Índice de Capítulo

    “Os antigos Rieqs de Norq’Riq nunca tiveram algo como uma ‘coroa’. A espada era o símbolo de seu reinado divino.”

    Izandi, a Oniromante.

    Mirta engoliu em seco.

    — Continue… — pediu Faina, tocando seu ombro.

    — Depois, vários dos seus partiram contra os Caras-Queimada. Suas flechas eram enormes e atravessavam as couraças dos homens com facilidade, e os escudos quase se quebravam com o impacto das flechas. No entanto, Chefe Tihimil segurou alguma coisa, e no segundo seguinte, observei um arqueiro perder seu rosto queimado, caindo do posto. O ao lado ficou em choque, e antes que outro arqueiro respondesse, uma flecha nossa atravessou o peito dos dois. Aquele Cara-Queimada gigante fugiu para uma tenda e Chefe Tihimil foi atrás dele, e acabou lutando contra outros…’

    ‘Vendo alguns Caras-Queimada correndo para se proteger em uma tenda, um dos ruivos disparou uma flecha incendiária lá dentro… Então a geada voltou, ay Rieq, e aquele acampamento se fez um inferno… Não consegui ver mais nada direito, somente vaguei para mais perto, tentando me proteger da nevasca. Não me dei muito bem. Quase fui morta por um machado, mas rastejei e fugi de todo o sangue. Até lhe encontrar, empalada…’

    ‘Vencemos, mas tínhamos perdido tudo. Eu chorei de dor por tempo demais antes de perceber que ay Rieq estava viva, e quando percebi, quase saltei de alegria… e olhei direito. Nossos homens ficaram alegres. Já eu, eu senti uma parte de mim morrendo. Ele… ainda chorava… Fizemos nosso melhor… tentei tratá-lo, mas não consegui…”

    Parou, cobrindo o rosto, e chorou. Faina afagou-a e beijou sua testa.

    — Você não fez… nada de errado… — “Ele poderia ter… sido salvo. Poderia estar vivo, se fosse só um pouquinho mais velho… um pouquinho maior…”

    — Pomos-na em uma carroça e partimos até os cavesões gritarem de dor e cansaço. Foi quando encontramos o Pai-da-Neve… E, de repente, estávamos cercados de neve e das construções da Cidade. Ele ordenou: Dê-me o cadáver do filho, e, relutantemente, entreguei. Logo, a carroça sumiu, junto dele e de Krazdoro…’

    ‘Poucos dias depois, eu subi as montanhas e entreguei um manto que costurei para aquecê-la. Quando desci, os Veilodyr surgiram aos montes. A geada tinha destruído o Ferrão, soterrado toda a região mais quente das Ilhas. Eles estão aqui, ay Rieq. Todos os nortistas que puderam fugiram para a Cidade, e está muito perto de que não possamos ficar aqui também…”

    “Tihimil…”

    — Como está o Chefe Tihimil? — perguntou, enfim libertando sua confidente. — Ele se feriu?

    — Chefe Valko faleceu na batalha.

    — Ah…

    Faina não aguentou mais nenhum segundo depois de ouvir a notícia. Era… o velho mais amável que conheceu em sua vida. Queria que ele fosse seu bisavô. O quão mais feliz teria sido? Era o bondoso velho Tihimil. Na única vez que fora até a Tribo Valko, todas as filhas de sua terra vestiam-se com peles confortáveis, e as esposas do Chefe eram tão amáveis e adoráveis quanto suas filhas e filhinhos. Eles tinham rios de hidromel, de cebolas e de mais coisas gostosas… E a tratavam tão bem…

    “Irei matá-los. Todos eles!’

    ‘E quanto aquele homem de branco… estenderei suas tripas das Agulhas até o Ferrão!”

    Quando acordou de novo, sua garganta estava cheia de ódio e Mirta conversava com as servas que faziam seu vestido. Faina tentou se virar e ouvir o que estavam dizendo, mas a parda terminou a conversa e levantou a longa roupa com ajuda de outras. Uma renda de lã misturada a pelos brancos de várias criaturas das ilhas fora usada para dar luz à tecidos de mulher, uma saia longa, que lhe cobria os tornozelos, e um colete de couro amarrado em uma corda de tripa. Pareciam pesados, e com certeza deveriam ser, mas couberam perfeitamente. O colete não possuía mangas e, mesmo pesado, era macio como abraçar uma ovelha dócil.

    — Deixe… as botas para outros… — ordenou, surpresa com o quão melhor sua voz saiu. Comeu mais sopa de legumes, com cubos de peito de mamute e uma fatia de queijo rosa, e bebeu um corno cheio de mel com sal, vagarosamente…

    “Devo fazer os ritos funerários dos que morreram por minha causa.”

