrundria? Está em dores, e prestes a ver a pior de todas.
Um frio colossal percorreu sua espinha. Ela grasnou, engolindo água gélida — fria, fria, fria. Eram como espinhos atravessando sua carne, espinhos com dentes afiados, famintos, mordedores. As mordidas doíam; escalavam seus dedos e ventre, queimavam nos braços cortados e no rosto. Ardiam no seio esquerdo, ardiam.
Era um ardil infernal.
A água violou sua garganta com ainda mais impeto e ódio — furor. Ela a odiava. Odiava, e violava sua carne com dentes ferozes, famintos. “O que fiz de mal a tudo? Nascer mestiça?” E de que outra forma teria nascido? De que outra forma? Dentes enormes, pequenos e ásperos também. Todos vilipendiavam sua carne e chapinhavam seus ossos cansados, devoravam seus músculos. Estava ardendo. Ardendo!
— O que sentes agora? Tens olhos para ver e boca para falar, Faina Eykarisna Arrundria. Use-os. Não temos tempo. Você não tem tempo.
Mesmo com o aviso, nada saiu da sua boca. Ela ardia também. Estava carcomida de dor, esfacelada de desastres. De sangue. De sangue dado e de gritos de imploro. “Por que?” Tinha gritado antes também. Dois dias inteiros, gritando, contraindo e expelindo, gritando, jorrando sangue de suas pernas enquanto sentia o desespero da vida que queria conhecer a luz e o ar confortável do mundo. Não conheceria o frio. Não conheceria a expulsão. Teria tido sempre um braço para abraçá-lo, uma boca para confortá-lo, um aconchego no regaço e beijos na testa.
Tudo que quisesse além disso! Teria-lhe dado espada, a lança e o mel. O batizaria com a luz do sol que só poderia ver nas Ilhas Quentes além do mar congelado. Comeria das frutas que sua mãe falou, caçaria com os amigos que fizesse! Não pouparia os inimigos que faria, não pouparia as mulheres que amasse! Traria dezenas de esposas para sua benção, traria centenas de netos para seu aconchego!
Deveria ter tudo para sempre — pertinho de sua mãe. Ao lado dela.
Quis chorar, espernear, mas até o último recurso da agonia lhe fora roubado pelas águas queimantes. Seus olhos também queimavam. Estava doendo, doendo mais do que saberia descrever, doendo tanto…
“Foi aquele homem de branco! Aquele homem encapuzado com branco até nos olhos, aquele minúsculo homem de branco…!”
— Abra os olhos, filha de meu pai, Faina Eykarisna Arrundria, Descendente de Gigantes e dos deuses de outrora. Abra vossa boca.
— CALE-SE! — gritou, ardendo, ardendo. Ardia. Queimava. Estava em chamas; chamas brancas, chamas negras, tudo queimava, tudo. — CALE-SE, CALE-SE, CALE-SE!
Seus gritos foram altos como um Dia de Fogo. Ainda assim, a imensa mulher abriu um sorriso no canto do lábio. Pequeno, tão pequeno que a irada Faina quase não percebeu — e como poderia perceber, circundada de tanta dor? Jazendo soterrada em águas pálidas, cada átimo de seu corpo agonizava e ardia, ardia, ardia, ardia.
— O martírio do inferno — respondeu a mulher, cobrindo o seio com os braços cruzados. Faina grasnou de dor em silêncio, tentando tirar seu corpo daquela massa gelatinosa, circundada por um inferno negro, chamas enormes que eram tudo que não a água branca e queimante. — Agora sei que me escuta. Vamos, filha de meu pai, erga-se desse martírio.
Faina grasnou; sua boca encheu-se de água, e o fogo queimou sua garganta por dentro, mordendo gelado cada átimo que poderia ser mordido. Todavia, a imensa mulher se jogou nas chamas também; seu corpo despencou nas águas brancas e chamuscadas, e no mesmo segundo, foi engolida pelo branco infernal.
— Me conte, aquela cujo nome significa Leão Sobre a Montanha, o que aprendeu?
“O que aprendi?!’
‘O que eu tenho para aprender!?”
— Dor!
— Ah! — Ela abriu um sorriso visível; seu corpo se incinerando naquelas águas era o odor de centenas de anos de morte. Faina sentiu os olhos serem tomados por ainda mais fogo, violados pelas águas. — Compreendo da dor. Ao meu povo, vivi curtamente. Quinhentos ciclos dos Dois Sóis, mil vezes a Chama apagada e incontáveis ciclos das Luas. Tive mais partos que pude suportar e, no campo de batalha, mais espadas em minha garganta do que poderia aguentar. Observei mundos virarem mundo, testemunhei o Sol se apagar. Tiveste uma criança? Tive várias, e vi em pessoa a morte de todos. Vi minha Hyla, minha tão bela e preciosa primogênita, alta como nunca fui, bela como nunca fui, amável como nunca fui e singela como nunca quis ser, ter seu corpo esmagado pelo calcanhar do Senhor do Inferno. Vi meu Holsh ser esmagado na ponta de seu dedo, e vi também meu recém-nascido ser esmagado ao meu lado, quando o Senhor do Inferno pisoteou meu castelo. Morri ali, garota, o final de minha curta vida. Ele também estava no meu peito. Jovem, forte, loiro como trigo, chorão como um bom neném. Servi meu corpo de escudo enquanto ele prendia sua vida na auréola do meu seio. E o vi morrer antes de mim. Nós, mães, estamos amaldiçoadas. Ou nunca vivemos o suficiente para ver nossos filhos em glória ou vivemos o suficiente para enterrá-los. Eu não vivi para nenhum dos dois. O que aprendeu, Faina?
