Prólogo

As crianças do orfanato haviam acordado muito cedo, até para os padrões do orfanato-quimteísta. Para seguir as tradições e manter o templo dos Quinze Deuses limpo, sempre honrosos, acordavam antes do sol raiar. Lembravam-se com muito amor de quando o Versicolista era mais jovem — mesmo que bem pouco —, de como era divertido limpar as coisas, com ele reclamando de quando um ou outro derramavam a água ensaboada dos baldes no piso, então usavam suas camisas como pano e seus corpos como rodo.
Sempre acabava com um ou dois com o peito ralado, a testa inchada e as meninas lhes chamando de imaturos. Depois, tomando um sermão rigoroso do sacerdote, que logo se sujava também com as outras crianças. Quando o sol nascia, esqueciam das dores comendo pães levemente queimados, com leite morno e mais um quê de brigas. Eram dias felizes.
O Versicolista envelheceu demais para isso, e as crianças também. Algumas foram adotadas, outras, fugiram para as vielas. Algumas meninas arranjaram esposos, outros rapazes, viraram soldados, guardas de diamante ou comerciantes.
Alguns, poucos, como Theo, queriam também virar Versicolistas. Não somente pelo amor e fé aos Quinze, mas porque sabiam que não eram os únicos órfãos no mundo. Quando pensava em retribuir a felicidade, Theo ficava animado, feliz.
Mas hoje não era um dia feliz.
Conforme ia acendendo as velas e incensos ainda não limpos do Altar e pincelava calmamente entre as arestas dos símbolos de porcelana dos Quinze, suas orelhas ouviam os sussurros dos garotos mais jovens, que invés de rezarem aos bancos, deixavam Theo triste e furioso.
— Ela vai ser enforcada, não? Acusada de assassinato…
— Eu quero ver!
— Será que ela é culpada?
— Eu soube que se você for enforcado, é só tentar se segurar na corda que você se salva…
— Aí cortam sua cabeça, burro!
— Falem mais baixo! Theo está ouvindo!
Ele não se virou, mas suas mãos tremiam, como se a brisa fria da madrugada de outono fosse um dia doloroso de inverno. Rapidamente agarrou seu pulso e afastou-se dos símbolos. Eram caros, sagrados… O rapaz suspirou com uma grande onda de tristeza na voz. Dory tinha se juntado a eles há pouco, vinda das ruas; e era tão animalesca que uma vez agredira o Versicolista, pois não sabia receber gentilezas.
“Um mero pente”, pensou o rapaz. Mordeu o lábio.
Com o tempo, Dory aprendeu isso, e assim como ele, ficara feliz ali. Foi um semestre demorado e um ano cheio de receios. As crianças tinham medo dela — o Versicolista havia ferido o cóccix e tinha que usar uma bengala graças ao empurrão —, mas não achava que ela tinha culpa. Qualquer culpa.
Passou a brincar com as meninas, e quando a donzelice chegou, ensinou para elas as coisas que um homem não podia falar em voz alta.
Amava ela. Mesmo que uma vez ou outra, cantasse poemas assustadores.
“Foi um dia assustador, aquele.” Chuva caía pesada e enchia as ruas pelo caminho do dragão, fazendo da Praça de Diamante um lago sujo de esgoto. Trovões caíam como explosões azuis e lilases; todos os meninos e meninas tinham se escondido e rezavam sob o altar. Menos ela. Theo, que era mais velho e tinha dado falta, buscou ela por todo o orfanato.
Dory estava encharcada sob o quintal, olhando as trovoadas e ouvindo a chuva enlamear suas botas. Um relâmpago caíra pouco menos do que dez metros dela, com as chamas sendo apagadas pelo fogo — e o barulho tão alto que calara todos os outros. Todos menos a canção dela.
Me enforquem como brisa…
Aqueles que cantam sobre a chuva…
E dançai, amor da indecisa…
Arrancai corações como uvas…
Despencou no seu peito quando se aproximou. Chorava, desesperada. Cravara as unhas nos seus braços. “Não dói”, ele disse, e ela esboçou alívio e chorou e chorou. Não entendia. Não era capaz sequer de pensar nisso — mas soube que a amava e a amou e foi amado. A única pessoa que poderia impedi-lo de virar um Versicolista era Dory, e a única pessoa que podia impedi-la do mesmo era Theo.
