Capítulo 49: Coração magoado (2)
“Duas partes de agonia, três partes de ira, e uma parte de aflição.
Coisas tenebrosas são misturadas no coração da bruxa.”
Izandi, a Oniromante

“Não, não, não…”
Ela agarrou Cei Kinnes pela cota de malha, o puxando na sua direção.
— Por favor, me diga… — tentou gritar, mas sua voz fora puro pranto e lágrimas… — Me diga que… — soluçou — estes não…
— Não achamos sua filha lá, Vossa Graça.
— Ah…! — suspirou como se em grito de alívio.
— Mas um deles falou o nome dela enquanto a gente tirava ele da vala.
Antes que percebesse, estava fria e caída no chão. Os barulhos se misturaram dentro de um alarido de zunidos surdos e de dor no coração; outros homens e Cei Kinnes a seguraram suavemente e foram em disparada… “Ah, meus Deuses… não…” Logo seu mundo virou um oceano de trevas…
E quando retornou à luz do dia, seus olhos doíam. Seu vestido nas cores do céu foi trocado de novo pelas roupas que facilitavam o tratamento, e os odores pungente de ervas secas de cile Henri abriu seu nariz como se respirasse fogo. Willmina tossiu e desviou os olhos, ofegando como se estivesse em trabalho de parto, apertando os dedos na cama. Acabara de sair do lugar e agora retornara — e com uma má notícia que não queria fugir da suas lembranças.
— Vossa Graça — ronronou a voz seca e rouca do velho noitibó —, dei-te alta e você retorna no mesmo dia? Graças aos deuses, é só mal estar. — Pôs um copo de água misturado com mel, cravo e ervas moídas. — Beba. Vai te dar forças, senhora.
— Obrigada… — falou, com a voz um pouco presa. Bebeu toda a mistura de uma vez, então procurou por onde conseguia ver da ala do medista. Cile Henri não esperou mais que isso, pois foi lavar suas luvas e se dirigiu a um biombo fechado cheio de veletetos com luz forte.
Willmina só pôde esperar e rezar. “Meus Deuses, ó meus Deuses, devolvam ela para mim! Devolvam minha família para mim…”, rezou ela cheia de aflição cruel tocando o coração como se o abraço de uma árvore espinhosa e violenta. Juntava as mãos na barriga com cada vez mais fulgor e dor, à medida que as lágrimas vazavam de seus olhos brilhantes.
— Senhora Willmina — falou Cei Kinnes, que acabara de entrar na ala. Detrás dele, duque Theolor Beesh vinha devagar com o rosto escurecido de sono. — A senhora já está melhor? Estava branca como sal!
— Cale-se, Cei Kinnes… — murmurou. “Não atrapalhe minhas preces!” Meneou a cabeça e suspirou, ajustando-se na cama ao tom da risada de seu duque. — Bom dia, sire.
— Não é uma manhã para se chamar de boa. — Virou-se, olhando de queixo erguido para Cei Kinees, que comprimiu os olhos e suou frio. — Vamos, seu imbecil, seja logo o mensageiro dos corvos!
— Não precisa gritar, cara!
O mercenário quase mostrou o dedo médio para o duque, mas se conteve no último instante e prestou uma vênia breve para o Senhor do Sul e a baronesa vermelha. Sem um pingo de educação, arrastou um banco até o meio da sala, retirou a pesada cota e malha e relaxou a mão no punho da espada, estralando o pescoço. Tirou o cantil de dentro da alforge, cheio de aguardente, e bebeu-o quase inteiro.
— Bem, eu fiz o que a senhora me pagou para fazer. Reuni meus rapazes e saímos em marcha rápida para o Ode dos Pássaros, tal qual me pagou para fazer. O caminho estava ainda meio lamacento por causa da neve derretida. Uma porcaria de andar, mas a gente já estava acostumado. E seria bem pago, já que a senhora queria pressa. Como também mandou-nos só para entregar coias, meus rapazes ficaram até alegres. Não teriam que correr algum risco de vida nesses dias tumultuados, e por um bom pagamento? Ora! Fomos beeem rápido por um caminho secreto. Tirando a Estrada dos Tijolos Dourados, todas as outras do Sul estavam uma porcaria. Era perfeito. Sou bom em me perder, mas depois que me acho, sempre aparece uma estrada nova e mais rápida na minha cachola.’
