Capítulo 56: Calor (1)
“Fome por dor, fome por amor”
Izandi, a Oniromante.

Vistas de cima, as duas camadas de paliçada branca pareciam finas, inofensivas, e a segunda parecia montada às pressas. Os Caras-Queimada lá dentro certamente pensavam o contrário. Sentada em uma pedra alta, Faina sentia o vento beijar-lhe a barriga enquanto observava os falcões circulando sobre a pequena vila. As casas eram redondas, com telhado de peles costuradas em estacas; algumas outras eram mais altas, com telhados de madeira, mas maioria era pequena e afundada no solo. Fumaça escapava de suas telhas e peles e braseiros estavam acesos, ardendo.
— Há Bárbaros lá também, não? — gritou Faina a Imanyn. Ele e outros observavam a vila com o rosto protegido com máscaras de osso e pelagem.
A neve despencava cada vez mais forte, acompanhadas de um chiado alto de vento e trovões.
— Si-sim! — Ergueu o pescoço. — A-ao menos havia…
— Não vejo nenhum — gritou Razin. Vestia-se em pele de baleia e tinha um longo machado em mãos. — Certamente estão tão mortos quanto nós estaremos daqui a pouco. É o que eu faria. Eles são ainda mais bárbaros que os Bárbaros, certamente fariam isso.
Faina deu um sorriso pequeno para o rapaz.
— Não vamos morrer, não vamos. Certamente os deuses nos polparão da neve quando terminarmos de matar todos os daquela laia. Antes disso, continuaremos a marchar para o sul… — disse e se levantou. Estava um pouco mais acostumada com suas pernas ainda mais longas; Razin parecia um toco próximo dela. Volvendo o olhar para a vila, reparou nas fogueiras e nos falcões.
— Nós temos homens o suficiente para um ataque direto — continuou Razin, gritando. — E cavesões também… — Jogou-se da pedra. — Se me dão licença, vou na frente ter uma morte honrosa.
A Arrundria suspirou e olhou para Mirta, que estava de pé e coberta por quase quatro camadas de pele de baleia e focas.
— Pare, Razin. Mirta, você tem alguma ideia do que fazer?
A parda fechou os olhos amendoados por um instante, pensativa.
— Tenho — respondeu, abrindo os olhos e encostando as mãos. Faina sorriu, e isso fê-la entregar um sorriso amarelo. — Há uma velha história no meu povo, de um certo Corsário infame… Isso gastará muita banha e pedras de enxofre, Ay rieq. Precisaremos dos falcoeiros, e não posso garantir que funcione…
Faina piscou. “O que é enxofre?”, ela quis perguntar, mas se segurou. Naquele instante, não desejava mostrar sua falta de conhecimento. E se Mirta falara sobre, ela sabia o que era e que tinham no acampamento.
— Algum dos meus filhinhos morrerá com isso?
— Só Caras-Queimadas.
Faina deu um curto passo e tentou abraçar a minúscula Mirta, chilreando uma risada.
— Então que seja! Razin, Imanyn, escutem-na! — Fitou o pequeno acampamento montado pouco abaixo da colina, perto de uma caverna onde vapor escapava como uma nuvem de fumaça. — Façam o que ela falar. — E sentou-se de volta à pedra. — Mas me garantam que não há Bárbaros lá, tá bom? — os deu um sorriso.
Ignorando as coisas inteligentes que Mirta falava, Faina enlaçou os braços na barriga bem coberta da cacheada e observou seu acampamento. Estavam marchando com ela há dias e dias numa Noite que não queria acabar. Guiados pela Mãe Vespa, as Agulhas ficavam mais próximas a cada passo. A Mãe Vespa fora excepcionalmente boa desta vez, brilhando no céu entre os Luas: encontraram uma grande cadeia de cavernas conhecidas.
