Capítulo 9: Vermelho, castanho e loiro (1)
“O primeiro Beesh registrado é Arjire, que foi rei do Sul de Aarvier, então chamada de Aelen. Foram um dos últimos a serem vencidos em guerra, com a unificação do reino de Aarvier. Sua linhagen de reis tinham como brasão uma montanha coroada. Sua descendência travou guerra contra os reis do Centro de Aarvier, os Lievhen. Os vencendo, ainda tiveram seu castelo destruido e realocado para o topo da montanha, o que facilitou a conquista quando a Casa Bloemennen surgiu, ainda na Era das Trevas.
Rendendo-se, a amizade surgiu entre o primeiro Duque Beesh e o primeiro Rei Bloemennen,, Bervannir Bloemennen, e o primeiro duque que jurou sua lealdade a ele, Howan Beesh, continuou sua linhagem como o protetor do sul até as fronteiras.
De certa forma, pode-se ainda dizer que o sul de Aarvier tem sua própria Casa Real, igualmente amada e temida.”
Izandi, a Oniromante

— Minha senhora — chamara Jenna, levantando de chofre após amarrar o nó das botas castanhas e ver Willmina passando —, poderia fazer calções para sua filha?
A pergunta da mestra de armas veio como uma lufada áspera e quente, mesmo que o tapete irregular sobre as pedras escuras e lisas do pátio da segunda muralha aos poucos formassem branquidão. Pouco conversara com ela, pouquíssimo ouvira seu nome se não fosse pela boca de Bert ou de seu marido. “Talentosa”, repetiam os dois — e com tons de voz muito diferentes.
Willmina, fitando o corpo sem feminilidade de Jenna, questionou-a:
— Por quê?
— Foi-me incumbido, por vontade de seu marido, que a ensinasse as artes da espada. — Jenna respondeu com uma mesura mal feita. “Feita apenas a poucos nobres”, notara Willmina. Vasculhando, houve uma vez que a ouvira a conversar com Bert, a cochichos e escondidos detrás de uma pilastra na calada da noite. “Falsa formalidade, digna de aplauso. Há algo que Ereken não me contou”, percebeu “, e minha menina não é nenhum rapaz! Nenhum homem de armas!”
Todavia, não se recusou. Com zibelina, lã grossa, raiva e ajuda de servas mais habilidosas — era péssima nessa arte —, coseu alguns pares de calções costurados a saias finas. Imaginava o quanto sua única filha, com quem passava horas deitada ao lado, lendo histórias e tomando chás, detestaria empunhar uma lâmina, fosse de aço ou madeira.

Antes de sua gravidez, passavam manhãs e tardes na biblioteca, na sala de chá ou no altar dos Quinze dentro do castelo; teve então que tomar mais tempo para si, diminuir com o vinho caramelado que as duas amavam. Algo a mais tomaria o tempo das duas. “Quando Ereken voltar, e há de voltar logo, cobrarei explicações. Não quero vê-la sentindo dor.”
Ou só a queria perto de si?
No entanto, no primeiro dia do seu treinamento, o que viu foi o oposto. Sua filha mal conseguia ficar de pé sem a bengala. Viu isso por ardilosos onze verões, primaveras e outonos, e, mesmo assim, assim que tocou na espada de aureira, virou outra pessoa. Caiu meia dezena de vezes, mas parara por aí. De repente conseguiu ficar de pé, parada… sorrindo e com os olhos como luz refletida no ouro.
— Mão direita pert… por…! — interrompeu-se a mestra de armas, de olhos arregalados, sabendo o que Willmina diria se a ouvisse falando um palavrão. — A direita fica em cima, senhorita. A direita! …Ah, quer saber: deixe ela aí! Pensei em algo… Agora você acerta?
Nunca viu sua filha tão concentrada.
No primeiro dia, caia toda vez que tentada andar, e Jenna forçava-lhe a deitar no chão e fazer movimentos estranhos. Willmina fez sapatilhas melhores, então as quedas diminuíram; o frio cresceu nos dias posteriores. Fora, dia após dia, quase como uma afronta. Sua pequenina parecia mais disposta. E mais feliz.
— Sente dor, filha? — perguntou, servindo-a um chá doce, com pedaços cozidos de maçã. Era o favorito da filha.
— Parece que tem espinhos nas minhas mãos! E na barriga! — Willmina cerrou os dentes, mas a menina sorria tanto, arfando e suada… — Hoje fiquei de pé por um temphão! Tempão!
“Entendo sua intenção agora, querido”, disse a si. “Ela até parece mais alta. Talvez esteja.” Nesse mesmo dia, arrancou lágrimas do rosto da filha quando a mediu e afirmou. Hydele estava um dedo, quase nada, mais alta. Mas fora o suficiente para fazê-la chorar e sorrir.
