Capítulo 46: Ode ao inferno (2)
“Dê-nos o Rei, dê-nos o Rei!”
Izandi, a Oniromante. Excerto de “Mistérios da Pedra de Gelo”

Seus olhos se abriram para o negrume mal iluminado por uma fogueira, um breu quase absoluto e úmido. Seu rosto molhado se ergueu no meio das águas como se desprendendo de uma camada grudenta de mel apodrecido e leite podre, e quando jogou os olhos desesperados que quase fugiam das órbitas, tudo ao redor era exatamente o que a mulher descreveu. Seu corpo estava quase submerso em uma corrente de águas esbranquiçadas, que corriam vagarosamente até a parede da caverna.
A fogueira ardia, o sacerdote comia Gelo-Velho, as trepadeiras eram verdes quase mortas…
O cadáver do seu amado Krazii estava imaculado sobre o manto de pele de leão.
Faina esticou o braço para pegá-lo, ignorando o olhar do sacerdote e a fogueira. A água respingou da sua pele esbranquecida, molhando gelidamente o corpinho do seu filhinho. Agarrou-o entre os braços. Aninhou-o do seio. Percebeu como suas mãos estavam gritando, tremendo, trôpegas, parecendo se desfazer em várias imagens, e as gotas continuavam a respigar como um rio. Uma desceu da cabecinha tão amável e chegou à marca da lança, entrando no buraco quase maior que a cabeça do menino.
Encostou os dedos no cabelinho dele. Louro, brilhante à luz das chamas…
— Krazii… — gemeu; uma nova onda de gotas respingou sobre o corpo pálido. — Meu Krazii… Kra… kr… ah… Ahg… Ahhg! Ahhhgggg!
Aninhou-o ainda mais. Nenhum calor, nenhum choro, nenhum tremer irritadiço.
— Aaahhhgg! — Seus olhinhos estavam fechados, assim como os lábios outrora tão vermelhos, mas agora empalidecidos e fracos… — Aaaahhhhhg!
“Por que, por que, por quê?!”
— Por quê…
Um estalido ósseo ecoou junto do seu pranto, mas não o percebeu. Seu mundo, seu pequeno mundinho cercado de neve, estava empalidecido e sem nenhuma força. Conseguia senti-lo apertar seus dedões quando brincava com eles, conseguia senti-lo mordendo o seu seio para se alimentar, conseguia senti-lo fazendo todas as coisas que um pequeninho Arrundria conseguia fazer… sem se mover. A carne estava dura, sem calor… “Está morto”, lamentou, com olhos vermelhos e empalidecidos. “E está mais vivo do que eu…’
‘Ah, meu Krazdoro… meu Krazii…’
‘Por que antes de mim? Por que, meus deuses, por quê?”
— Pai-da-Neve — sibilou entre fungadas e dentes trêmulos, assim como os dedos no peito ferido do filho. Aninhou o corpo no seu. Havia mais calor assim… e nenhum, nenhum…
“Estou inconsolável.”
Abaixo da única perna, a espada de Gelo-Velho refletia a luz da fogueira no seu corpo frio e escuro, como se as brasas fossem pequenas estrelas douradas queimando dentro do corpo congelado. Era assim que Gelo-Velho nascia? As estrelas do céu congeladas dentro de gelo? Essas estrelas brilhariam para seu filho agora? “Estão levando ele…”
Na única perna que possuía, o Pai-da-Neve se pôs de pé. Da outra perna restava ainda um toco mal coberto, com as bordas congeladas e cheia de pústulas e carne podre, apodrecida há anos. Era dor. Tudo era dor. Viver era dor. Ao menos morta, estaria com o filho, não? Nas Ilhas Quentes. Não nas depois do mar Congelado, de onde sua mãe vira, mas nas verdadeiras.
O sol era eterno, cheio de prados com ricas flores coloridas e sempre havia trigo, mel e uva para a colheita, nozes encheriam o chão e frutas raras e vermelhas enchem os pratos. Os homens sempre tinham as armas afiadas para a ceifa, os guerreiros sempre traziam carne! Ah, seu amado filhinho comeria com fartura — todos comeriam. Não haveria Noite.
