Índice de Capítulo

    “Fome por dor, fome por amor”

    Izandi, a Oniromante.

    Faina sorriu.

    Apesar da temperatura não estar muito alta, filetes de vapor subiam para o céu junto de bolhas, liberando o cheiro do calor. Sentia sua pele rosar. Era uma boa água quente, de um lago quente… Não uma que ia e vinha para fora das beiras e puxava sangue de volta para o leito…

    “Esqueça, esqueça. Esqueça… Esqueça!”

    Faina abraçou-se e enterrou o rosto no peito. “Eu sou jovem e posso ter outro. A Mãe-da-Neve disse isso, e o Pai-da-Neve também. Sou fértil, muito fértil, como toda boa Arrundria. Engravidei na primeira vez e com certeza engravidarei na segunda…”

    — Krazii… Meu Krazdoro… — fungou, fungou e fungou mais uma vez. Jogou água quente na face e balançou a cabeça. — Eu deveria ouvir mais as pessoas.

    Viciada em embriaguez, lembrara-se. Podia contar nas duas mãos as vezes que ficara embriagada. Por que aquela mulher dissera isso? Era como chamá-la de lasciva, sendo que tivera sexo de verdade uma única vez. “Não faz sentido”, pensou, relaxando o corpo e afundando mais nas águas quentes, e então comprimiu os olhos. Estava com braços cruzados com amor, mas nenhum filhinho estava lá. “Nada mais…”

    — Ay rieq? — questionou uma voz masculina. Faina inclinou a cabeça e viu de esguelha um homem de olhos azuis que a devorava com os olhos. — Trago notícias.

    Faina se virou um pouco, assim olhando diretamente para o homem.

    — O que foi, filhinho?

    — …Nosso mensageiro chegou a vila. Conseguiu avisar os Bárbaros, como pedira.

    — Ele voltou para nós? — apertou os dedos na beira de pedra.

    — Foi morto. — Deu de ombros. — Não havia nenhum Bárbaro, mas as flechas o atingiram rápido. Morreu como guerreiro.

    Faina cerrou os dentes.

    — Mais um filho perdido — suspirou. — Obrigado pelo aviso.

    — Há mais, Ay rieq. Um mensageiro dos Ryba veio nos avisar que estava há dois dias de viagem de nós.

    A mulher abriu um sorriso.

    — Espero que eles tragam mais cavesões e mel. — Levantou-se um pouco. — Eles serão bem recebidos, prometo.

    O homem acenou com a cabeça. Aproveitou a visão por mais alguns segundos, então deixou Faina. Ela ainda pôde ver o homem enlaçar uma mão na cintura de uma baixa ruiva após uma curta conversa, que não pareceu se importar quando se despiram e desceram ao mesmo poço de água borbulhante. “Eis a resposta da minha dúvida…”, pensou com um pequeno sorriso.

    A água quente abraçava seu corpo e esquentava-a aos poucos. Sentia como um suave abraço dos deuses, como se a confortassem. Mas de nada adiantava. Sabia disso. “Nada pode me confortar”, pensou. “Nada senão proteger meus filhinhos. Meus últimos filhinhos”

    Cobriu o rosto com as mãos, respirou o vapor quente e, ao soltá-lo, percebeu que estava sozinha demais. Olhou para os outros lagos: jovens riam, mães embalavam crianças com cantigas baixas, amantes se buscavam no escuro. Faina quase se deixou vencer pelo impulso de chamar algum rapaz de olhos claros, qualquer um que lhe devolvesse por um instante a ilusão de que não havia espinhos furando seu coração. Mas conteve-se.

    No entanto, poucos minutos depois, Faina sentiu mãos pequenas e macias massagearem seus ombros. Mirta entrou nos Veios Abertos com uma malga cheia de sopa de peixe, um copo de mel e uma fatia gorda de queijo rosado, além de olhos serenos e calmos. O vapor deixava sua pele nua num tom rosado suave..

    — Ay rieq… — murmurou Mirta, aproximando-se da beira do lago termal. Seus olhos amendoados, geralmente tão serenos, carregavam uma mistura de preocupação. Ela se ajoelhou, e as peles de baleia se amontoaram contra a pedra úmida, e estendeu a colher de madeira. — Coma a sopa também. Está quente, como você precisa.

    Faina balançou a cabeça devagar, os cabelos negros-cinzentos grudados na nuca pelo vapor. Gotas escorriam por seu corpo inteiro, desenhando caminhos por sua pele..

    — Não estou com fome, Mirta. Já disse isso. — O calor da água envolvia suas pernas esticadas, borbulhando suavemente contra seu quadril ainda submerso. Uma bolha de calor estourou entre suas pernas. — Ah…

    “Estou cada dia pior.”

    Mirta franziu os lábios carnudos;

    — Obrigado — dissera, comendo o queijo e bebendo o mel rosa. “Se me esqueço nela de novo…” Ainda vestida com as peles quentes, Faina não conseguia tirar os olhos das curvas elegantes do pescoço moreno, nem do nariz arredondado ou dos lábios carnudos.

