Índice de Capítulo

    “Os imperiais tinham uma língua que mantinham para todos os lugares. E, é claro, uma língua que funcionava somente para si. Os generalíssimos, porém, tinham uma própria, que só usavam para os que mais confiavam e não as ensinavam para mais ninguém.

    Filho de seu pai, Elouan nunca ouviu uma letra naquela língua. Neta de seu avô, Hydele quase teria a ouvido antes de Elouan. Então ele pensou, pensou, foi humilhado e pensou. E teve uma maravilhosa ideia.”

    Izandi, a Oniromante

    O homem agora a fitava, tanto quanto a estranha.

    Leneach, ferd mi aliex! — sibilou a estranha, batendo suavemente num lugar ao lado. Hyd estranhou o tom de voz da estranha. Era dócil, femininamente suave… mas era um tenor. Era um tenor. “É um… homem?” — Fild — ele sibilou. Então cobriu a a boca com a mão melada de sumo, deu uma risadinha e continuou: — Assium entiende o que digo, mennina?

    Hyd quase suspirou de alegria por finalmente ter ouvido uma língua que sabia falar. Era uma pronuncia cheia de sotaque, mas conseguia entender plenamente a Língua Comum. Então estremeceu, comprimindo seus ombrinhos de novo. A febre maculava seu corpo cheio de dor, todavia a percepção que teve fora ainda mais cruel que o veneno das sanguessugas. Tanto sonhou com o dia que deixaria o castro dos Beesh, que conheceria pessoas que já não conhecia e que se aventuraria pelos Cinco Reinos, se apaixonaria por um homem e viraria sua esposa, ou que cantaria como uma grande senhora…

    “Eu estou no Império”, terrivelmente concluiu. Seu corpo esquentou tanto que nenhuma das vozes ao seu redor conseguiu chegar aos seus ouvidos.

    Quando voltou a si, estava deitada sobre o corpo daquilo com um feminino tenor, esparramada sobre as confortáveis sedas que usava. Ele encostou uma fatia suculenta da fruta estranha na sua boca, e, antes que se desse conta, todo seu sabor foi ignorado e engolido em uma única mordida rude da ferida ruiva. O sabor doce… a fez lacrimejar… “Não chore, não chore… Senão, será estapeada de novo…” Assim que fungou, porém, teve sua lágrima tirada do rosto pelo dedo suavemente calejado do ruivo.

    Quie mennina doce! — Abriu um sorriso estranho demais para a face andrógina. — Pode chorar, mennina. Não deirrarei que façam mal a você!

    Elouan! — bravejou o homem, sem sequer olhar o corcunda nos olhos. — Ne pardirée ey ust lerge. Ierda-sa!

    Assim que terminou, o corcunda se jogou para cima e prestou uma vênia profunda e torta para o mais velho. Num movimento que fez Hyd ver centenas de vaga-lumes farfalhando doentiamente, o corcunda enfiou sua mão e braço inteiro dentro da própria barriga. Ela grasnou e fungou enquanto via aquela coisa se abrir, cheia de dentes de vaga-lumes… incolores. Eram mais translúcidos do que todos os outros, menores e muito mais belos. Eles se moviam de uma forma tão… Hyd não conseguia compreender. Simplesmente não conseguia.

    Antes que tivesse mais chances de pensar no que via — ou de chorar mais ou comer mais — o corcunda retirou uma pequena gaiola de vidro de dentro do próprio estômago.

    Uma chama de um dourado quase laranja ardia incansavelmente dentro dos vitrais. Hyd calou-se…

    Aquilo era a coisa mais bela e incompreensível que já tinha visto.

    Um líquido. Uma pedra. Uma chama. Nenhum dos três e tudo ao mesmo tempo.

    Um fogo que usava a si próprio para queimar-se; uma chama cujas labaredas ardiam para dentro e para fora.

    A coisa que queimou sua mão, aquela pequena fração de chamas que ardiam lindamente. Recordou-se da noite que o corcunda matou seu cavaleiro de olhos púrpuros e massacrou os queridos herboristas que cuidaram de si. A noite que pisoteou sua mestra como se ela não fosse nada além de lama. A noite que mostrou-o destruindo tudo que conhecia. Quando Jen estava praticamente morta, depois de implorar por minutos que pareciam horas, o corcunda tinha feito o mesmo. Retirado a mesma gaiola do seu estômago… e atirado as chamas contra a pequena Hyd.

