Capítulo 60: Questões de linhagem (1)
“O Homem é um ser de conflitos. Creia, buscaremos razões para morrer sempre que for possível. E impossível. Não precisamos sequer de razões, às vezes. A natureza ajuda neste trabalho.”
Izandi, a Oniromante

“Preciso de um pouco de ar e água”, concluiu Ezekel com uma olhadela macambúzia, mas auspiciosa. Seu crânio ainda dava leves futucadas dolorosas no seu cérebro. Não era tão resistente ao álcool quanto sua esposa, mas as bebidas das Ilhas Coral tinham uma ressaca menos dolorosa do que o vinho de Aavier, pelo jeito. Ainda assim, se recompôs cheio de seriedade para o momento. Isso lhe dificultava um pouco entender certos dialetos da Pequena Rainha ou da princesa Randi, todavia não era nada impossível de acompanhar.
Principe Howan fechou o olho esquerdo e aninhou-se à mesa, com pena e tinta e papel à mão. De cenho franzido e olhar calmo, aceitou que uma copeira, não mais velha que Ezekel, enchesse sua taça. Rei Rikard não aceitou nada, e a rainha de Flassam tinha um simples copo de água do seu lado. Randi bebia uma cerveja negra como betume em uma caneca de chifre e ferro. Após um breve segundo, onde nenhum dos governantes falou, o id Baene retomou a fala, anotando no pergaminho em sua távola.
Era uma mesa quase tão alta quanto ele, redonda e quase tão magra quanto. Feita de bétula e mogno, adornada com arabescos e formas geométricas semelhantes a escamas. Sobre ela, só repousava uma vela, papel e tinta. A pena jazia as mãos do id Baene, tanto quanto um peso invisível a mais.
— Acertados os transporte de recursos como Flassam, Greanalg e Greatedan nutrindo Aavier, e Kierlrun fornecendo aço e armaduras. Greatedan fornecerá canhões, mosquetes e pólvora. Ainda, haverá um envio mensal de dez mil lírios de ouro, direto da Coroa Unida, protegidas por dois mil homens. Algo mais?
— Reiterado — falara rei Rikard e princesa Randi, que continuou: — Kielrun fornecerá aço à Aavier durante toda a guerra.
— Procede — concordou rainha Kya.
A Pequena Rainha, Lycia Troikg, acenou com a cabeça. Ezekel reparou num cavaleiro de armadura espinhosa atrás dela se aproximar e sussurrar algo em seu ouvido. A garota empalideceu e deu uma olhadela veloz para o príncipe Bloemennen. “O que foi isso?”, pensara, mas rei Rikard, com sua voz grave, continuou:
— Enviarei duque Luke Halfgrey à dianteira dos homens de Greanalg.
Randi arregalou os olhos.
— O jovem Lobo Cinza? Tão cedo assim, Godwill? — Ela apoiou o queixo na mesa, sorrindo. — Não era ele jovem demais?
— Duque Luke Halfgrey provou sua proeza em batalha diversas vezes. Mais ainda, seu casamento com senhorita Madeiny Robins deu fruto já bem falado nas cortes da Baia Cinzenta.
— Que bela história de amor… — ela se espreguiçou. — Não sou contra. Eztrieliz sempre me surpreende com suas falcatruas. Um prodígio não fará mal.
“Ele é um ano mais velho do que eu…”, pensou Ezekel. Cerrou seus punhos; seus calos ainda estavam ali. Não era inútil, teve que dizer a si mesmo.
— Algo a acrescentar, rei Rikard Godwill? — retomou.
— A este tópico, não presumo não.
— Flassam discutirá isso internamente.
— Gr-Greatedan também.
Príncipe Howan Bloemennen apertou a caneta, quase forte o suficiente para que toda sua tinta vazasse. Invés disso, ele a soltou, cruzou os braços e mordeu o lábio de cima. E então, sorriu.
— Que este tal de Lobo Cinzento venha com seus homens, Vossa Majestade. Serão todos bem recebidos em Aavier.
Ezekel suspirou. “O que estou fazendo?”
E anotou no pergaminho. “Não era para isso que deveria estar aqui. Tudo isto poderia ter sido previamente resolvido, tudo…” Ocupava a cadeira do diplomata. Do conselheiro. Não era isso que deveria estar fazendo: aconselhando a melhor maneira de como lidar com toda a situação? Seria realmente ela marchar soldados estrangeiros em um país invadido?
“Por que todo caminho leva à tragédia? E por que está aceitando, príncipe Howan? Não me diga ser a ressaca!”
Mas o príncipe de Aavier continuou a sorrir. A Pequena Rainha olhou para o jovem príncipe de cabelos tricolores mais uma vez.
— Suas palavras foram gravadas, Vossas Altezas e Majestades. Agora, que seja discutido sobre os dragões-reais.
— Aavier não os alimentará — respondeu o príncipe de uma vez grossa.
Rei Rikard ergueu o queixo e rainha Kya semicerrou os olhos.