    Mirta ofereceu o braço para que lhe usasse de apoio, mas se antes sua amiga mal chegava no seu peito, agora mal tocava no seu umbigo. Fez um afago silencioso na cabeça da sacerdotisa, então se apoiou no couro da tenda…

    Fora dela, havia centenas e centenas dos seus, homens e mulheres, cobertos por camadas e camadas de pele. Escravos carregavam toras de madeira junto de outros homens, ou baús com metal de vulcão, peles, caixotes de gordura para dentro das tendas, outros, afiavam os machados. As mulheres carregavam penas e panelas para cá e lá, e alguns até negociavam. Mas as crianças não brincavam — e isso fez Faina morder o beiço. Não vira meninos brincando com machados de pau, nem as meninas cuidando dos irmãos mais novos.

    Não.

    Não vira criança alguma sorrindo no meio da Cidade quase soterrada.

    Faina franziu o cenho e contraiu os lábios trêmulos.

    Foi então que seus olhos saltaram das órbitas. Fora uma menina quase mulher. Estava encoberta com tantas peles de baleia que parecia um homem, com botas tão grossas que seu andar era difícil — e ainda mais difícil era olhar para a queimadura enorme de frio no lado direito do seu rosto. Tão grande que ocultava os olhos azuis como água no Dia, tão horrenda e negra que ocultava como seus cabelos pareciam fios de trigo salteando ao vento. Uma cicatriz tão hedionda que mal deixou Faina perceber os sacos de pele que carregava nas mãos.

    A menina veio à Faina e Mirta, então se ajoelhou para a mais alta, com um olhar sereno como o do seu filho morto.

    — É para ay Rieq, senhora Arrundria — disse, erguendo as sacas de pele. — Não retornarão sua felicidade, eu sei, mas se  puder deixá-la feliz, mesmo que só um pouco, os deuses vão ficar felizes também, e então a senhora.

    Faina ficou paralisada, olhando para a garota de voz tão singela como se ela fosse uma mentira. A menina deixou as peles no chão e voltou a andar em direção de uma das várias tendas, e a mais alta caiu de joelhos.

    Tirou uma das peles, e de lá encontrou uma pelagem ainda mais branca. Alva como a morte. Era um corpo inteiro, esfolada com devoção ancestral aos deuses: sem vestígio de sangue; costurada nos flancos e reforçada com fios de tripa polida. Alva como a morte, sua juba era farfalhada pelo vento forte, e mesmo sem a mandibula, seu rosto furioso era a de um leão-das-neves cheio de orgulho, com um par de caninos afiados grandes como um par de mãos…

    Era usada para cobrir uma boneca. Uma boneca de pano, um pouco suja e maltrapilha.

    Faina fungou e ficou em silêncio, de cabeça baixa.

    — Mirta.

    — Sim, ay Rieq.

    — Por favor, me aconselhe.

    — A tudo que me for possível, ay Rieq.

    — Há algum lugar bom — falou, e parou para respirar. Seus pés afundaram na neve, e seus olhos se prenderam nas manchas azuis que faziam uma reta no seu braço direito. — Há algum lugar bom para falar com todos?

    Mirta fechou os olhos por um instante, apertando a pele de baleia sobre os ombros. Seu rosto fora coberto por sombras, e Faina olhou-a com olhos distantes.

    — Tem um — tentou se abaixar para tocar a face da mestra, porém não o fez. Faina se levantou de uma vez, segurando a pele de leão pelo dente e a boneca com outra mão.

    — Onde, minha Mirta?

    — Onde prenderam um Cara-Queimada. O amarraram num tronco de madeira para que morresse congelado.

    A mãe enlutada fitou Mirta com olhos distantes e distantes, mas um sorriso quase torpe se formou nos seus lábios magros. Segurou a boneca de pano tremulamente com a boca, então fizera um esforço doloroso.

    Passara a cabeça do leão-das-neves sobre a sua, e os dentes longos e amarelados roçaram suas têmporas e bochechas como se a fera ainda estivesse viva, cheia de ira régia. Faina sentiu algo ir embora conforme o peso da pelagem cobria suas costas, aqueles pelos brancos e bem curados que passaram a aquecê-la. Apertando o ombro, alisando as costas…

    As patas penderam em direção do chão, balançando enquanto se acostumava com o peso; e as garras douradas balançavam, e a longa juba misturara seus pelos alvos com sua longa cabeleira revoltosa e anéis de azeviche acinzentado.

    No canto de seus olhos, Faina reparou o brilho de uma espada de Gelo-Velho.

    “Que coincidência agradável.”

    — Eu quero ouvir os problemas de meu povo, minha Mirta. — Tocou os ombros da amiga. Seus olhões negros, no entanto, vagaram distantes, por tudo que pôde ver do acampamento; de todo seu povo. Dos Bárbaros, dos cães e cavesões. — Quero que me aconselhe também. Eu não sou inteligente, nem esperta, eu acho. Mas você é. Eu conto com você para manter meu povo vivo, e para estripar os assassinos do meu filho, Mirta — falara, e uma lágrima fria como gelo escorreu de seu olho esquerdo, cheio de manchas azuis.

    Apoie-me

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (2 votos)

    Nota