Índice de Capítulo

    “Wouleviel por muitas vezes sentiu fome. Cruzaram gado: porcos, galinhas, bois e ovelhas, trigo e cevada. Graças à Ocas Ciled, entenderam antes de muitos os princípios da hereditariedade. Mas Kierlrun foi diferente: cruzou e criou máquinas de terror.”

    Izandi, a Oniromante


    — Temos cinquenta mil homens preparados para cruzar a fronteira. Cinquenta, não dez, cinco ou cem.

    E assim, ele foi. Ezekel não teve com ele uma segunda vez no dia, nem no terceiro ou depois. Vez ou outra, um dos membros de sua guarda real fazia guarda frente seu quarto na mansão dos Cyreck, e outra, o fitava nos jardins, cercado de seus cavaleiros e dialogando com lorde Cyreck. Tinha vontade de intrometer-se na conversa, de sentar-se com o irmão e somente conversar, sobre qualquer coisa que fosse. “Ele matou uma ave inocente porque falou algo indevido”, lembrou-se, e assim não se intrometeu.

    Dias passaram rapidamente. Ezekel amarrou seus cabelos com um laço branco, formando um rabo de cavalo simples, e então pingou a cera de uma vela para selar uma carta. O anel da Cidade de Diamante marcou o Brasão de Wouleviel até que a cera esfriasse. Após um suspiro ansioso, suor escorreu pela testa pálida do jovem. Fez soar um sino na mesa; em poucos segundos, uma serva veio com uma bandeja e levou as cartas. Uma para Howan Bloemennen, uma para Lycia Troikg, uma para Kya Mynsom e uma para o próprio irmão. “Deveria estar informado sobre quem virá no lugar da senhora Randi”, pensara, comprimindo as sobrancelhas.

    Bufou brevemente, então saiu dos aposentos. Do lado de fora fazia sol, um sol primaveril brilhante cujos raios dourados traçavam mosaicos floridos dentro do corredor. As balaustras estavam cobertas por diferentes trepadeiras, amarradas com força. Não queriam se soltar de modo algum. “O que acontece com elas caso percam seu sustento, seu alicerce?”, pensara, e logo pensara em Ofina. Amava as plantas e sabia todo tipo de resposta para elas. Mas seu olhar foi rapidamente capturado por outras coisas nas trepadeiras.

    Havia abelhas zunindo entre as flores pouco abertas. Ainda eram poucas, e voavam com uma cadência que fazia Ezekel cogitar se estavam doentes. Ainda assim, elas voavam entre botão e botão das trepadeiras. Mal havia botões, mal haviam as trepadeiras se recuperado do inverno todo. Ainda assim, zuniam e voavam.

    Ezekel suspirou, fechou os olhos pesados e abaixou a cabeça.

    — Que seja feita a vontade dos Deuses — sussurrou, e atrás da balaustra via uma grande e ornamentada carruagem.

    Descera rapidamente. Trajava um tabardo de brocado branco fendido na saia e calças cinzas. Sobre o ombro direito, uma longa meia capa de linho e algodão, alva e dourada. No seu centro fora bordado o brasão de Wouleviel: um lírio de cinco pétalas, desabrochado e uma frase numa língua já extinta. Amunnis Hwäi, Wouelev. Seria uma frase tão bela se não o causasse suor frio nas costas agora. Mesmo que a carruagem fosse bem ventilada, suava. Uma gota de suor frio despencou no seu olho aberto, o irritando…

    Mas isso não era desculpa para parar.

    O que Ofina o diria se desse meia volta?

    “Isso não é só por mim”, disse-se. “É pelo povo de Wouleviel, constantemente violados pelo Império. É por nossas terras e nossas belezas. É por nossos Deuses. É por nossas famílias. É pelos Godwill… É por minha família.’

    ‘Eu tenho coragem!”, gritara para si — e assim não via multidões nas alamedas de Mão da Queda. Nem as que cercavam a entrada do Ninho do Dragão.

    Mas a carruagem seguiu até onde os cavalos aguentavam se aproximar de seu centro… Não precisavam galopar mais do que isso.