    Imaginou que seria morta.

    Non tiema, mennina — falou o andrógino. — Elas non fazem mal. Elouan non tentiará nada enquanto nós dois estievermos aqui.

    O corcunda engatinhou vagarosamente até Hyd, e, sem olhá-la, agarrou seu cotovelo cheio de farpas cicatrizadas.

    — Sua praga… — sussurrou o corcunda. — Você… é igual sua mãe… Mas eu sei fazer funcionar…

    Antes que conseguisse piscar, o corcunda pressionou fundo as farpas. Hyd mal teve tempo para gritar de dor antes que elas fossem arrancadas, levando consigo gotículas de sangue pelo ar.

    Então as chamas foram derramadas sobre sua ferida. Hyd sentiu o líquido fervente invadir as novas feridas, e como se relâmpagos tivessem corrido por dentro dos seus ossos e músculos, ela gritou de dor. No segundo seguinte, a sensação das labaredas queimando por dentro alcançaram seu cérebro. A vontade de gritar até não conseguir mais abrir a boca veio silenciosa.

    Ela sentiu um agarro no externo, uma mão tortuosa e áspera como vidro quebrado, e uma segunda pressão. Sua pele queimava por dentro, ardia. As labaredas cruzavam cada centímetro dentro do seu corpo… como se buscassem algo. Como se estivessem… procurando algo. Conectando algo.

    Foi então que a dor sumiu. Por um único segundo, foi como se nunca estivesse lá. Então voltou, mas diferente.

    Hyd sentiu sua pele sendo aberta pelas chamas douradas, mas também sentiu-a sendo fechada… e as chamas criando um caminho. Elas seguiram até seu coração…

    Seus dois corações.

    Eram dois. Os dois batiam sincronizados, juntos, batiam e enviavam sangue e chamas como se fossem um, e as chamas se espalharam por suas veias e artérias, escorrendo para os pulmões. Para o baço, o fígado, para a pele. Sentiu as chamas criarem um caminho perfeito até o cérebro, lambendo cada pequena fração da sua consciência.

    Então foi embora.

    E eles continuavam a bater. Tu-Tu-dur-dur! Tu-Tu-dur-dur! Tu-Tu-dur-dur!

    — Praga…  — murmurou o corcunda, fitando Hyd com os dentes esmagados pelos outros e o rosto contorcido em tanto ódio que suas veias disparavam.

    — Afaste-se dela — ordenou o mais velho. A ruiva exalou um alto suspiro de dor. Como de repente estava entendendo a língua que poucos segundos atrás era incompreensível e estranha?!

    O corcunda se jogou para trás, esparramando pelo chão. Era uma posição e forma humilhante, como um cão implorando por clemência ou atenção, uma que só recebia do ruivo e de Hyd. O grisalho estava com os olhos esquadrinhando cada pedaço da pequena.

    — Meu Elói mentiu para mim. Ah… É um prazer conhecê-la, minha neta.

    “Neta?”

    — Ela é uma praga e não deve ser deixada viv…

    CALE-SE, ELOUAN! — bravejou, sem sequer olhá-lo. Sua voz foi tão ríspida que Hyd estremeceu-se e se engoliu no seu corpo machucado, conhecendo dores novas. — Se abrir a boca uma vez sequer, reduzirei sua torre a pó. — Inclinou o corpo para a pequena, que estava pálida. — Quem é sua mãe, menina? Não precisa me responder. Esse turmalina no olho é reconhecível. Aquela prole hedionda do Lobo Branco. — Cruzou os braços. — Responda-me, menina. Eu nunca faria mal a minha descendência. Qual seu nome?

    A barba grisalha que cobria sua face quase escondia a semelhança que tinha com Ereken. Hyd olhou para os olhos diferentes do homem… eram… estranhamente gentis.

    — Hy…de…le…

    — É um bom nome — disse o homem.

    — É lindíssimo, Hydele! — afirmou o ruivo, agora de volta na língua do Império, levando à pequena mais uma fatia da fruta. Ela não conseguiu resistir. Era a primeira coisa que comia em dias, ou até mais. — Combina lindamente com você. Ah, como gostaria de vê-la num leviaut!

    — Deixe-me ter com minha neta em paz, Fiorry.

