Capítulo 61: Os altos jardins imperiais (1)
“Um caminho traçado pelo Sol, um veraneio tão justo e belo para uma estrela verde em meio ao caos das montanhas.”
Izandi, a Oniromante

— Todo mundo tem cabelos como o seu? — perguntou Aliz. Hyd engoliu timidamente em seco enquanto sua prima alternava entre segurar suas madeixas e cutucar suas bochechas, como se fossem as coisas mais macias do mundo. “Uma boneca”, pensou Hyd. “Uma bonequinha vermelha.”
Hyd abaixou a cabeça e olhou para Mestra Jen, de pé no canto do grande salão; do quarto. A pequena ruiva não se acostumara com a quantidade de espaço onde estava. Somente sua cama ocupava todo o tamanho do seu quarto no castro dos Beesh, e era macia como monte de neve fresca. Mais estranho era o resto do recinto: não erguido, mas perfurado. A mansão tinha partes dentro de uma montanha, aberta em várias sessões. Tapeçarias e mobília ornamentavam as paredes, e o chão era de pedra negra e lisa como um espelho. Sentada na cama, suas duas primas mais próximas a ajudavam a vestir-se com um vestido preto, de um tecido leve como seda, mas com uma textura menos macia.
— Erga os ombros, pequena Hydele — dissera Milesent, cruzando os braços. Era sua prima mais velha, e estava sentada não muito à frente de Hyd. — Não é costume das mulheres bárbaras ter elegância?
— Puxa, Milesent! — ruminou Aliz, com rosto duro.
— É, Milesent, ela é só uma menininha! Não pegue pesado com ela! — falara Gilia, uma semana mais velha que Aliz.
— Desculpa, desculpa — respondeu Milesent, fazendo um sorriso no rosto.
Hyd não conseguiu responder, somente olhou para Jenna pelo canto do olho. Ter primas era uma experiência estranha. Lembrava-se de quando chegou à mansão de seu avô. Esteve em tantos braços e abraços, apertos de mão e futucadas de bochechas que imaginou seu coração prestes a explodir. Sentiu-se como uma novidade inexplicável nas mãos de inúmeros. Uma ovelha entre lobos famintos…
“Não, eles não me fariam mal”, pensou. “Eles não são Elouan.” Ela devolveu o olhar para o vestido. Era preto, e num corte que não estava acostumada a ver. Ele tinha apenas uma alça, mas não cobria os ombros. Se amarrava com uma faixa no busto, sustentado pela fartura feminina que Hyd ainda não tinha suficiente.
— Não faça esse olhar de tristeza, pequena Hydele — falara Milesent, fazendo esforço para se levantar. O vestido que usava era semelhante, porém branco. Seu tecido também era mais grosso, quase como uma couraça, para proteger os sete meses de gravidez. Milesent tinha cabelos tão longos que tocariam o chão, se não estivessem amarrados como dois pares de chifres pretos, e ainda restava o suficiente para tocar a cintura. Ainda por cima, era duas cabeças mais alta que Hyd.
Ela tocou o queixo de Hyd e o ergueu suavemente. Depois, abriu um fino recipiente redondo e raso. Milesent esfregou o indicador nele, o pintando com um tom acobreado de vermelho — num tom próximo que a pequena carregava nos seus cabelos. Então a pequena ruiva engoliu em seco quando aquele indicador avermelhado tocou os cantos do seus lábios e suavemente traçou um desenho.
Milesent deu um passo para a esquerda, permitindo que Hyd se visse no espelho de corpo inteiro. Nos dois cantos dos seus lábios, um desenho florido fora suavemente desenhado, num tom que destacava a branquidão da sua pele e o vermelho vivo de seus lábios finos. “Até as roupas de baixo são diferentes”, ela pensou, se olhando. As moçoilas de Aavier trajavam roupas íntimas de corpo inteiro, não de peças separadas. Isso fez Hyd se ver de uma forma suja…
— Sorria mais — continuou Milesent, se sentando ao seu lado e beijando sua testa. — Não recuse comida, pequena Hydele. Você precisa comer bem para crescer. E responda as perguntas dos outros.
— …Certo — disse Hyd. Sua voz soou como se estivesse presa dentro da garganta, mas saiu. Fazia tempos em que ela não falava.
O mundo sempre fora tão silencioso?
— Não é comum — ela disse, olhando nos olhos de Aliz. — Mas não é incomum, também. Onde eu vivia, havia várias.
Aliz fez um sorriso adorável, qual imaginava que Hyd era. Isso fez a ruiva se espantar, mas também aqueceu seu coração. Aliz aparentava ter doze anos e era dona de longos cabelos castanhos. Seu nariz aquilino era idêntico ao de todas as moças no quarto, exceto da Mestra Jen, mas um de seus olhos era amarelo como os de uma coruja. O outro, castanho escuro.
— É verdade que vocês comem… ervilhas? — questionou Gilia, com uma sombra de nojo no rosto.
Gilia tinha olhos adoráveis e grandes; ambos amarelos, mas o esquerdo tinha um pedacinho castanho. Ela tinha uma pinta abaixo do lábio e abaixo do olho direito, e era mais alta e farta do que Aliz. Seu vestido também era estranho à Hyd, sustentado por uma gorjeira de filigranas.
Hyd abriu a boca, mas fechou.
— Fava também.
Gilia ficou boquiaberta e empalidecida.