Os seguintes dias foram complicados. Hydele aparecia com as mãos e pés com calos roxos, ranhosos com sangue seco. Willmina nunca se sentiu tão desesperada, mas a menina… a menina sorria. Questionou-se com quem Ereken pô-la para aprender: uma mestra de armas respeitada ou um mercenário infame?
E os sorrisos não sumiam.
Enquanto preparava um chá de ervas receitadas por ela própria, ouviu o assobiar de Ereken. Sempre assobiava ao chegar de um trabalho; lama secara e congelara nas botas e brigantina, neve grisalhou o ocre do cabelo. Notou, de soslaio, a saca com pequenas caixas lígneas, cheirando a couro, groselha e tintas de roupa, e não muito mais que isso, pois seu marido abraçara-a por trás.
— Estou de volta, querida. — Beijaram-se. Havia pouco mais do que duas cabeças de diferença, e Ereken era mais alto do que qualquer Homem que Willmina já viu.
— Quer que eu esquente a água?
— Estou bem, não precisa. — Não queriam sair do abraço; sentir o cheiro um do outro. — Jenna já está ensinando nossa filha, minha Mina? — Beijou-a de novo, falando o apelido que só era dito a sós.
— Sim — suspirou com desdém. — Todo dia, em quase toda oportunidade. Ontem ela fugiu de uma aula para brandir o espadim de madeira…
— Hahaha! Que coisa maravilhosa!
“É realmente sua filha”, ela pensou com ainda mais desdém, contorcendo o lábio.
— Eu nego! Agora não sabe falar de outra coisa senão “Jenna isso, Jenna aquilo”! Em breve cortará os cabelos e dirá “Sou um garoto!”
— Ela só tem doze — beijou-a novamente —, é a idade de se ter essas ideias.
— Tem onze!
— Não por muito tempo, minha Mina.
Willmina se virou. “Cheira a tinta também”, notou “, mas não é uma ruim. Parece cansado…” Estudou a feição do marido.
— Aconteceu algo nas vilas? — Tinha saído mais uma vez, e sentia-se surpresa por ter voltado muito mais rápido do que esperava.
Seu esposo suspirou.
— Nada demais… Nada… — suspirou cabisbaixo. Saíram e sentaram-se. Ereken sorriu e pôs a mão na barriga da esposa; três meses de gravidez, mas a protuberância era mínima. “Vai ser tão pequeno quanto Hydele?”, imaginou; por seu lado, tanto os homens quanto mulheres da sua família eram altos. Não conseguia se lembrar de alguém mais baixo do que sua esposa.
Olhou para o teto e continuou:
— Visitamos algumas fora do planalto, ao norte do Planalto Cinzento e do Rio Invertido, seguindo pelo Caez. Árvore Vermelha, Caez, Moinho… As cidades estão bem, sem saqueadores — juntou suas mãos. — Depois voltamos do Caez para o Invertido pelo nosso oeste, e seguimos até Ruther, onde pegamos uma barca pelo pântano. Todavia, enquanto voltávamos, fomos parados por uma “hansa de vendedores de tempero”. Pediram ajuda, mas se revelaram bandidos. Esfaquearam um novato, um rapaz talentoso de quatorze anos, equitador muito bom, um verdadeiro prodígio, pelas costas… Ele sobreviveu por muito pouco, mas não conseguia mais sentir as pernas e nem os braços.
— Amor… não é culpa sua — tentou consolar, mas Ereken tinha um olhar de culpa rochoso.
— Eles tinham o sotaque, Mina — cruzou os dedos da mão com força para ficarem brancos —, tão forte que não sei como demorei tanto para perceber.
— Até então nós tínhamos também. Lembra-se de como nos olhavam com medo? — Levou a mão para a bochecha do amado, coberta por uma barba rala ocre. — Não apunhalamos ninguém, não roubamos e não enganamos. — “Recebemos nomes novos sem pedir, no entanto”, pensou ela. — E, veja só, não temos nenhum título e neste castelo somos tratados como senhores cheios de terras férteis. Não há um porquê de se culpar.
Ereken fechou os olhos.
“Não temos nenhum título”, ele se disse.
— Mina, o que pensa de recebermos um título?
Ela sentiu como se aranhas congeladas com pernas de anzol escalassem suas costas.
— Foi Theolor, não? — bravejou Willmina, agarrando o marido pelo pescoço. — Foi ele que implantou essas ideias em você?! Perdeu o medo, Elói?!