“As Veias Abertas”, lembrou-se Faina. Eram longas cavernas, cavernas quentes ao sul de Veilyodir. Deram sorte de não encontrar acampamentos de Caras-Queimada no caminho, mas duas tribos de Bárbaros rapidamente aceitaram sua benção e se juntaram ao seu acampamento. Agora, passavam de um número muito maior do que Faina sabia contar.
E nas Veias Abertas, havia carvão nas paredes e nevadeiras crescendo próximo, de modo que fazer as fogueiras do acampamento fora ainda mais fácil. Ao longe, as árvores brancas despencavam à machadadas. E para os cansados, um presente ainda melhor: calor. Dentro das cavernas, água borbulhando à morna eram encontrados em pequenos lagos com teto de pedra. “Há quanto tempo todos não tomam um bom banho e esquecem da geada?’
‘Alguém esqueceria isso?’
‘Como nossos descendentes chamarão isso?”
Fechou os olhos pesados e fracos.
— Nós deixaremos descendentes? — sussurrou, cerrando os dentes cheia de fúria. — Meu Krazhii…
Os cabelos de Mirta eram macios; poderia dormir ali de novo.
Mirta tocou sua bochecha e balançou a cabeça. Ao devolver o gesto, Razin, Imanyn e os outros guerreiros observadores haviam voltado para o acampamento. Faina deu uma rápida olhada e percebeu que os falcões não estavam mais circundando a vila, mas retornavam aos seus mestres. Exceto um homem — um marchava calmamente para a tribo tomada por Caras-Queimadas. “É um mensageiro? Que os deuses o protejam.”
— Ay rieq… — chamou Mirta, dando-a um sorriso amarelo e grande.
— Sim?
— O que acha de um banho?
Faina a soltou e saltou, cobrindo a mulher até com as patas da pele de leão.
— Eu não fedo, sou uma Arrundria!
— Arrundrias fedem sim, Ay rieq, e não estou falando de fedor. — Deu de ombros e relaxou o cenho. “Esse sorriso foi real”, pensou Faina. — Seria bom para Ay rieq um banho relaxante… Você ainda não se recuperou. Não deu tempo. Ainda menos porque Ay rieq não está comendo bem, nem dormindo!
“Não sou eu quem quer ser recuperado.”
— Estou bem, já te disse. — Abriu um sorriso, então pôs os indicadores nas pontas dos lábios cor de vinho da parda. — Estou bem! Sou descendente de gigantes, não sabia? Consigo ficar muito tempo sem comer! E tenho comido bem sim. Ontem me serviram três peixes diferentes e sopa com nozes de nevadeira cozida.
— E Ay rieq só comeu os olhos dos peixes — num movimento rápido, agarrou os pulsos de Faina e se aproximou. — É meu conselho, meu alvitre: descanse um pouco. Vou preparar algo para comer, e então… Faina… banhe-se. — Seus olhos estavam caídos, e até o aperto nos pulsos era pequeno, fraco.
“Odeio quando faz isso! Por que tem sempre que ser quem cuida de mim? Estou bem, não vê?”
— Tudo bem… — Soltando-se, deu um passo para trás e tocou a boca. — Eu vou. Mas é bom vir rápido. Aposto que os homens ainda estão no banho.
Mirta entregou um olhar seco à Faina, cruzando os braços.
— Nenhum homem tocará em Ay reiq sem que lo deseje, sabes disso.
A mais alta sorriu com a resposta. Esperava algo mais irado, ou até mais tímido, para responder seu comentário. “E como é de costume, ela estava certa”, pensou Faina.
Agora estava sentada em um lago vazio, com as costas apoiadas na beirada e as pernas estiradas. A caverna tinha paredes negras, iluminadas com alguns poucos archotes acesos com banha, e mais do que lugares para por os pés, tinha poços e lagos cheios de água quente. O lugar tinha cheiro de água quente e cavesão assado, o que abria o apetite de Faina cada vez mais. Suas roupas estavam atrás de suas costas, assim como vários outros pequenos lagos de água quente, cheios de gente. Mães seguiram o conselho de Mirta; crianças brincavam e riam.
Faina sorriu.

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