E essa única pessoa seria recebida no cadafalso…
“O que fiz para impedir? Maldição…”
Os mais jovens se calaram ao ouvir batucadas da bengala do velho Versicolista, Leof. Vestia o velho ferraiolo cinzento com a barra azulada, drapeado, com o cíngulo de quinalfero-rubro no formato da Folha, reluzindo no peito. Mas o seu bondoso rostos enrugado e com algumas pequenas manchas, ocultados pelos longos cabelos quase totalmente grisalho, estava sombrio.
— Meninos! — gritou, com a voz rouca e fraca tremulando. — O que estão fazendo aqui, agora?! Deveriam estar dormindo!
— Nós… Nós quisemos acordar mais cedo para limpar o templo…
— Então por que não estão ajudando Theo? Vejo somente ele no Altar, e nenhum rodo ou pano no chão!
Um dos meninos quase saltou para trás, todavia a robustez abandonou o sacerdote mais uma vez.
— Não podem ir para o julgamento! Proíbo-lhes disso, com todas as minhas forças e as bençãos dos Quinze! Juro! Permito que vocês possam ver a coroação do id Baene, mas não isso! Theo trabalha no Ninho-do-Dragão, ele levará vocês!
Um lampejo de esperança atingiu a mente de Theo. Um novo id Baene. Viu o anterior assumir a Coroa dos Acenos (quando tinha quatro anos, mal se lembrava do há pouco falecido Aidrek Obeso quando era magro) e, em comemoração, impediu todas as execuções. Seu coração acelerou, ao ponto que suas bochechas avermelharam. Tudo que queria agora era vê-la mais uma vez… tê-la mais uma vez… Dúvida! A maldita dúvida no seu coração!
Voltou seu olhar para os garotos, voltando para seus quartos, e ao Versicolista, com os olhos travados no altar.
— Quer fazer uma prece, meu rapaz? — Deu passos lentos para frente do Altar de Lummas. — A Justiça d’Ela nunca falha, meu filho. Venha.
— Não preciso de justiça — respondeu Theo, voltando-se para o Altar de Lohssau. — Preciso de um milagre.
O braço direito, fraco e de músculos caídos, do Versicolista ainda tremia. No entanto, tomou uma das velas acesas no Altar da Mãe, cujo símbolo de porcelana — o Cordão Umbilical — estava manchado com gotas de unguento-sacro seco. Os dois se ajoelharam e, por várias vezes, repetiram a oração:
Dai-nos força na dor, Mãe
Vós, que da vida és Milagre
Abençoa-me com um
Abençoa-a com vários.
E quanto mais repetia, mais seu coração ardia. Amava-a tanto… Desprezava a dúvida da qual ela, Dory, enchia seu coração. Odiava como agora percebia que ela o distanciava do sonho que já tinha planejado: viajarem à Luichea quando recebesse seu terceiro batismo, tornarem-se iniciados, Versicolistas, e quem sabe até mais. Oscilava. Agora via-se casado com ela. Via-se unindo a ela mais uma vez, vendo seu rosto corado e suado, ouvindo seus gemidos e ambos repetindo “Eu te amo!”
Amava-a tanto…
O Versicolista secou seu rosto com um lenço.
— Dedique sua dor aos Deuses, Theo, e vá dormir. Ainda é cedo, muito cedo, e você é jovem, muito jovem. — Sorriu. Um sorriso singelo que órfãos como Theo não costumavam ver. — E você ainda tem que trabalhar quando o sol nascer, não se esqueça. Os dias vem e vão… — Como se tivesse partido, seus ombros cederam sem força para baixo. Lágrimas escorriam pelos bolsões inchados e escuros. — Os Deuses certamente farão o que é certo.
