Capítulo 55: O peso de uma criança (2)
“Não há nada mais paradoxal do que um homem poderoso sentir medo de uma coisa tão pífia, que suas mãos ceifaram inúmeras vezes.”
Izandi, a Oniromante

“O garoto perdeu um pai e está com o coração mais firme que o meu, que apenas estou longe dos meus filhos.’
‘Eu realmente sou motivo de piada.”
Ficou de pé com um salto, então meneou a cabeça como uma ave violenta procurando insetos no seu ninho.
— Até Meu Último Suspiro — repetiu. Não era esse o lema que decidira com a esposa?
Um último suspiro de cansaço fugiu da sua boca. Ereken ergueu as costas e olhou para os três, então correu. Pegou o primeiro archote aceso no caminho e rapidamente alcançou os três. Não deu justificativas do porquê ter ficado parado, mas segurou fortemente o archote com a mão esquerda. Rapidamente, o mundo ficou mais claro e a noite já não importava. Era fria, e ainda havia neve salpicando brevemente das poucas nuvens espalhadas no céu estrelado.
O vento vez as chamas dos archotes vacilarem. Mesmo com a armadura pesada e um dos olhos perdido, Ceire Joran Cyreck tomou dianteira em direção das tendas do cerco que nunca ceifou a vida de um passarinho da Fortaleza. Ereken esquadrinhou as tendas, o terreno, até os pinheiros ao longe, mas principalmente os homens bem protegidos do frio e munidos com espadas, lanças e bestas. Cei Hendrick Hoone estava de pé, ao final da ponte, com olhos que misturavam uma ira monstruosa e o pacifismo de um parente ao ver outro.
O jovem Willen correu para o tio-avô; seu manto caiu na ponte, levado rapidamente ao abismo pelos ventos fortes!
— Tio! — gritara o garoto. Cei Hendrick Hoone se pôs de joelhos e abraçou o sobrinho-neto imediatamente.
— Willen! — pressionou o garoto contra o peito, com os olhos se tornando os de uma fera contra Ereken. Um calafrio percorreu a espinha do Zwaarkind, e sumiu assim como surgiu. Hendrick Hoone soltou o garoto, então questionou: — Eles o fizeram algum mal, Willen?
— Não… — fungou. — Nenhum!
Cei Hendrick respirou fundo, então meneou a cabeça. Afagou os cabelos encaracolados de Willen e o abraçou mais uma vez… Ereken ainda sentia o olhar de morte contra si, cada vez mais fraco. “Está percebendo o óbvio?”, queria pensar, mas sentiu contentamento maior em ver o garoto reunir-se com a família. Subitamente, Cei Hendrick Hoone ficou de pé e pôs seu manto sobre o jovem garoto. Com sua mão direita, apontou para a maior tenda entre as levantadas.
— Meu coração voltou ao lugar onde deveria estar — ele disse, dando uma breve fungada com seu nariz longo e sisudo. — Por favor, comam de minha mesa e bebam do meu vinho. É o mínimo que posso oferecer. — E tomou a dianteira.
Conde Siward e Ceire Joran Cyreck entreolharam-se.
— Seria uma honra — respondeu o paladino, então seguiram com a guarda alta.
Os homens do cavaleiro Hoone abaixaram suas armas e voltaram para suas tendas, como se para descansar da última noite antes de uma decida exaustiva por milhas de montanha. Ereken foi logo atrás dos dois mais velhos, com a mão direita repousando na espada. “Acredito que não me atacarão mais”, pensou, e estava correto. Atravessou as linhas de soldados Hoones sem receber um olhar malicioso, e então chegaram todos à tenda do Cei.
Era uma grande tenda, a maior e mais confortável, quase como uma casa-móvel. Tapetes felpudos cobriam o chão, sombreados por uma longa mesa mogno cheia de fartura. Um grande leitão libertava o cheiro de cominho e nós moscada, além do molho de ervas brancas que abria o apetite dos três que ainda não haviam jantado. O estômago de Ereken roncou alto.