    Quis puxá-la para a água também.

    Faina se ergueu e sentou à beira do rio, e a água deslizava por seu corpo pontilhado de azul, e seus cabelos grudavam na pele. Mirta deu um sorriso genuíno para Faina, que sorriu de volta.

    — Coma a sopa também, Ay rieq — falara, levantando a colher.

    — Não estou com fome…

    Mirta fez um grunhido quase maternal. Ela suspirou e levou a colher a boca, saboreando a sopa.

    — Está gostosa.

    — Vocês também comiam sopa na sua terra?

    A morena fez um sorriso sem noção, uma mistura de constrangimento e graça.

    — Creio que sopa é uma receita universal a todos os povos, Ay rieq. — Deu de ombros e gargalhou com a resposta.

    Faina também deu de ombros. Comeu uma colher ou outra da sopa, sem tirar os olhos sedentos da amiga, da serva, da conselheira. Enquanto sua mão subia pela coxa de Mirta, sentindo a pele macia e quente. “Realmente é gostoso.” Abaixando seu corpo, mordeu pacientemente colher por colher, até sua mão escorregar para dentro das peles de Mirta.

    — Quando a nevasca passar, estarei a providenciar um banquete de carne assada para você — sussurrou no lóbulo da orelha morena. Mirta deixou um suspiro fugir de sua boca e apertou o braço esquerdo da Arrundria, e gemeu quando a mão macia e grande escorria da sua clavícula para a cintura. Os lábios vermelhos roçaram por seu pescoço pardo, sussurrando calor, e a mão descia mais…

    A outra mão entrou nas peles, até encontrar o traje de Esposa-de-Deus. Faina encarou-o e inclinou seu rosto risonho até o queixo da parda, corada, arfando uma nuvem quente.

    — Shh… — Faina murmurou, seus lábios traçando um caminho pelo pescoço pardo, beijando, lambendo o suor salgado. — Você ganhou peso — disse. Mirta corou e virou o rosto, com o ego ferido. Faina não se importou nenhum pouco.

    Sua mão direita acariciou a coxa, com cada dedo separado e deslizando feito fios de trigo, e seus sopros beijavam o curto pescoço como se estivesse prestes a morder, arrancar um pedaço. Mirta gemeu mais uma vez e agarrou Faina, e esta beijou-lhe o seio e tocou-a, e tocou-a até as unhas de Mirta se prenderem na sua pele. Seus beijos saborearam o mamílo até que endurecesse.

    Mirta arqueou as costas, agarrando Faina com mais urgência.

    — Ahh — gemeu, um gemido molhado que soou por toda a Veia Aberta, e a giganta Arrundria não deu tempo para que só ouvissem aquele. Seus toques eram lentos, exploratórios, cada dedo traçando padrões na pele de Mirta como se mapeasse um território sagrado.

    Beijou-lhe a boca com fome, com suas línguas dançando em um ritmo urgente. O sabor do mel se misturava à saliva e aos gemidos das duas. Seus toques deslizaram para as pernas de Mirta, abrindo-as gentilmente, explorando com dedos macios e precisos. Mirta gemeu alto e agarrou os cabelos de Faina; seu corpo tremia como o de um cavesão cansado. Então, Faina beijou-a ainda mais, saboreou seus lábios de mulher até que estivessem enxarcados, e puxou-a para dentro da águas quentes.

    Ao final de seu banho, voltaram à tenda. Faina saboreou os lábios de Mirta e deixou-a ensinar coisas e coisas sobre o corpo de uma mulher. “Aqui… assim…”, murmurava Mirta entre beijos, seus dedos suaves traçando curvas no corpo de Faina como cordas de uma harpa, arrancando suspiros e gemidos. Faina se arqueava, gemia, agarrava a cama e gemia até a garganta enrouquescer.

    Mas também mordeu o pescoço pardo com suavidade, espalhando chupões que deixavam marcas rosadas. Saboreou os lábios carnudos e a saliva, e espalhou-a pelo pescoço pardo a chupões e mordidas suaves. Deixou-se cobrir de suor e a amou até dormir.

    Acordara coberta de suor, prensada na pele suada da parda deitada sobre seu corpo. Sentia a respiração quente, calma, soprando por seu seio, e mãos descansando em sua cintura. Os anéis de seus cabelos estavam bagunçados, atirados pela cama e pela outra, e nem os cobertores de baleia impediam Faina de dar olhadelas na curva do pescoço, ou de acidentalmente repousar uma mão na cintura e outra num lugar mais redondo — mas os braseiros lá fora projetavam uma luz um pouco mais forte que os de dentro da tenda.

    Um gemido fugiu da parda.

    — Te acordei? — sussurrou. Mirta acenou a cabeça e beijou o seio da mestra.