A água penetrou sua pele mais profundamente. Seu coração estava esmagado. “Por quê?”, se perguntava. Por que tinha que ver isso? Por que tinha que estar queimando? Por que tinha que estar viva naquele inferno? Por que ouvir…
— Por quê? — sibilou. A água queimava seus lábios.
— A dúvida. É um bom caminho.
— Do que fala… — grasnou, sua voz parecendo fugir para dentro da garganta esfacelada. — O que quer de mim?!
— Nada.
Arregalou o que restava dos olhos. A mulher pálida estava em restos, carne desolada e destroçada, vermelha; sua pele tinha inteiro ido embora, e agora nem carne viva restava. “É assim que irei ficar?”, pensou Faina. Deixaria assim estar o corpo que sua mãe amou tanto e que seu filho tanto dependeu? Destruído? “Por quê? Por que isto está acontecendo?! É Vymya levando meu corpo para o estômago do Deus Gritante?” O que tinha de feito tão errado?
— Mente…
— Filha de meu pai — a mulher virou seu rosto subitamente para Faina, olhando-a com os músculos sangrando e queimando direto nos olhos —, eu nunca menti. Por isso, fui amada. Quando esteve nos braços de um amado pela última vez? Se me recordo devidamente, está no início do seu ápice de beleza. — Tocou o rosto de Faina, com a carne dos seus dedos se desfazendo antes mesmo de completar o ato. — É de grande beleza, e de grandes ancas. Aquele Gato dos litorais…
— Cale-se! — bravejou Faina. Forçando seu braço, tentou golpear a face da gigante, no entanto, o esforço doloroso fez toda a carne que cobria seu braço se converter em uma massa de sangue e ossos azulados, brancos e negros. A dona do braço destruído teve os lábios virando ondas de agonia e medo, mas continuou: — O que quer de mim!?
— Já disse: nada. Nada pode dar-me. Já avisei-te: estou morta, há muito mais do que vós saberdes contar.
— Então cale-se! Cale-se e me deixe morrer… Me deixe morrer…
— Ah! O martírio! — Sorriu, ou achou Faina que fosse; toda carne da boca fora trocada por dentes se desfazendo em massas de sangue queimado. — Deixe-o, garota. Há o que se pensar. Por exemplo: o que pensa da garota, Mirta? Se você foi atravessada no peito, o que mais será dela? Ou mais: e de seus outros homens?
— …Eles…
— Foram traídos no último momento, homens feais e leais veem sua senhora ser atravessada por uma lança. — Levantou os tocos para cima. — O inimigo se surpreende, não entendendo, e então vem-se o morticínio: o primeiro aliado atira a primeira flecha, o segundo inimigo grita e o terceiro mira com o arco…
— Pare… Me deixe morrer…
— Não pense em morrer. Você não vai. Sangrou mais do que aguentava na frente dos esfacelados, rios jorrou para eles. Teve o peito furado pela arma, coração transpassado pelo metal.
— Me deixe morrer…
— No entanto, é filha de meu pai tão quanto eu. Sobreviverá, gostando ou não. Vivi dois meses com a garganta aberta e costelas furando o coração, Faina Eykarisna Arrundria. Não morrerá. Não aqui.
“…Por que? …Não posso sequer ver meu filho…”
— Felizmente, você pode morrer no outro lado. Veja, está próximo dele. De uma geada. Eu vejo nos seus olhos: há uma grande fogueira acesa próxima do seu corpo. Águas tão frias quanto a doença de um filho circundam seu corpo rasgado, ainda que mal possas sentir o quão gélidas são. Trepadeiras negras e lastimáveis crescem sobre os musgos e limo das paredes da caverna. Um tronco derrubado é ocupado por um velho, um sacerdote que saboreia o frio ancestral de meu pai enquanto sua carne se desfaz em júbilo. Pouco ao nosso lado, sua amada amiga deixou um manto de pele de leão, para cobrir sua nudez quando acordasse. No entanto, sobre ele, o sacerdote repousou um cadáver que preferirá não ver. Aos pés do sacerdote, seu objeto de adoração. A boa e velha espada dos seus ancestrais, Faina, limpa e de fio indestrutível, pois é Gelo-Velho. Não muito distante, uma porta que só se abre quando sangue é sacrificado…
— Meu filho…
“Aquele maldito homem de branco…”
— Seu Krazii está sobre o manto de pele de leão. Sinto muito. Seu corpo é Arrundria. O frio não o apodrece. Está limpo do sangue que o tirou a vida, liso como recém-nascido, com todos os fio sobre a cabeça e o peito a se ver ossos. — Ela pareceu tentar se mover; Faina percebeu que só lhe restava a cabeça, ossos carcomidos. — O que aprendeu, Faina?
“Foi ele… Foi aquele maldito homem de branco!”
— Eu…
— Criatura patética! — bravejou. — Diga!
— Eu…
— FALE!
“Foi ele…”, crocitou; ainda que não tivesse garganta, sentiu-a se fechando cheia de ira. “Foi aquele maldito homem de branco! Aquele maldito homem de branco!”
— Odiar — respondeu. — Eu aprendi que o quero morto! Que o quero queimado! Que o quero espalhado pela cidade!
Um sorriso se formou no nada.
— Mentirosa. É uma viciada. Se é o que deseja tanto, trate de acordar e morrer lá fora. Há uma espada e uma fogueira. Se segurar bem, a espada é grande o suficiente para estripá-la até o pescoço. As chamas doerão mais, todavia, é garantido que morrerá. As águas deste fluve amam-te, infelizmente afogamento ser-lhe-á impossível, e o sacerdote pouco adiante jamais ferirá mais que seus sentimentos. Adeus, Faina, viciada em embriaguez.
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