Capítulo 49: Coração magoado (1)
“Duas partes de agonia, três partes de ira, e uma parte de aflição.
Coisas tenebrosas são misturadas no coração da bruxa.”
Izandi, a Oniromante

— Senhora Willmina — interpôs Nianna Beesh, com os olhos azuis e cenho claramente irritados. Willmina não se importou, ainda que surpresa com a força que a garotinha conseguia exprimir. “Talvez esteja no sangue dela”, refletiu. Desde o final de outono, alguns centímetros se adicionaram ao ruivo dos cabelos e as pernas belamente. — Descansemos por um segundo, tudo bem? Estamos quase lá.
— Obrigada pela preocupação, Nia, mas ainda tenho energia. Não estou cansada. — Deu de ombros, com uma piscadela adicional.
Nianna suspirou de frustração e então bocejou. A luz das Luas chegava em torrentes pálidas e prateadas por através das poucas nuvens da madrugada fria de primavera, tingindo de tons mais claros os tijolos austeros e velhos do castro milenar dos Beesh e o íngreme lance de escadas que separava seu lar dos pátios de treinamento e do castelo interno. Ao ver os degraus, no entanto, Willmina sentiu o coração pisoteado com uma tristeza de fazê-la chorar. Sua Hydele não tinha dificuldades de descer essas escadas?
Lembrou-se dos muxoxos e carrancas da pequenina…
Nianna gesticulou com os braços, oferecendo-se de suporte mais uma vez. Para o comum das mulheres de Aavier, a gestante baronesa era terrivelmente alta, no entanto, no curto período do outono e a primavera permitiu que a bela donzela de cabelos trançados ficasse alta o suficiente para servir de apoio, roçando os ombros nas axilas de Willmina. Só conseguia olhar para ela com orgulho… Quando se viu, estava afagando o cor-de-maçã sedoso da mais baixa.
— Tudo bem, podemos descansar um pouco. — Nianna lhe sorriu.
As duas sentaram-se nos degraus por alguns bons segundos. Willmina fez seu melhor para continuar afagando os cabelos da menina, mas aquilo cansava seu braço rapidamente. Ainda o sentia lá… O ardor no braço esquerdo. Quando o observava, continuava o branco marfim quase reluzente à luz de prata. Observar fazia a dor desaparecer, mas parar fazia-a lembrar. “É uma queimadura”, constatou. De fogo e queimaduras entendia melhor do que ninguém. O sol surgiu um pouco.
Logo as escadarias foram subidas e Willmina entrou no seu quarto. Como esperava, Bert deixou-o uma bagunça — que a fez rir. Também tinha seu filho ido para longe, distante de seu abraço, como fez seu marido… “Como está Hydele agora?”
Nianna ajudou a preparar um banho e a vestir-se. Havia esquecido que tinha roupas tão belas além das faixas de linho com o remédio viscoso que cile Henri tanto se orgulhava. Escolheu um pálido vestido azul que, dos joelhos aos pés, fazia-se numa mistura de múltiplas saias e tons de branco e anil como o céu de verão, inclinadas pela barriga crescida. Calçou sapatilhas confortáveis e, com ajuda, vestiu um corselete de seda pouco apertado e seus colares e toucado — um vermelho como o maçãs, com um véu de seda branca que chegava ao umbigo. E descansaram novamente.
— A água fê-la sentir alguma coisa? — questionou a donzela, com uma feição preocupada que não partilhava com sua beleza. “É tão linda”, pensou Willmina, com orgulho na sua voz mental. “Nasceu para ser beijada, bem cuidada e amada. Ah, Bert! Como pude permitir que crescesse como um paspalho trastoso? Foi uma falha minha!”
Lembrou-se da vez que viu os dois conversando sob a luz da aureira do bosque interno, onde teve a certeza de que os dois se casariam assim que Nianna florescesse.
“Aquela Cidade de Ferro apodreceu o coração do meu menino!”
— Somente conforto e limpeza e paz, Nia — confortou-a, tocando no ombro magro e depois com um fraco belisco nas maçãs do rosto. — Não tive outra contração e aflição como aquela. Falei-te para chamar-me pelo nome.
Nianna gargalhou.
Pouco tempo depois, já estava vestida e com cheiro de rosas. No tom laranja do outono, um vestido longo de torso apertado e gola que cobria o pescoço embelezava seu corpo esguio. Bordados de flores enfeitavam as mangas longas e farfalhantes de tecido recifano, reluzente, e seus cabelos foram empurrados para frente dos ombros. “Não permitam, Deuses, que seja beijada pelo futuro rei…”, fez de prece. A garota ajudou-a a se levantar e, de recompensa, foi beijada na testa pela gestante.
Tal como o rosado pelas nuvens amanhecidas, a seda do toucado de Nianna farfalhava enquanto desciam as escadas, olhando pela balaustra o castro recuperar a vida. Os homens de armas não tinham mais com eles sua mestra de armas, portanto, faziam treinos individuais de combate enquanto o sol lutava para enchê-los de vida. Servos limpavam os pátios, outros, as ameias, e o cheiro de pão, queijo e suco carregados por outros servos abria seu apetite. No entanto, sua refeição já estava pronta, e na carruagem.
“Há quanto tempo não ando pelos solos dos Deuses?”
Agora, enquanto andavam vagarosamente para os estábulos, tiveram que parar. Um vento súbito invadiu o castro antes de se tornar tibioso ao fim do ruído dos portões pesados do castro. Willmina olhou por detrás dos ombros, e o barulho chegou nos seus ouvidos — um tropel de poucos cavalos, cansados… e as rodas de uma carroça. Uma dúzia de cavaleiros armados com cotas enferrujadas e couraças costuradas a escamas enegrecidas adentrou o castelo, com um décimo terceiro pilotando os dois castrados da carroça.
Fediam a sangue.
Nianna fechou o rosto, piscou suavemente e fez um bocejo cansado. Pode ir, tenho onde me apoiar, Willmina sussurrou, e a aprendiz de medista imediatamente correu até os mercenários que a gestante contratou — os Lagartos de Malha. “Que nome escarnido.” Como conseguia se irritar com Cei Kinnes até por pensar no nome de seu bando?
— Senhorita El… Willmina! — falou o na frente de todos. Um elmo de latão envelhecido cobria quase todo o rosto de Cei Kinnes, deixando só dois pequenos buracos de viseira. Do seu bando de mercenários, era aquele com melhor armadura. — Chegamos lá, como prometido!
“Não fizeste promessa nenhuma além de receber parte do pagamento!”
O cavaleiro fez um calmo tropel em sua direção antes de descer do seu garrano. Assim que tocou o chão, ouviram Nianna gritar aos homens para que levassem os… feridos para a ala do medista!
Willmina congelou no lugar e começou a chorar no pátio de treinamento. Em um piscar dos seus olhos empalidecidos, pareceu-lhe que o castro se desfizesse em caos. Os homens de armas carregaram entre os braços uma dezena de feridos com os corpos encardidos e feridas tão feias que pingavam pedras de sangue seco e ainda mais fétido do que um cadáver. “Não, não, não…”
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