Capítulo 51: Ferrugem velha (1)
“Amainem seus corações! Ora, pergunto-lhes, já que são homens: conhecem as dores de uma mulher orgulhosa? Dificilmente conhecem o vocabulário de dores de suas amadas esposas. Ah, duvido muito! Mas temos, cheios de palavrinhas sutis…
Vocês têm algo semelhante.”
Izandi, a Oniromante

Ereken cerrou os dentes e suspirou mesmo assim, estralando o pescoço. A lareira crepitava com suas últimas brasas antes que o fogo esvaísse e deixasse para trás cinzas pouco quentes. Seguia aquelas últimas brasas com os olhos, vendo-as subir a chaminé e desaparecer, ou acompanhando-as escapar pela boca e então perderem o brilho em pleno ar, sumindo como um último suspiro.
— Huh — suspirou também. Ficou de pé, com os olhos ainda fixos nas chamas. “Está aquecendo no Olho que Chora também?” Imaginou por muito tempo que as montanhas ficavam cobertas por um frio eterno e imutável. “Mas está aquecendo aqui. Pouco, mas está.” A primavera era impressionante.
O Mestre de Armas se aproximou do seu baú e retirou um cinto de couro. Sentiu a aspereza do couro e uma dor quase inexistente enquanto o apertava no punho. Com mais um suspiro, deitou-se perto da lareira, com os músculos saltando a pele sendo iluminados pelo dourado da chama e da madeira cheirosa. Apoiou-se na mão letárgica e encostou a que ainda funcionava nas costas. Seus músculos do lado esquerdo lhe deram um misto de sensações desagradáveis.
Tensionados, mas fracos — como se não sentissem a própria força corretamente. Ereken encheu o braço letárgico com ahvit, que bombeou entre seus músculos e veias com uma ardência confortável. Pouco a pouco, era como se cada fibra de seus músculos acordassem um pouquinho mais, como um caçador perdido reencontrando um caminho de volta para casa. Ereken só não dera a sorte de ser uma trilha clara — a de seu braço parecia coberta de relva, de troncos e trepadeiras.
“Nada que um bom machado não resolva.”
Quando sua sessão de exercícios acabou, estava brilhando de suor em cada parte dos seu corpo superior, refletindo o dourado do fogo.
E ele se apagou.
Ereken fechou os olhos por um momento, como se apreciando o pouco de calor que ainda restava na lareira. Foi até sua cama, sem tirar os olhos das cinzas que restavam; pelo curto momento em que se sentou, realmente quis aproveitar aquele calor. Familiar — distante. A saudade ainda ardia no coração. “Devo me ocupar com algo”, concluiu. De debaixo da cama, retirou um baú menor, porém longo — quase um estojo. Latão soldado ao couro invés de costura, latão soldado à madeira em outras.
Destravando-o, os olhos de Ereken se fixaram nas lâminas que se misturavam ao negro do forro.
Uma era longa, de punho longo para duas mãos segurarem-no. Era inteiramente feito de ouro, do o pomo ao guarda-mão — uma única peça de ouro refinada e moldada com a graça de uma ave de rapina. O guarda-mão era um par de asas bem abertos, com uma coruja no centro; seu punho era coberto por couro, reto até o pomo, onde se recurvava e dava forma a uma águia.
A outra era menor, de punho o suficiente para uma única mão. Seu punho era feito de prata e possuía um rubi entalhado no pomo; já o guarda-mão, silencioso, se misturava à lâmina como um mergulho de falcão. No entanto, era uma coruja tingida de amarelo castanho, com um par de olhos de âmbar brilhante.
A lâmina de ambas não era vista dentro da caixa. Não seria observável nem que retirada — e era esta sua beleza inefável. Forjada pela mão de anões velhos e experientes, com o metal mais velho e resistente do mundo, sob o castelo mais velho do mundo — maior e mais glorioso que qualquer um que vira em Aavier. A mais senhora de todas as forjas, abaixo da Árvore onde um gigante escalava desde que o tempo era tempo.
Toc-toc!, fez a porta.
Ereken balançou a cabeça e fechou o baú menor. Sentiu cheiro de vinho vindo da porta.
— Estou me vestindo — respondeu ao conde Siward.
Vestiu as camadas e camadas de roupas quentes e libertou o braço esquerdo, e então abriu a porta. Conde Siward agora tinha cabelos ainda mais grisalhos e uma onzena de pontos costurados da bochecha à testa.
— Sente-se melhor, Ereken?
— O suficiente, Vossa Graça.
— Ótimo. — Deu de ombros. — Trago notícias lá de baixo.
Os olhos de Ereken arregalaram um pouco.
— Sobre o último terremoto?
— Não sobre este, ao menos. — Tocou o queixo grisalho. — As aves, finalmente, voltaram a chegar nesta Fortaleza. Notícias do reino.
O mais novo franziu o cenho.
“Minhas cartas chegaram?”, pensou, e logo se livrou do pensamento. Não era um pássaro-de-voz, que se perdiam facilmente no inverno, quem levou sua carta à família e mestre.
— Quais as boas novas?
— Nosso rei está morrendo.
— Oh.
— Além disso, problemas que seriam melhor discutidos com nosso Ceire. — Balançou a cabeça para a saída. — Vamos, barão?
Ereken fez um sorriso singelo.
— Claro, conde.
Assim os dois seguiram pelos corredores e escadas da Fortaleza-Motanha, que mais parecia um labirinto velho e desgastado. As tochas estavam bem acesas, um ou outro lampião aceso com um óleo de cheiro agradável. Porém, estava escura — a pedra escura que a formava estava parecendo ainda mais escura à luz da primavera.
— Deveria ter criado seu filho com mais rigor, barão Zwaarkind. — Seus passos faziam a espada antiga e vermelha libertar o cheiro de vinho, mesmo embainhada.
— …Bert fez algo inapropriado, suponho. — Ereken meneou a cabeça e engoliu em seco uma sensação de “já estou acostumado.”
— Entrou para a guarda-real de Sua Majestade.
— …Certo.
— E então agrediu brutalmente o filho do marquês Rwicks, deixando-o tão debilitado quanto à morte — falou o conde, com uma voz um tanto quanto grata, com um sorriso mal escondido dentro da barba. Ereken congelou e cerrou os dentes. “Aquele paspalho!” — Não o bastando, o garoto ainda se aproveitou de estar na audiência com o marquês e riu enquanto nosso príncipe silenciava aquele filho de uma meretriz, deixando seu garoto totalmente impune.
“Haha…”
Ereken não sabia se estava completamente constrangido ou completamente irritado com o garoto. Em partes, conseguia imaginar isso acontecendo com uma frequência maior do que o aceitável por ele. Bert fora seu primeiro filho, mesmo que não sendo sangue do seu sangue. Nos dois primeiros anos antes de Hydele, era tão inexperiente com a paternidade quanto poderia ser… “Talvez tenha o dado liberdade demais.’
‘Não seria à toa ele ter fugido de nossa casa e ressurgido anos depois, assim que viu os primeiros pelos no peito!”
Subitamente, o rosto do conde Siward enegreceu como se a noite tivesse chegado só para ele. Seus olhos estavam sem cor de tão sérios, olhando para Ereken como se visse sua alma.
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