Theo subitamente se levantou, com seus olhos se recusando a parar de chorar. “Preciso vê-la mais uma vez.” Sua mente ficou clara: a tiraria de lá, nem que fosse como um criminoso. “Eu farei isso.” De repente, a imagem do velho sacerdote não parecia mais tão velha. Talvez porque finalmente tinha ficado mais alto do que ele? “Este pode ser meu último abraço. Não o desperdiçarei.”
— Eu te amo, Leof — afirmou, com a voz ranhenta de catarro. — Posso nunca ter sido adotado, mas, para mim, você foi meu pai.
Não se deu chance de dizer ou ouvir mais nada. Deixou o velho sacerdote ali e correu para seu quarto. Ficava no segundo andar do casebre atrás do quimtel. Subiu de quatro em quatro os degraus da serpenteante escada branca e entrou no primeiro quarto à direita, acordando os outros rapazes.
Eles reclamaram, mas para Theo, foi como se não existissem. Levantou a colcha da sua cama, e estava lá, debaixo do fedorento e encardido uniforme: a suposta espada do seu pai, dada por sua mãe, uma prostituta, quando o abandonou no quimtel aos três anos de idade. Uma espada curta, pesada demais para um garoto. “Mas eu sou um homem.”
Amarrou-a no cinto, pôs um acolchoado gibão de lã e uma touca sobre os cabelos loiros.
— Até.
Um vento de outono o atingiu e levou as folhas das faias para longe. As ruas da Cidade de Diamante eram belas, por mais que já estivesse cansado das pedras polidas adiante ao templo. Ajoelhou-se nos degraus e rezou de novo. Levantou de supetão e pôs-se a correr, cada vez mais açodado. Passou pela Torre do Corante, então pela rua das Virgens e continuou açodado quando chegou perto do Caminho da Seda. Envergonhou-se e mudou de caminho, um pouco mais longo.
As casas da Cidade de Diamante eram altas, de modo que até um plebeu tinha vários andares em sua casa. A população da cidade só aumentava, e, quando Theo subiu a Colina da Vigília, conseguia ver o laranja do outono dar cor ao negro das favelas depois do rio Godwill. O rio serpenteava, onduloso… como os cabelos negros de Dory. Seu coração ardeu, tanto que não se deu o direito de ficar parado, mesmo que sua boca e peito gritassem para que não corresse.
Passou por um cantão menor, onde as pequenas rameiras de um bordel barato estenderam suas mãos a ele, e se aprofundou nas ruas escuras. As vielas ficavam mais sujas, mendigos e órfãos se aglomeravam perto de casas e de espaços onde vendedores instalavam suas bancas. Seu estômago revirou ao ver um órfão dar seu pedaço de queijo para outro mais novo. “Quanta dor…” Mas não se deixou parar. A praça, o maldito cadafalso estava logo depois daquilo.
Viu um dos garotos do orfanato lá, sentado em uma caixa de madeira abandonada sobre o chão de terra mal pisada, de onde o vento levantava poeira rebrilhante ao sol do outono. As árvores eram poucas, mas as casas eram muitas e amontoadas ao redor do estribo de madeira velha e verde de musgos, todavia, além dele e do garoto, não havia mais ninguém.
Pensou ter errado o lugar, enquanto sentou para respirar, mas logo a marca de uma execução em andamento chegava: velhas fofoqueiras, incapazes de dormir; rapazes animados para verem sangue pela primeira vez; cachorros de rua preparados para latirem por comida; mendigos em busca de um entretenimento; a pira, poucos metros ao lado do cadafalso, para ascender o cadáver…
— Hahh — arfou, melancolicamente; seus olhos estavam vermelhos, ardidos.
Enquanto se concentrava em respirar, ouviu a batida do trote de cavalos, vindo de cima da colina: algumas dezenas de cavalos puxando carruagens, como numa procissão. Theo sentiu uma tristeza avassaladora, uma tão forte que o fez agarrar seus joelhos. O galope ficava mais alto. Mais alto. Seus pelos se eriçavam e tremiam, como se os cavalos corressem sobre sua pele.