— Já estamos lhes dispondo nossos dragões-reais, garoto. O mínimo a fazer é cuidar de sua alimentação. Um dragão-real com fome tem escamas frágeis e não voa. Somente se arrasta e morre — respondeu Kya. — Um bem alimentado será o escudo contra as flechas inimigas, a lança contra seus flancos e o desastre contra seus acampamentos.
— Nosso gado nunca esteve tão pouco. — Cruzou os braços. — De todo lugar, ouvi notícias de monstros devorando o gado do meu povo! Alguns relataram até herbívoros. Comedores de folhas comendo ovelhas! Já um dragão-real come uma dezena de ovelhas inteiras em uma semana. As devora vivas, sem fazer a mínima distinção de idade!
— Príncipe Howan, acaso não disseste que Aavier era o maior reino de todos os cinco? — contraargumentou rei Rikard.
— Não só eu disse, como reafirmo que também é o único com fronteiras com o Império. O maldito Vale das Irmãs!
— Minhas fontes me dizem que o Sempre-Verde continua tão fértil como sempre. já nosso Púrpuro come duas vintenas de ovelhas em uma refeição, mas não se alimenta novamente por um mês, forte como uma muralha — respondeu rei Rikard. — Falara do Vale das Irmãs? Muito bem. Púrpuro irá reforçar a Fortaleza-Urso imediatamente ao fim deste conselho. Não é indomável como seu Meevel.
— Adoraria ter um dragão — falou princesa Randi em voz de sussurro.
Howan cerrou os dentes. Seu sorriso se quebrou mais profundamente, deixando para trás um par de olhos perdidos e furiosos. Ezekel cerrou os dentes e engoliu em seco.
— Por que não levam gado próprio para os dragões? — aconselhou. Seu rosto empalideceu quanto os cinco pares de olhos foram contra ele. Engoliu em seco, piscou e continuou: — Migrem gado junto dos cavaleiros. Não somente para alimentá-los, mas também para que cruzem com o gado de Aavier.
A Pequena Rainha sorriu timidamente e pôs as mãos na mesa.
— Me-me parece boa ideia… — Olhou para o cavaleiro espinhoso, que a sussurrou algo numa língua cheia de melismas. — Greatedan cederá gado para cria… em Aavier. Nossos bois são os mais fortes de Wou-Wouleviel…
— Muito bem — acordou rei Rikard. — Posso concordar com isso. Ao longo prazo, é beneficioso para todos os cinco.
“Assim, a situação de Aavier melhoraria um pouco…” Quão aterrador deveria ser ao príncipe que cinco nações estrangeiras pusessem seus homens na sua terra? As culturas dos Cinco Reinos eram semelhantes em certos aspectos, mas muito diferentes em outras. Ao que bem lembrava Ezekel, quando ainda estudava em Ocas Ciled, todas as línguas antigas derivavam da mesma língua, a qual os Versicolistas, Tradutores e Ciles concordaram em chamar de Proto-auriano-leste, que teria se originado de Kierlrun. As culturas não eram diferentes desse aspecto.
Mas uma coisa era o papel. Greatedann adorava uma grande variedade de deuses e falava línguas diferentes dentro das mesmas marcas. Kielrun aderiu ao dogma Centralista e cultuavam um único deus, invés dos Quinze de Aavier e resto de Auria. Flassam foi colônia das Ilhas Coral por quase quinhentos anos e desde então, mulheres casadas vestiam faixas sobre um dos ombros e os jovens discordavam da castidade pré-nupcial; e caso se esforçasse para lembrar desse tipo de pequenas diferenças, renderia uma longa conversa nos círculos nobres. “Uma conversa que poderia ser agradável”, pensou Ezekel ”, mas aterrorizante sob as armaduras de soldados.”
O id Baene apertou a caneta.
— Está de acordo, Vossa Alteza? — perguntou o id Baene.
Príncipe Howan Bloemennen semicerrou os olhos e tamborilou a mesa com as unhas. Ele respirou fundo e assentiu com a cabeça, trincando os dentes.
— Sendo assim, fica acordado que será fornecido gado, adulto, de ambos os sexos e saudáveis, para cruzar com os de Aavier — anunciou enquanto escrevia. — E ainda, o gado nascido destes cruzamentos será poupado de ser comida para os dragões-reais até se tornarem adultos. De acordo, Vossas Altezas e Majestades.
Ezekel suou frio.
— De acordo — respondeu princesa Randi.
— Não vejo porque discordar — disse rei Rikard, com sua voz grossa num estado favorável.
Enquanto Ezekel suspirava silenciosamente, para que não vissem sua tontura e alívio, a jovem copeira de antes entregou uma carta envolta em um laço negro para o príncipe de Aavier. Howan levantou uma sobrancelha, mas não leu o conteúdo. Isso deu tempo para o príncipe Godwill terminar de escrever as formalidades e levantar o próximo tópico. Pensava que sua falta de experiência estava ficando cada vez mais óbvia, mas era certamente prazeroso ser ouvido por figuras tão importantes. Então Howan Bloemennen quebrou a cera da carta. Num instante, seu rosto empalideceu e ele se levantou de chofre, com os fiapos de barba eriçados e olhos arregalados.

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