Carne de cavesão, auroque e cavalo, assados na gordura de cordeiros todos os dias! Nenhuma irmã precisaria encher a barriga do irmão com seu leite, nenhuma mãe precisaria deixar de comer… Os homens ergueriam suas casas com pedra e troncos grossos, sem precisarem forrá-las com couro de baleia! As mulheres fariam morada e teciam lã, seus partos não doíam e suas crianças obedeciam…
— Ahhg…
— Verão — murmurou o sacerdote, olhando para as chamas. — Ouvi essa palavra quando sua mãe chegou aqui, Rieq.
Faina soergueu o rosto, seus lábios ainda grudados na testa do filhinho. O segurava como vivo, cheia de cuidado para não afundá-lo no flume. “Tome a espada e me mate”, pensou ela. “Tome as chamas e incinere-me.” Não conseguia olhar para o velho homem que ouvia a voz dos deuses. Havia somente o brilho e o fio da espada. “Mate-me. Não resistirei!” Aquele pé descalço estava sendo tomado por uma branquidão: uma crosta de gelo se formava nele, parado. “Ele não me matará.”
Tirado uma das mãos do seu filhinho, tateou o solo escuro. Água do flume transbordou, molhando o manto de leão mal tecido, cheio de trapos e pontos mal feitos.
— Avisei você. Avisei: não marche ao Sul. Mas fostes mesmo assim. Avisei: abandone-o e faça outro. A esta hora, teria-os no ventre. Há geada lá fora. Como avisei, estão morrendo. Estão morrendo todos. Os deuses limpam a face desta terra deles, finalmente cansados dos Bárbaros e dos Caras-Queimada. No entanto, agora também limpam seu povo. A geada chegou, Verão, chegou. Está lá fora, e não há nada que impeça.
— Me mate… — sussurrou.
— Não. Não matarei. Por que o faria?
Faina soergueu os olhos. Não queria tirá-los do filho, de maneira alguma. Mas lá estavam, virados para o rosto ferido e velho, flácido do Pai-da-Neve. “Ignorei a voz dos deuses”, pensou ela “, e agora eles tiraram-me do meu filho. Não, eles o tiraram de mim de todas as formas, antes mesmo…” Foi aquele homem de branco, aquele maldito homem de branco…
— Você não se importa com o mundo lá fora…
“Se todos vão morrer, então todos estaremos nas Ilhas Quentes juntos…”
— Não, não me importo. Avisei disso. É meu dever: dar avisos. — Ouviu-o andar a saltos, ao mesmo tempo que ouviu gelo quebrando e um barulho molhado de sangue se espalhando e carne rasgando. Faina olhou para cima. O homem estava há poucos centímetros do manto de leão, e com olhos cheios de incredibilidade, de ira, de desgosto, mas de ânsia.
Seus olhos escudrinharam o corpo de Faina. As águas mão deixaram que ela mesmo visse: suas mãos estavam maiores, azuis e azuis. A ponta de seus dedos estavam tão azuis quanto a Noite, tão azuis quanto Gelo-Velho. O azul cobria o ventre dos braços em longas retas até os cotovelos esmaecidos, rosados. Mais da metade do seu seio esquerdo estava coberto por manchas azuis, chegando até o outro lado das suas costas. No reflexo do flume rebrilhante, cujas águas tornavam-se vagarosamente cristalinas e escuras, seu rosto tinha manchas azuis, respingos esbranquecidos e manchas como as de sua mãe…
— Ahh! — crocitou o Pai-da-Neve, com os olhos estirados para o teto como se em êxtase. Faina puxou o manto de leão para cobrir sua nudez e, com o sacerdote aleijado se disparando para trás, percebeu que não era luxúria por seu corpo. Havia um breu cobrindo a face extasiada do homem velho. — Saia das águas! Saia! Aviso-te, saia!
Um monte de água cristalina bateu no lábio da mulher. Com uma mão no filho, posicionou o manto acima das vergonhas e tentou sair das águas. Caiu de cócoras logo depois, batendo os joelhos e rosto no chão. “Tão… pesada… Tão… cansada…” No último segundo, arqueou as costas para proteger o filho, e agora seu queixo doía e vertia uma simples gota de sangue pelo nariz.
