Índice de Capítulo

    “Um caminho traçado pelo Sol, um veraneio tão justo e belo para uma estrela verde em meio ao caos das montanhas.”

    Izandi, a Oniromante

    — Vocês duas, vão. Eu levarei nossa priminha até o senhor nosso avô.

    As duas meio-irmãs acenaram com a cabeça e se despediram. Assim que saíram pelas portas duplas de madeira vermelha, Mestra Jen se aproximou de Hyd e abaixou a cabeça servilmente. Milesent ergueu o queixo e a deu um olhar seco e interessado, mas retomou um olhar de pena quando a pequena ruiva agarrou as mãos grossas da recifana para ficar de pé. As pernas fracas de Hyd tremeram quando sentiu o frio suave pelos pés, um frio doce e reconfortante.

    Havia uma camada de tecido entre o metal da gorjeira e seus ombros. Hyd queria retirá-la e sentir o frio do metal resfriar seu corpo e mente. Queria que seu coração não estivesse tão disparado tanto quanto queria sua bengala de volta.

    E voltar para Aavier, ao castro dos Beesh.

    Invés disso, apoiou-se mais na sua mestra e, junta de Milesent, saíram do quarto. Lá fora, servos acorrentados a entregaram um copo com uma água esbranquiçada. Suas mãos tremeram, mas bebera, pois Milesent também bebeu. Assim, seguiram pelo corredor iluminado por pedras amarelas-âmbar presas ao teto. Diferente do lugar onde Elouan a levara, a mansão não tinha tantos vaga-lumes passeando organizados pelas paredes. Estes estavam livres, percorrendo diferentes caminhos, juntos dos brancos e dos azuis.

    — Conseguiu pensar em algum jeito de fugir? — perguntou à Mestra Jen, em Recifano.

    A recifana fechou os olhos de susto.

    — Não. Me desculpa, mestra Hyd… — sua voz era obstruída pela faixa na boca.

    Hyd, que estava com os braços enlaçados na cintura da sua professora, encostou o rosto no seu flanco.

    — Tudo bem. Eu posso aguentar mais — sussurrou. — Consigo…

    — Eu vi uma saca na cozinha. Tinha cheiro de trigo, mas eu não sei fazer pão.

    — Não precisa. Eu aguento, Jen. Mas e você?

    — …Estou bem o suficiente.

    “Mentirosa”, pensara Hyd. “Ambas…”

    — Que língua bonita. Hm. Certamente bela. Sobre o que estão falando? — questionou Milesent, com o dedo no queixo.

    Hyd abriu a boca para responder, mas não o fizera. Servos abriram um grande portão, fazendo um vento frio e reconfortante adentrar o corredor, junto de luzes dançantes na poeira levantada. Logo sentiu os pés nus tocarem as pedras lisas de travertino amarelado entre lascas de cascalho da estrada, da alameda de plantas que não conhecia. Havia aquelas semelhantes a faias, a freixos. Havia uma grama verde amarelada brotando forte do solo, aparada e lustrosa. Pouco depois da bifurcação alameda, dois pares de degraus davam lugar a um chão sem grama, coberto de travertino.

    Em diversos jarros de argila, flores e libertavam um odor harmonioso. Havia semelhantes a margaritas e crisântemos, papoulas púrpuras e lindas rosas grandes demais para serem rosas. Arbustos de folhas púrpuras e flores azuis-claras formavam uma alameda mais baixa, mas em outros pontos, as arbustivas de repente pareciam trepadeiras sobre pinheiros tortuosos, formando arcos cheios de flores azuis-claras e enormes e cheirosas.

    Debaixo de um desses arcos, havia uma mesa redonda de mármore claro, repleta de comida que Hyd desconhecia — mas com um cheiro que a fazia salivar — e um homem que conheceu uma só vez. Ele trajava uma túnica de couro, fendida nos joelhos, com dragonas altas de ouro, que chegavam a altura do seu queixo. Nelas, um par de corujas, cada uma com uma espada na boca, foram talhadas. Seu rosto mirrado olhava para Hyd com paciência. Desta vez, nenhuma espada estava escondida por debaixo de capa. Sem a capa, Hyd pôde perceber o quão tonificado era, mesmo com a aparência magra.