    Ezekel mal descera da carruagem até ser cercado por servos também. Vários cuidadores-de-dragão seguiam com folhas de Flagelo do Dragão, abanando-as em várias direções para espantar os gigantescos dragões-reais. “Artreni prefere pássaros”, pensou na piada, mas não conseguira rir dela. Caminhara até um enorme cilindro de pedra branca como porcelana, rocha-anciã, uma das mais belas do reino. Era tão rara que nem o Palácio dos Cinco possuía paredes inteiras dela.

    Pilares inteiros de rocha-anciã, conectados por arcobotantes, circundavam uma estrutura alta e cilíndrica, plissada como uma saia. Tochas e veletetos brilhavam intensamente nos pilares, e fitando o lugar melhor, Ezekel reparou um pequeno flume escorrendo para fora das paredes. “De onde vem essa água?”, se perguntou. Depois, preferiu não saber.

    — Espero que por dentru não fheda — reclamara uma voz masculina e ainda meio fina, meio interrompida como se os dentes roçassem as bochechas.

    Ezekel se virou para o dono da voz e imediatamente prestou uma mesura educada e profunda.

    — Saúdo-lhe, Vossa Alteza Howan Bloemennen.

    — Também te saúdo, id Baene — respondera, com a voz meio baixa. Estava vestido com uma longa camisa de brocado vermelho, com uma alta gorjeira. Por mais belos que fossem os motivos de aves na camisa, ou as correntes de prata que uniam a gorjeira e as golas, uma marca roxa pintava metade do seu rosto. “E os cabelos são realmente tricolores…”, pensou Ezekel. Príncipe Howan Bloemennen era mais ruivo do que loiro ou castanho, diferente do pai e irmã. No entanto, sua florescendo barba era mais castanha do que loira e ruiva.

    Seus olhos estavam pesados, irados e melancólicos. Pareciam estar em qualquer outro lugar, mas aqui à fúria.

    Erguendo-se, Ezekel continuou:

    — Espero que tudo ocorra bem — pôs a mão no peito, traçando o Cálice — e rezo pela saúde de seu pai.

    Howan fixou seus olhos nos olhos de Ezekel. Sua boca se abriu e fechou, mas ele somente cerrou os dentes, girou os calcanhares e saiu em direção da entrada para o cilindro. O loiro piscou repetidas vezes, suspirou e seguiu logo atrás dele pelos quase vinte metros até o salão. Logo conseguiu discernir os brasões esmaltados nas armaduras dos cavaleiros protegendo os portões — eram cavaleiros com armaduras escamosas, usando o verde-marinho dos Mynsom. Outros, tinham armaduras com espinhos no elmo e nas manoplas. Ezekel preferiu não olhar para eles.

    Seu olhar caiu na grande iluminação do lado de dentro. As paredes internas eram ainda mais ilustres do que por fora, e seguindo para cima, um grande lustre jorrava as luzes calmas de uma veleteto. Não havia janelas ou outra porta, mas sim uma grande mesa redonda aberta em um único ponto. Ao total, cinco cadeiras estavam à mesa — tronos de mogno, enfeitados com entalhes de ouro e prata e almofadas de veludo.

    Em um dos tronos, rei Rikard Godwill estava sentado, olhando calma e seriamente para uma mulher sentada noutro trono.

    Era alta como Ofina, com o mesmo rosto oval, onde um nariz aquilino e longo apontava com a mesma intensidade ardente que os olhos negros e brilhantes, como os cabelos. Como o vestido negro com um decote que ultrapassava a linha do seio. Fios vermelhos desciam da gola alta, enleada com rubis lapidados como estrelas. Ezekel poderia ter tido alguma dúvida de quem era. O rosto sério do irmão era o mesmo de sempre.

    No entanto, a mulher não estava somente lá, somente sentada ou bebendo da alta taça de vinho. Ela segurava uma corrente de aço nas mãos, que acabavam na coleira de um cachorro com dentes enormes como as garras de um urso. Um cão alto como um urso, que latia forte e violentamente em direção de uma garotinha ruiva e pálida, prestes a chorar.

    — Se acalme, Luhgi — falara a mulher, e o cão furioso bateu o traseiro no chão no mesmo segundo. — Ótimo, ótimo. Se continuasse assim — fitou o cão, que abanava o rabo curto —, ela acharia que nós gostamos de comer crianças! Todo mundo sabe que em Kierelrun só comemos adultos muito bem passados!

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