Capítulo 55: O peso de uma criança (1)
“Não há nada mais paradoxal do que um homem poderoso sentir medo de uma coisa tão pífia, que suas mãos ceifaram inúmeras vezes.”
Izandi, a Oniromante

A forja talvez fosse o ambiente mais invejável dentro da Fortaleza-Montanha. Não possuía as grandes ameias das muralhas, nem as lentes colossais das torres, capazes de mostrar o que acontecia a meio país de distância. Todavia era quente, e isso era uma benção.
Vapor fugia violentamente dos barris, e a fornalha ardia tão brilhantemente que olhar era doloroso, despejando luz pelas rochas negras e austeras que compunham a Fortaleza. O odor de óleo, pinheiro e carvão queimando, ferro e suor haviam se misturado há tanto tempo que mais pareciam um único cheiro, acompanhado de tanto barulho quanto uma forja poderia permitir.
Um pouco mais à direita, um jovem ferreiro manuseava uma espada longa em uma longa pedra de polir. A espada não tinha nada de especial — mesmo sendo ótima. Ganhara ela quando jurou lealdade ao seu duque, no final da guerra de quatorze anos atrás. Ereken ainda se recordava do medo que sentira naquele final de tarde, quando os cascos do alazão de Jeihan Beesh soturnamente o separaram da esposa e filho.
— Você trouxe a vitória para nós, mas ceifou muitos de meus amigos! Eu o desafio! — gritara o jovem ruivo, montado em um alazão tão ruivo quanto e com uma espada tão ruiva quanto, mas do sangue alheio. Atrás do trio de ruivos, sua Mina já gestante e Bert enfurecido como uma fera.
“O quão assustador foi aquele dia…”, pensara. Agora um jovem quase igualmente ruivo repetia o movimento da espada deslizando pela pedra. As pequenas rachaduras haviam desaparecido quase por completo, voltando ao fio cinzento e frio de antes. Todavia, ela parecia um pouco mais longa.
O garoto suspirou, com seu suor respingando na lâmina.
— Aqui está, Vossa Graça. — Ofereceu a espada, segurando pela lâmina. Emanava o calor da afiação.
— Só Ereken já serve — respondeu ao ruivo, tomando a espada.
— Vossa Graça é um dos três comandantes daqui — respondera, voltando-se para outra espada. — Não que haja muita gente aqui…
Ereken sentiu como um estalo frio dentro dos ouvidos. Sorriu para o sussurro do rapaz, então foi embora. Do lado de fora da forja, não havia o barulho ou o calor — não tão pungente quanto as marteladas contra o metal incandescente e o vento dos foles. Os poucos homens de armas que não haviam ido embora da Fortaleza-Montanha quando o inverno acabou treinavam os movimentos que Ereken ensinara, alternando entre golpes velozes, movimentos hábeis nas pernas e defesas tanto com os escudos quanto com as lâminas. Já outros…
Ainda estavam nas ameias — observando o cerco que não disparava nada contra a Fortaleza, ou então observando as armas que os Mei’lhindas haviam instalado. “Que não precisemos testá-las.”
O Mestre de Armas deslizou a espada na bainha. Apesar de estar um pouco mais longa, o peso era quase o mesmo. Iria se acostumar com ela rapidamente só de tê-la na cintura; afinal, era metal comum: aço. Diferente disso, já faziam meses desde que o braço esquerdo não respondia como desejava…Mas estava melhor. “Um pouco; melhor do que nada.”
O sol já havia sumido, mas ainda restava um pouco de luz do dia. Logo haveriam de acender mais archotes e lareiras, além da forja interna para terem água quente. “Isso se nada der errado”, pensou. “Esvazie a mente com pensamentos ruins, Ereken. Ao devolverem o garoto, você falará pacificamente. Não tem razão para temê-los, você não matou Cei Mauric Hoone.”
— Mestre! — chamou um rapaz, coberto por camadas e camadas de roupas e suor. Ereken expulsou seus pensamentos e se concentrou em ensinar seus alunos, e assim ficou até que a luz do Sol desse lugar às luzes da Lua Branca e dos archotes.
O céu ficara negro. A Lua de Prata não jazia no céu, vagante como sempre, e nem havia nuvens serpenteando pela escuridão noturna. Centenas de estrelas estavam visíveis. As oito estrelas que compunham O Guardião apontavam para o sul com clareza, enquanto as três que compunham O Audaz seguiam apontando para o Oeste — para as Fronteiriças; para o Império de Eztrieliz. E seguindo o caminho do oeste, Ceire Joran Cyreck, conde Siward e Willen Hoone caminhavam vagarosamente pelas escadarias.
O garoto tinha cerca de onze anos e não era nem de perto tão alto quanto o pai, ou tinha cabelos semelhantes. Eram curtos, de um ruivo e louro encaracolados entre si, e seus olhos eram de um azul fraco, avermelhado e marejado. Ereken respirou brevemente ao dar atenção para isso. Uma longa pelagem cobria o garoto, e nas suas mãos, a espada do pai. “Contaram a ele sobre a morte do pai agora ou está sofrendo disso desde então?”
Só conseguia ter pena do rapaz. Não conhecia a dor de perder um pai. “…Marneig.” Hydele ficaria assim no lugar de Willen Hoone?
— Senhor Zwaarkind? — disse o garoto, com a voz meio abafada e ranhosa.
— Sim, Vossa Graça — erigiu os ombros e falou no tom mais servil que pôde.
— Disseram-me que lutou para proteger a garota e todo o grupo contra um monstro, e que não era um assassino.
O garoto fungou.
— Que lutou para vencer os monstros, mas acabou sendo desmaiado por um.
Ereken mordeu o lábio e franziu o cenho.
— Sim… — Abaixou-se, ficando com um joelho no chão e olhando o garoto no rosto. — Fui pego de surpresa pelo mosntro. Não pude fazer nada… Mas teria lutado até meu último suspiro.
“Havia tanto que pudesse fazer se não tivesse me deixado levar!”
Willen Hoone meneou a cabeça e deu um sorriso amarelo trêmulo como um lago em chuva.
— O… — fungou — …brigado.
Sentiu seu coração ser esmagado por uma mão de espinhos cruéis…
— Contarei isso… ao meu tio-avô. — Tinha um rosto sério, com as maçãs do rosto erguidas e cenho franzido.
Ceire Joran Cyreck pôs a mão direita no ombro do rapaz, que respondeu acenando, e então voltaram a andar em direção ao frontão da alta e antiga Fortaleza. Já o Zwaarkind demorou para se por de pé. Seu coração doía, sim. Era como se espinhos tivessem sendo bombeados por dentro de suas veias, furando seus músculos e voltando para o coração, para ser furado e sangrado ainda mais vezes. “E, diferente de mim… Como nunca sei o que fazer?”
O que foi feito foi feito, não fora o que conde Siward havia dito? “O garoto perdeu um pai e está com o coração mais firme que o meu, que apenas estou longe dos meus filhos.’
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