    A ruiva rapidamente olhou para sua mestra. Estava pálida.

    — Desculpe-me pelo atraso — disse o generalíssimo Guillaune Giles yeo’Chowett do Império. Ele deu um olhar de reprimenda para Milesent, que abaixou a cabeça.

    — Aqui a deixo, milorde. Que tenham um dejejum maravilhoso — ela desejou, mostrando seu belo sorriso, e virou-se para ir embora.

    Hyd engoliu em seco. Seu avô jazia calado, sentado num cadeirão de madeira profundamente negra, com estufas castanhas e amarelas. Ele se recostou, cansadamente, no espaldar alto e ficou de olhos fixos na neta. A ruiva, por sua vez, abaixou a cabeça e disse:

    — Boa manhã, milorde.

    Ele fez um gesto para senta-se. Hyd o obedeceu. No único cadeirão livre, duas almofadas foram postas para que tivesse altura para sentar-se devidamente. Soltando-se de Jenna, ergueu os ombros e observou de soslaio a mestra ir um pouco para o lado, sob a sombra dos arcos roxos.

    Guillaune encostou a mão esquerda sobre a mesa, seu indicador apontado para os pratos postos. Hyd notara o cheiro doce vindo de frutas rosadas, cortadas e salpicadas com um pó avermelhado, algo parecido com um pão purpuro e cheio de poros, um prato com uma rodela longa parecida com um caracol com cubos de algo gelatinoso entre as camadas. Do outro lado, havia uma estranha jarra baixa de prata, de boca larga e cheia de um leite amarelado, mas que não tinha odor azedo.

    — Chama-se rocambole — falou ele, recostado e de expressão neutra. — Ordenei que fizessem-no com as sobras do trigo dos bárbaros, para seu gosto, minha neta.

    Hyd abriu seus lábios por um segundo, juntando os dedos.

    — Sou grata.

    No entanto, ela não se serviu no momento. Ficou observando seus dedos enluvados, juntos como se em prece. Guilleaune piscou. Se levantou com um suspiro, tomou uma faca longa e partiu o rocambole pela metade, então o pusera num prato de prata para Hyd. A menina abriu a boca para falar, mas nenhuma palavra saiu. Nem de gratidão. Enquanto isso, o generalíssimo retirou a concha de dentro da jarra e despejou um pouco da substância pastosa e amarela sobre o doce.

    — Sei que seu povo não pula refeições. — E se sentou. Estralou os dedos, e uma mulher de cabelos perdidamente ruivos, vestida em um roupão grosso de juta vermelho. Ela trouxe consigo um jarro com suco ácido, despejado nas taças de quartzo. Hyd não pôde deixar de engolir em seco com a quantidade de ódio e tristeza e inveja escondida nos olhos profundos e azuis cristalinos da mulher acorrentada e alta como uma parede. — Esta se chama citerina. Possui um gosto amargo, mas se adoça com a comida. Prove.

    Hyd ergueu suas mãos magras. Sua barriga grunhia, suas mãos tremiam e seus olhos vacilavam. Não queria comer mais daquela comida que a fazia ficar tão mal… Por outro lado, parecia que um espinheiro espremia sua barriga. “Deuses, tenham piedade de mim, por favor”, rezou. Com um talher de estanho, cortou um pequeno pedaço do rocambole molhado e o engoliu junto do suco de citerina.

    O rocambole pareceu se desfazer na sua boca. Na massa, era macio como um pão úmido, um bolinho de neve. Mas o recheio era uma mistura semissólida de frutas novas, de sabor intenso. Já o suco da citerina era realmente amargo, como o chá das folhas de aureira, todavia ele dissolvia a gelatina com sua acidez e se adoçava para algo que pedia por mais. Era saboroso…

    Mas toda comida que comera no Império também era.

    Guilleaune não reagiu com a expressão que a neta fizera. Deixara-a comendo em paz, pedaço por pedaço. Observou-a saborear o rocambole, então as daminas e ruxas temperadas, com a graciosidade devida de seu posto. Ele ficou quieto, vendo-se sumir do campo de vista da garota — até que ela olhou para a mulher de pele escura e entregá-la um prato. O generalíssimo semicerrou os olhos e ouviu-as conversar, ainda que sem entender. Depois, o vento das montanhas arrastou folhas caídas para longe, e fez os arbustos e folhas farfalharem.