‘A gente chegou numa vila cheia de moças muito bonitas, depois rumamos até o Ode dos Pássaros sem parar um segundo sequer. Achamos os restos de um acampamento, uns dois dias antes da bendita floresta, e pensamos estar no caminho certo. A gente andou mais um pouco, então fomos atacados por uma flecha enorme. Me gritaram ‘Cacete! É uma druida! Pegamos o maldito caminho errado de novo, Kinnes!’, e eu respondi: ‘Quando caralhos atravessamos o Flores?’, para aquele bando de filhos da puta idiotas que eu chamo de…”
— Me poupe desses detalhes! — bravejou Willmina, mordendo as unhas e com o rosto cada vez mais pálido e ansioso, com os lábios torcidos e olhos meio fechados. — Vá direto ao ponto… por favor…
Ele estava prestes a fazer uma piada quando Theolor agarrou seu ombro.
— Tá, tá… — fechou um dos olhos e franziu os lábios. — A gente deu um jeito nos caras. Eram uns bandidos com um sotaque esquisito, pareciam ter um pinto na boca, mas não falaram mais depois que, bem, nós saímos vivos. — Cei Kinnes parou e bebeu mais aguardente. — Seguimos o rastro do acampamento deles, e aí chegamos num outro. Totalmente queimado. Moça, tinha cadáver sendo comido por corvo até onde meus olhos podiam ver… Maioria, um bando de gente gorda que nunca tinha pegado numa espada. Achei que fossem uns comerciantes que deram azar, mas não eram. Não tinha nada de realmente valioso, a não ser que tenham roubado. Mas aí achei uma tenda que estava menos pior. A maior do lugar. Tinha um baú cheio de roupas de cetim, linho, lã. Toucados com detalhes de prata e ouro, colares bonitos. Até eu tenho inteligência o suficiente pra saber que não foi um assalto, e que tinha uma menina muito nobre dormindo naquela tenda.’
‘Mandei meus homens vasculharem mais longe. Achamos mais mortos, só que alguns tinham espadas em mãos. Também achamos alguns vivos. Dentre eles, o de longe reconhecível Cei Witernier do Nariz Vermelho! As moças daquela vila tinham até uma música em honra do cavaleiro dos olhos lila… Direto ao ponto. Não achamos a garota, mas o cavaleiro ficou repetindo o nome dele e ficou chorando. Parecia estar prestes a morrer, mas aguentou toda a viagem. Ficava dizendo ‘Senhorita Hydele’ e ‘Minha Senhorita’ enquanto…”
— Minha filha! — gritou de dor a gestante, com os olhos finalmente cedendo e derramando um mar de lágrimas imparável.
— Não achamos ela, nem ela e nem a recifana, já disse… Ah… desculpa.
O mercenário cruzou os braços, jogando as costas para trás, depois se levantou e saiu da vista de Willmina. Não que ela desse atenção para ele. Seu coração estava agarrado por uma mão áspera e fria, espinhos congelados que apertavam seu peito a cada batida…
— Minha filha… — pigarrou, soluçou e tentou limpar os olhos. — Minha filhinha… Minha filhinha…!
Duque Theolor Beesh tocou suavemente suas mãos. O homem de rosto sisudo, que exibia alguns fios brancos na sua barba longa e oleosa, lançou um olhar sério e hirto como pedra para Willmina.
— Mandarei meus homens procurarem por ela em todo o reino, senhorita Willmina. Não haverá um lugar que nós não teremos procurado, e quando acharmos quem fez isso, irei fazê-lo comer suas próprias tripas e esmagá-lo debaixo de toneladas de pedra. Eu prometo.
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