— Esp…
— Não tem medo de ele nos achar?! — seus olhos ficaram vermelhos e marejados. Vermelho no branco, vermelho no azul… — Não tem medo de que ELE nos ROUBE NOSSA filha?
As unhas perfuravam o pescoço grosso de Ereken, que se recusava a ceder aos gritos do instinto materno de Willmina. Fortificou seu corpo. Amavam-se há mais de doze anos, e tinham marcado o outro na pele para nunca se esquecerem… mas a força física dela era algo que jamais se acostumaria. “É como se um urso deitasse no meu tronco…!”
Ainda assim, não seria um urso que lhe faria desistir.
Ereken agarrou-a gentilmente na cintura e a empurrou para o outro lado do sofá, ficando por cima.
— Me escute.
— Sim… — ela sussurrou. “Esses olhos…” Não conseguia não olhar. Escurecidos pela fraca luz da tarde, pelas curtas madeixas sedosas caídas. Grandes, que pareciam ver além de sua pele… Do amarelo-âmbar a uma cor mais aterradora, que perfurava seu corpo. Sua respiração ficou intensa. “Por que estava com raiva mesmo?” — Fa…le.
— Mestre Theolor Beesh me pediu para ser seu braço direito além do que já sei. Sei que já ouviu algo… sobre Eztrieliz. — Ereken viu o rosto de fada de sua amada Mina escurecer mais. — São só rumores, mas ouvi que todos os nobres dos Cinco Reinos estão hasteando bandeiras de guerra. Sire disse que quer que oficialmente me torne seu braço direito e ajude Rheider a cumprir seus deveres enquanto ele fica fora, na Fortaleza-Montanha, vigiando Eztrie…
— Não fale esse nome agora — prendeu-o em si pelo quadril, pressionando com suas pernas. Ereken notou que ela estava em um frágil linho, um vestido azul frio sob um justilho de renda branca como lã. “Se concentre!”
— Me deixe terminar, minha Mina — aproximou-se do seu rosto —, minha yverrenike.
— Já não me importo mais, sabe? — respondeu com um sorriso, um suave sorriso desenhado pelos finos lábios vermelhos no rosto que não envelhecia. — Confio em você. Confio nas suas decisões, meu syåsonike. Não é tão tolo hoje quanto era antes — riu, feliz por ele ainda se lembrar da palavra. — Qual é meu nome, Ereken?
— Willmina, minha Nobre Flor Vermelha.
— Não esse, não o que nos deram…
Aproximou-se do seu ouvido e respondeu, e ela estremeceu um sorriso ainda mais belo; os olhos de turmalina tremeluzindo como a luz das Luas sobre um rio cristalino, refletindo as poucas estrelas que brilhavam no céu. “Nunca me esqueceria”, pensou ele ao dizê-lo.
— Theolor pensa em mudar o nosso sobrenome?
— Não. Ao menos não que eu saiba.
— Pensou em algum brasão?
— Sim.
— Irei costurá-lo.
— Pensei que não gostava disso.
— Peguei o gosto; não sabe quantos calções, botas e luvas fiz para Hyd.
Ele riu e sentiu os lábios finos e carmins de sua amada yverrnike.
— Onde Hydele está?
— Saiu para treinar com Jenna pouco antes de você chegar. — Prendeu-o com ainda mais força, sentindo o tatear dos dedos desamarrando o nó do justilho; o calor crescente. — Não volta antes de anoitecer.
— E Bert?
— Desapareceu em alguma vila lá embaixo. — Levantou-se, sentando no seu colo e deitando nos ombros espadaúdos que esbaldavam confiança. — Repita que vai ficar tudo bem, Ereken. Que nada de ruim nos acontecerá.
— Juro pelo meu sangue que farei isso até meus últimos suspiros.
— Velhos e ao lado do outro? — falou ela, pensando na crueldade contida na pergunta. — E talvez longe, viajando?
— Com nossos filhos e netos e bisnetos.
— Desculpe por não te dar muitos filhos. Sei que queria ter muitos — ela disse. “Não deveria ter dito isso. Sinto-me esmagada… enregelante.”
— Está tudo bem, sempre esteve, e continuará.
Não ficou assim por muito tempo. O calor dos ombros de Ereken, seu syåsonike, marido, pai de sua única filha viva, amigo e companheiro de guerra, dava-lhe boas respostas. “Que mulher egoísta eu sou.’
‘Mas sou egoísta por querer ficar assim para sempre? Que minha menina nunca deixe de ser minha menina, sempre pequena ao meu lado, rindo comigo e de mim? Que meu rapaz não desapareça em trabalhos questionáveis de novo? Que meu marido permaneça ao meu lado e dentro de mim para sempre?”, questionou-se, e as respostas vieram como sempre.
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