— É por isso que é tão pequena… — ela capturou as mãos enluvadas de Hyd. — Você estava envenenada esse tempo todo! Precisa comer coisas de verdade, priminha!
A ruiva não demostrou, mas estava sentindo dores. Muitas dores. Seus punhos ainda estavam queimados. “Estarão para sempre.” No entanto, não queria parecer deseducada e puxá-los.
— São comidas muito gostosas, prima — disse e abaixou a cabeça.
A culinária imperial dava medo em Hyd. No dia em que conheceu seu avô, as frutas estranhas e saborosas que comeu fizeram algo com ela. Algo que a assustava. Curaram sua cólica e fê-la sentir menos dores, mas fora naquele dia. No seguinte, mesmo que sua menarca já tivesse passado, o sangue da lua desceu de novo. Sentiu cólicas tão fortes que apertou as mãos da Mestra Jenna e mordeu um travesseiro para não gritar e incomodar seu avô durante a longa viagem.
E depois de chegar a mansão, fora uma terceira vez. Três vezes no mesmo mês. Por isso, estava anêmica e magra. Não fora só aquilo. Foi a parte mais dolorosa, mas não a mais estranha… Seus cabelos ficaram mais escuros e longos… e ela ficara mais alta. Seus dotes femininos se desenvolveram, e sua cintura afinou. “A Hydele que vejo no espelho não sou eu”, ela pensou.
“Não posso morrer de fome.”
— Eu também tenho uma pergunta — anunciou Milesent, fitando Jenna. — Quem é aquela mulher? Ela veio contigo, não?
Hyd juntou suas mãozinhas.
— Ela é minha mestra e minha cuidadora.
Milesent, que tinha um olho perto e outro amarelo, meneou a cabeça.
— Nunca vi alguém com a pele como a dela… Curioso. A queimaram? — fitou Jenna. — O que ensina a ela? Pode falar, não?
Ainda ferida e vestida em um traje de serva, mas com uma espada curta embainhada na cintura e outra no ombro, acenou com a cabeça. Metade do seu rosto ainda estava enfaixada e seu rosto tinha olhos cansados.
— Mestra Jen não entende sua língu…
— Nossa língua, pequena Hydele — corrigiu Milesent, aproximando o rosto. — Você é uma yeo’Chowett qual todas nós. É neta do generalíssimo do Norte, tanto quanto nós; até mais. É a herdeira da família. É uma princesa. Não esqueças disto.
Ela engoliu em seco. “Eu também não entendo.” Nunca tinha ouvido aquela língua na vida. Não havia livro na biblioteca do castro com alguma citação a sonoridade do Eztrieliziano, em qualquer nível. Mesmo assim, as palavras entravam nos ouvidos de Hyd, e ela entendia e respondia…
— Desculpa.
Milsent fez um sorriso suave. Ela aproximou o rosto e beijou a testa de Hyd de novo, onde maquiagem cobria o símbolo estranho.
— Também não peça desculpas com frequência. — Sorriu e deu um suave toque no nariz da priminha. — Em todo o Império, só existem dez mulheres que você pode pedir desculpas e seis para abaixar a cabeça. Nós não estamos entre elas — riu. — Na próxima vez que eu entrar aqui, terei de abaixar a cabeça para você e pedir permissão para falar. Nem a senhora minha mãe se livraria deste dever!
Hyd se olhou para o espelho mais uma vez, encostando seus dedos e observando-se atentamente.
“Eu não sou assim”, ela pensou, suspirou e olhou para Jenna mais uma vez.
— Mestra Jenna me ensinava esgrima. Pa… O senhor meu pai quis que eu aprendesse, para fortalecer meu corpo.
Os olhos de Milesent, Aliz e Gilia saltaram.
— Os bárbaros são incríveis… — disse Gilia, com um tom de decepção e balançando a cabeça. Milesent a deu um olhar furioso.
Depois disso, ficaram em silêncio. Hyd deixou que Aliz e Gilia brincassem com seus cabelos até que a hora de estar arrumada estivesse próxima. Assim, seus longos cabelos foram penteados em coque acobreado, sustentado por uma teara alta de ouro e prata, com três rubis do tamanho de um dedo na fronte metálica, e lindos arabescos. Depois, o vestido preto foi trajado. Era apertado no busto, mas suave abaixo dele. Na cintura, foi apertado com uma faixa de um tecido parecido com lã, que servia de espartilho, e um laço branco sobreposto. Dele, uma longa tira descia até seus pés descalços.
O vestido se destacou ainda mais por não ter mangas. Hyd se sentiu nua, mas engoliu em seco. Poucos segundos depois, Gilia trouxe par de argolas de braço, feitas de prata e ferro, que foram postas em seus antebraços; Aliz trouxe uma gorjeira de ouro claro e linho. Ela tinha ricos detalhes plumosos e era conectado à ombreiras de um tecido macio e de um preto quase púrpuro, passado por debaixo das argolas.
“Um leviaut”, relembrou Hyd; a palavra significava beleza palaciana,
— Agora sim, parece-se uma mulher — disse Milesent, pondo-se de pé.
— Antes ela parecia mais uma bonequinha…
— Aliz!
— Desculpa, prima Mile…
Milesent suspirou e Hyd cerrou os lábios quando seu estômago se apertou.
— Vocês duas, vão. Eu levarei nossa priminha até o senhor nosso avô.

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