O flume transbordou mais água. Moveu-se pelos joelhos e corpo de Faina, engolindo aquele filete e o misturando de volta ao conjunto. “É sangue”, percebeu. “É um lago de sangue. Estou encharcada de sangue dos meus ancestrais.” As águas subiram de novo e seu nariz estralou, soltando mais sangue, que foi engolido pelas águas imparáveis. “E da minha descendência…”
— Eu vejo! Está aí! Eu posso vê-la! Está aí! — ele crocitou, levando a única mão para a boca, mordendo os dedos com força para seu maxilar estralar diversas e dolorosas vezes. Faina mal conseguiu ver…
Quando o Pai-da-Neve saiu da alcova de trevas…
Seu rosto cansado tinha recuperado a altivez. Invés de pústulas e carne apodrecida e flácida, seus olhos irradiavam em tons de azul claro como o Dia, e sua pele parecia uma imaculada parede de mármore. Sua perna tocou o solo, então a outra, e a mão antes amputada disputava espaço na sua boca cheia de dentes.
— Cubra-se, Rieq — respondeu uma voz nada seca, nada congelada e nada sedosa; ao contrário, era jovial, energética. Ele se jogou de joelhos, batendo a testa no chão de rocha e musgo envelhecido diversas vezes, até sua testa avermelhar com o sangue. — É bendita!
Faina expirou e mordeu os lábios. “Por quê?” Os Arrundria descendiam de deuses. O primeiro era um deus, e hoje estava sentado ao lado de todos os deuses. Já tinha se acostumado com adoração. As moças beijavam seus braços e ventre por fertilidade, as crianças abraçavam suas pernas, os idosos se ajoelhavam e os rapazes sempre brigaram por seus lábios. No entanto, o sacerdote a adorava de…
— Verão. É o Verão. Eis que chega o Verão!
Ele atirou a mão contra a própria testa, fazendo-a verter sangue…
Seu sangue tingiu sua mão de vermelha, uma única podre mão que despencou no chão ao mesmo instante como um galho. O braço inteiro caiu no solo e, com um chute, foi disparado contra a fogueira. Naquele breve segundo de contato, ela explodiu em um mar de brasas vermelhas, gigantes, que tocavam o solo e queimavam as trepadeiras e aranhas que escalavam por ele. Os insetos choraram de dor, gritando, caindo no solo enquanto esperneavam com seus corpos em chamas vermelhas…
— É bendita! — Olhou para Faina. Olhou para o filho que escondia no peito…
Ele se ajoelhou, tocando-a no ombro desnudado de roupa e forças.
— Ah, minha Rieq. Minha filha dos deuses… Finalmente, eu finalmente posso ver… Ela estava aí, estava aí o tempo todo. Por três mil anos nós esperamos, por três mil anos, esperamos, e esperamos, e esperamos…
— O que… — Faina gemeu, sem ter tempo para terminar… porque seu filho foi roubado dos seus braços.
O cadáver de Krazii ficava negro quando nas mãos sujas do homem pálido. Não chorava, não esperneava nas mãos de outro. Seu filhinho não fazia nada…
O Pai-da-Neve olhou para as imensas e famintas chamas, segurando a criança pela cabeça, e deu o primeiro passo. Faina crocitou um barulho gutural quase inaudível. Seu coração gritou, sentiu-o esmagar suas costelas. “Não, não, não!”
— Bendita seja a Chama que nos livra da Barbárie!
Atirou mais sangue sobre as chamas.
— Bendito o Filho Morto. Bendita o Amante Morto. Bendita Traição! Bendita a Chama que nos livra da Barbárie e nos separa da carne dos antigos! É o Verão, é o Verão! Venha, Chama Negra, e mate nossos inimigos. Venha, Chama Negra, e incendeie o coração dos vossos enfraquecidos servos congelados! Venha, Chama Negra, arda no coração e guie nossos homens ao Verão! Eterno Rei! Eterno Rei! Dê-nos a Chama! Dê-nos o rei!
Faina só pôde assistir o homem caminhar sobre o fogo sem fazer nada — nada. Num instante, estava ardendo, ele e o cadáver do seu filho. Tentou ficar de pé, tentou andar, mas caiu mais uma vez. Seus olhões de orca observaram tudo, sem conseguir perguntar nada.
Observaram tudo.

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