    — Acalme-se, Gilles! Ela não vai a lugar nenhum. — Deu uma piscadela com o olho esquerdo. Hyd comeu mais uma fatia. O andrógino mexeu os dedos, e depois de alguns segundos, as servas com máscaras de ferro trouxeram uma bandeja cheia de doces que Hyd nunca viu. — Pode comê-los todos, Hydelizinha. Ah, que criaturinha tão amável!

    Hyd, no entanto, mostrou semblante temoroso para aquele que foi chamado de Gilles.

    — Você… é meu avô?

    — Elói nunca disse sobre mim? — questionou o homem, com o rosto impassível subitamente cheio de tristeza e decepção.

    — Quem é… Elói? — abraçou-se.

    Gilles cerrou os dentes. Sua expressão empalideceu tanto que seus olhos pareceram perder a cor, cobertos somente por um caminho cheio de sombras mirradas e densas.

    — A notícia de que um filho morto estava vivo deveria abastecer o coração de qualquer pai com calor e felicidade. No entanto, o que é trago a mim preenche o meu de desgosto. — Seu rosto escureceu. — Conte-me, minha querida neta, por que está tão ferida?

    — Eu… — seu olhar foi roubado pelo rosto do corcunda, uma estranha expressão animalesca de fúria.

    — Eu não esperava o senhor aqui, pai… — falou o corcunda. — Ela. Eu a achei durante uma batalha nos reinos dos bárbaros. Seus pais tinham sido mortos, meu sen…

    — Se mentir para mim de novo, nunca mais abrirá a boca, Elouan.

    — Eu a-a-a a-chei acampa-pando. Reconheci e-e-e-ela e lhe trazi para cá através de uma caverna abaixo do Vale das Irmãs…

    “Como o faz ter tanto medo?”, perguntou-se Hyd, ainda se escondendo no peito e nos braços de Fiorry. Elouan se atirou ao chão novamente, com os dedos tortos e desiguais se afundando no tapete como anzóis. Só conseguia sentir pena dele.

    — As marcas de mão na sua face não surgiram de uma caverna, Elouan.

    — Eu… E-eu tinha que ver se ela tinha os o-olhos! — Aninhou as mãos.

    Gilles ficou de pé em um movimento. Seu rosto estava travado em um mar de desgosto. Hyd ficou em silêncio, então sua vista febril foi obstruída pela mão de Fiori.

    Então ouviu os gritos de Elouan e o estalido de ossos se quebrando.

    Phai! Phai! Phaai! Pare!

    — Tratem os ferimentos de minha neta. Se fizerem-na sentir dor.

    As servas não precisaram ouvir o final da frase. Gentilmente, Hyd sentiu as mãos ossudas levantarem seu corpo como se fosse a coisa mais preciosa já feita pelos Deuses, e então todo o caminho se converteu em inúmeros vaga-lumes marrons farfalhando pelos seus olhos. Mas agora, mais uma vez, estavam diferentes.

    Havia vermelho.

    As mulheres a levaram para uma cozinha com cheiro podre. Elas molharam panos de algodão com álcool e coisas que Hyd não conhecia. Gentilmente, envolveram seu corpo com líquidos coloridos e frios… A deram água e retiraram as farpas. Enrolaram seus punhos queimados com emplastros em um lenço macio como um beijo, com a delicadeza de uma fada. Nem se deu conta de que estava chorando quando a mergulharam em águas frias e lavaram seu corpo com sabão, ou quando a vestiram e um tecido que nunca vira num modelo que nunca viu.

     “Papai, socorro…”, pensara.

    — Minha querida neta — falara, e Hyd cerrou os dentes. — Fico muito, muito triste por Elói ter mentido sobre mim. Ter escondido suas origens e adotado um nome de bárbaro. — Se aproximou, e ajoelhou-se em frente da cadeira de balanço que Hyd sequer percebeu estar sentada. A menina engoliu em seco quando ele levou a mão para dentro da capa, onde as espadas estavam escondidas… invés de uma lâmina, retirou um lenço de lã e passou-o nos olhos marejados de choro. — Estará tudo bem, minha querida neta.

    De súbito, seus olhos deixaram de ser o castanho e amarelo-âmbar e se tornaram dois pontos gigantes, inchados e enormes — castanho claro como o dia, amarelo-âmbar como cristal.

    Hyd sentiu os seus incharem também, como se respondessem a um gesto de amor familiar.

    — Estará tudo bem — pôs as mãos sobre os curtos ombros da sobrinha. — Sinta-se em casa, pois está em casa, e em breve sua família também estará aqui. Fizeram-nos este favor.

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