    Borboletas voavam e abelhas zuniam.

    Só assim, Hyd deu atenção à paisagem além da mesa e de seu avô.

    Estavam altos!

    Pela mansão de Elouan, Hyd imaginou que os Imperiais construíam suas casas sobre as montanhas. Estava certa, mas incompleta: as montanhas eram seus lares, os lares da nobreza imperial. Seu quarto e boa parte do palácio estavam dentro de uma montanha, mas agora estavam fora. Além do jardim, balaustras de alabastro impediam uma queda de centenas de metros até florestas coloridas e uma cidade cheia de casas, atravessada por dois rios de água cristalina. A visão a fez engolir em seco e recuperar o medo que a comida roubara.

    — Não precisa ter medo, pequena. Também não retraia os ombros.

    — Per… Certo.

    Ele fez um sorriso breve.

    — Aprende rápido. — Pôs as mãos na mesa. — Hydele Zwaarkind. “Esperança Nobre” ou “Criança do Bom Agouro”. Zwaarkind seria?

    — Filho da Espada.

    — Quem te deu o primeiro nome? Criança do Bom Agouro.

    — Minha mãe.

    — Aquela mulher? Entendo. — Olhou diretamente nos olhos da neta. — Criança do Bom Agouro. Há mais alguma tradução que não conheço?

    Hyd vasculhou dentro da sua cabeça, em busca do conhecimento da Língua Antiga de Aavier. Lá dentro da sua mente, foi como se uma luz se acendesse e muitas coisas fossem unidas. Ela sentiu um choque percorrer sua cabeça, uma ardência amarelada que obstruiu sua visão por um instante até os radicais do seu nome se formarem, se separarem e compararem-se com vários outros que conhecia.

    Foi como se ela tivesse lido um dicionário inteiro num espaço de segundo.

    — Sol. De Helje.

    O homem fez um sorriso longo e afeiçoado.

    — Depois de descobrir que meu filho fugira para os bárbaros, temi que ele se tornasse néscio. Estava enganado. Perdidamente enganado.

    — Obrigado, milorde…

    — Me chame de avô. Não estamos em um teatro palaciano. — Se recostou na sua cadeira. “Suas costas doem?”, pensou Hyd. O pensamento surgiu febril na sua mente e sumiu da mesma forma. Ele olhou para a cidade cruzada por rios. — Conte-me da sua rotina. O que faziam?

    Hyd quase contraiu os ombros.

    — Eu estudava.

    — Hm — lufou.

    — Estudei muito desde sempre. Sou fraca. Adoeci muito, então estudava. Tomava chá com mamãe e estudava com ela e com os Ciles do Olho que Chora. Aprendi a tocar lira e harpa e a cantar, e calcular e escrever… — Ergueu a cabeça fortemente, olhando para a mestra no canto do olho. — Avô, por que consigo entendê-lo, se nunca estudei sua língua?

    — Elouan.

    — Ah… O tio.

    — Ele não é seu tio. Não é da família e menos ainda meu filho. Você viu o que ele fizera contigo. Aquilo não saiu de mim. O renego. Não foi nem parte de suas desonras a nós.

    Hyd engoliu em seco e trincou seu maxilar.

    — Por outro lado, fez-me conhecê-la. Pequena, não compreendo seus gostos e não pretendo conhecer todos. Já possuo muita idade e partirei em breve. Deixarei isso para seu futuro esposo, lorde Lancelet cer’Cobean. Porém, devo deixá-la preparada para herdar sua família tal qual seu pai deveria ter feito.

    A pequena ruiva empalideceu.

    — Estou fazendo meus devidos esforços para trazê-lo. Nós perdemos muita força graças ao seu sumiço, e as conspirações Imperais são terríveis demais para minha idade. Fiorry cuidará de você em minha ausência. Até lá, aprenda com sua prima Milesent. Também deixarei-te as chaves da biblioteca do palacete. Em breve, não será a bruxaria mantendo-lhe ciente do que falo. Não diferente será nossa casa. Coma bem. Terei de me retirar mais cedo. Vê-la-ei ao meio-dia, com sua avó.

    Mesmo que muito tivesse falado, Hydele não ouviu mais nada.

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