    — Não, já estava acordada — e beijou-o de novo. Subiu um caminho de beijos suaves do mamilo até o queixo da mestra, até reparar na luz que surgia no horizonte.

    As duas fitaram aquilo com temor, mas só uma com susto.

    — Quer comer algo antes de irmos, Mirta? Quero ver.

    A parda terminou um último beijo na mestra, então bebericaram uma fatia de queijo e se vestiram. Faina repousou na cabeça a assustadora pele de leão, as longas presas obstruindo um pouco da visão. Um vento sem neve espalhava o vento. “Sem geada”, constatou. “Isso é bom.” Com uma olhada rápida, seu acampamento estava em paz. As tendas estavam com seus braseiros acesos, e os guardas que faziam a ronda acenaram para elas enquanto andavam. Um pequeno grupo acompanhou-as para a colina.

    Cercando o sul do acampamento, havia algumas baixas colinas e uma alta e ingrime, de rochas visíveis graças ao vapor que vazava. Mas era sobre as outras onde via homens com sacas e arqueiros se reunindo. Um deles bravejou para mirarem bem, e uma luz dourada vinha debaixo deles.

    — Eles estão saindo! Atirem!

    — Atirem!

    As flechas zuniram! Num piscar de olhos, Faina cerrou os dentes num sorriso leonino e feroz! Zunidos e mais zunidos saíram da colina, e quanto mais subia, mais os gritos começavam a ouvir. Os sons das flechas atravessando carne se misturavam ao barulho de estralos de madeira. Zum! Zum!, soavam! Ela não pensava se aquela era a coisa certa. “Não importa, não? Meus bons filhinhos tem mais chance de sobreviver assim!”

    Zum! Zum! As flechas não paravam.

    Ao finalmente chegar no topo da colina, puderam contemplar os falcões circundando a vila mais uma vez. No céu negro e estrelado, os dois Luas jogavam luz prata e branca, cálidas, para as chamas douradas que surgiam pouco a pouco dos casebres. Fediam a carne queimada, um banquete de banha em chamas e estalidos de madeira.

    Ouvia gritos desesperados de lá. Zum! Zum! Havia aqueles que tentavam apagar as chamas, mas o braseiro do meio da vila fora feito para aguentar água — e os caminhos de banha se misturaram com a neve! Um azarado disparou um balde contra a fogueira, apenas para que um bloco de banha misturada com enxofre caísse sobre ele e um punhado de brasas fizesse o mesmo.

    Carne queimada, gritos. Ele ardeu, outros arderam, e seu fugir espalhou as chamas para mais casas e as roupas de outros azarados. Faina sorriu. Se aproximara da borda da colina para ver melhor o sofrimento dos assassinos do seu filho.

    Zum! Zum!

    Os que tentavam fugir para o norte não tinham chances contra o que vinha do alto. Flechas os empalavam. Os ceifavam como pássaros tombando. As paliçadas em chamas de nada serviam senão para atrapalhar, e os corpos transformavam a neve em lama vermelha.

    Um grupo ou outro tentava fugir para o leste, mas encontraram uma hoste de poucos homens preparados. Os atravessaram a espada. Os que tentavam fugir pelo sul encontravam hostes de poucos homens, mas armados com mais flechas e espadas saqueadas de outros Caras-Queimadas. Um tentara matar Razin, atravessando a espada cinzenta na sua barriga, mas Razin atravessou metade do seu pescoço com um machado e arrancou sua orelha com a boca.

    — VÃO COM VYMYA! — urrara o nome da deusa da morte desonrosa, atravessando mais inimigos com seu machado. Estava banhado de sangue, seu e alheio, e ria.

    Imanyn gritou de susto, mas atravessou o peito de uma guerreira Cara-Queimada. Um grupo de ilhéus atravessara mais e mais guerreiros Cara-Queimada e matava seus protegidos em fuga.

    Um grupo com uma dezena de homens tentou resistir, mas não duraram mais do que os menores. Foram todos mortos, e suas mulheres derrubadas no chão; algumas foram mortas, outras pediram pela morte. Faina observou e suspirou.

    Era o direito dos seus homens estuprá-las, afinal. O saque era inteiramente dos que banhavam seu corpo de sangue.

    Faina só pôde rir. Sentou-se na pedra, enlaçou as mãos na cintura de Mirta e observou um falcão libertar mais um pouco de banha contra uma fogueira, que explodiu em chamas. Mais e mais morriam, morriam sem parar.

    “Que aquele miserável de branco esteja lá dentro”, pensara, mas no fundo queria mais do que tudo que ele não estivesse. Desejava que estivesse bem. Longe, mas não demais. Despreparado para sua furiosa chegada, e ainda mais para sua ira.

    E mais e mais Caras-Queimada recebiam flechas, e mais e mais Caras-Queimada passavam a ter o corpo inteiro queimado.

    Apoie-me

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (2 votos)

    Nota