— Por favor, sentem-se — serviu-se com vinho e sentou ao lado do sobrinho neto, sem tirar os olhos do castanho. — Espero que gostem de leitão. Achei este por aqui. Cacei-o com minhas próprias mãos. Nem sabia que leitões vivam por essa região… foi uma surpresa muito boa.
— Não sabemos de muitas coisas — disse o Ceire, sentando-se e apontando para o tapa-olho. — Esta foi uma surpresa também.
— Das piores — continuou Ereken. Não havia conforto no seu tom, mas de algum modo se relembrava das reuniões com duque Theolor, Sgaan e Bijik. — Mais uma vez, desejo meus pêsames por Cei Mauric. Não o conheci por muito tempo, mas era um bom homem.
— O melhor entre nós — respondeu o Hoone mais velho. — Ensinei-o muito bem as artes de nossa família. Brandia a espada como ninguém em nossa família. Tínhamos certeza de que se tornaria um Mestre nos próximos dez anos, superando muitos dos relatos que ouvimos dos imperiais.
— Atingir o estado de Mestre antes dos cinquenta é realmente louvável — afirmou Siward. Ereken ficou em silêncio sobre isso. “Ele não estava nem perto disso…”, sussurrou internamente.
Um escudeiro imberbe serviu a mesa, pondo pratos com leitão e molho e o vinho para todos.
Cei Hendrick Hoone fez o sinal do Pai, a espada de seis pontos no coração. Ceire Joran Cyreck fez o mesmo, acompanhado de Siward com os três pontos do Cálice. Ereken não os acompanhou — não louvava os deuses da esposa e dos outros —, mas assim que começaram a comer, uniu-se a eles. O leitão era gordo, mas não resistiu a quatro homens adultos e famintos, e em um pouco mais de tempo, Willen Hoone dormiu como uma pedra na cama do tio avô. Ereken sorriu ao vê-lo sendo levado.
— Como meu sobrinho morreu? — perguntou o Hoone, voltando para a mesa.
— Lutando bravamente contra a criatura — respondeu Siward, meio trôpego de sono. — Tomou dianteira do grupo. Conseguiu causar um ferimento no queixo do monstro, mas ela…
— Foi mais hábil — interpôs o Cei, com olhos tristes e pesados.
— Conseguimos feri-la gravemente após isso — continuou Ceire Joran. Ereken ouviu bem atento, ignorando o gosto familiar na boca e o sono chegando. — Acertamos ela com flechas, e Siward gravou uma grave cicatriz no rosto bestial daquela fera. Fizemos ela sangrar, e ela então enfureceu-se e nos atacou como uma criança raivosa com o irmão… Nós a ferimos mais vezes, então… a criatura jogou-se para dentro da neve e sumiu como se fosse um mago.
O de nariz adunco franziu o cenho.
— Como um dragão?
— Dragões não fazem esse tipo de coisa — respondeu o Ceire. — Nem os das lendas antigas, que cuspiam fogo e eram gananciosos como reis.
“Dragões que cospem fogo e voam sem mover as asas… Esse tipo de lenda é contada aqui também?”, questionou-se Ereken.
— Curioso… Nunca vi uma besta assim. — Ele ficou de pé e agarrou sua espada. Ereken o acompanhou. — Não é preciso ter paranoia. Vi seu sorriso várias vezes hoje. Um assassino não tem um coração tão bom. — As palavras repetiram na mente de Ereken.
O Cei olhou para os companheiros de idade, foi até um baú e retirou um frasco com um bando de folhas verdes com pintas vermelhas.
— Vocês viram para onde ela fugiu?
— Acreditamos que ela desceu as montanhas — respondeu Siward, pondo-se de pé.
— Neste caso, estaria descendo para o Sempre-Verde… — Retirou algumas folhas e mastigou-as. Um sumo vermelho como vinho começou a escorrer de seus lábios. — Ceire Joran Cyreck, seria muito grato se emprestasse-me o Zwaarkind.
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