Quando deu olhos aos cavalos de novo, uma multidão havia se formado ao redor do cadafalso. Eles pararam aos lados do patíbulo, então vários homens saíram. Suas roupas eram escuras, desde as botas às golas das camisas amarradas ao pescoço, e usavam máscaras brancas, que nada de sua aparência revelavam. Mas Theo não prestou atenção neles: seus olhos não saíam de sua amada. Dory praticamente arrastava-se.
A sua amada Dory estava destruída. Toda a felicidade selvagem que emanava da sua alma parecia tomada de melancolia e dor.
Seu lábio estava com um hematoma, seu olho direito estava pouco roxo e seus cabelos estavam desgranhados e empoeirados. Percebeu grilhões enferrujados nas suas mãos magras, nas suas pernas feridas e muito magras; a pele suja e encardida como se tivesse passado meses, não semanas, nas masmorras; seu vestido parecia cânhamo velho e pisoteado, a casca de uma árvore velha e enrugada por musgos e machados.
Como se toda energia tivesse voltado, Theo erigiu-se de supetão, com seu coração cheio de fulgor e uma raiva borbulhante, com batidas tão fortes que os outros podiam ouvir. Dory foi praticamente empurrada até o topo do cadafalso, e assim que ela ficara de pé sobre o tablado, a mão direita de Theo disparou para o pomo da espada.
“Posso fazer isso. Sempre fui talentoso na espada!” Todavia, os instintos na sua mente gritavam para não fazer isso: ele era um, mas carrascos, com machados mais pesados que sua cabeça, e escudiamantes, com lanças e escudos, eram mais de trinta.
Mordeu o lábio e deu um passo devagar, a cada um que o enchia de uma sensação fria e desoladora. Notou que Dory retribuía seu olhar. Um sorriso acompanhou. Um sorriso singelo, feito em um rosto que mal se movia, cujos olhos amarelos rebrilhavam à luz. Seu coração foi destruído. Amarraram a corda no pescoço dela.
O magistrado-mór da cidade e um Ordenado-Sérvil jovem saíram, e junto deles, um rapaz que não parecia ter mais do que vinte anos — e muito parecido com o magistrado-mór, senão pela cor dos olhos. “O defensor de Dory?”, pensara o rapaz. Um cadeirão de mogno fora posto sobre o tablado, detrás da garota.
O Ordenado-Sérvil — que orgulhosamente, vestido nos trajes sacerdotais, expunha o Espelho d’Água ilustrado sobre o branco da toga — retirou de um dos seus bolsos um unguento de cheiro forte. Ordenou silêncio, então aspergiu o óleo no magistério, no jovem rapaz e em Dory. Depois sentou-se, cobrindo a face com o capuz e dedos pesados de anéis.
— Citadinos — chamou o magistrado-mór, vestido da mesma maneira que os carrascos. Sua voz era fria, cheia de indiferença e, de um jeito que revirava o estômago de Theo, ódio. — Estamos aqui, reunidos antes mesmo do nascer do sol, para julgarmos esta criatura vil! Há pouco mais que três meses, nosso amado id Baene Aidrek, da Casa Leistra, teve sua farta vida tomada por um veneno vil! Pouco sabíamos do envenenador, e por muito pouco perderíamos o poder de fazer justiça! Mas eis que a vil rameira não cansou do alto crime e cometeu outro, e fora capturada! Em vossa frente está a suspeita de homicídio e espionagem, de alta traição: Dory, a assassina! Criminosa infame! Foi capturada por escudiamantes após flagrarem-na roubando os pertences de uma donzela de sangue nobre!
A garota reagiu tremendo. “De onde vieram tantas acusações?! Dory não é capaz de bater sequer num garoto irritante!”, bravejou Theo consigo. E somente ele percebeu que ela mexia seus lábios, sussurrando baixinho e sem qualquer esperança. “Estava devolvendo para ela”, tentava dizer. Suas pernas derreteram e subitamente congelaram: amarraram a forca na sua garganta.
— …Soltem ela… — tentou gritar o rapaz, mas a voz ficou presa na garganta.
— Os bons guardas que a flagraram tentaram resolver pacificamente e levá-la às prisões de maneira justa, todavia reagira violentamente aos bons homens da lei! — Ergueu a mão. O jovem sobre o tablado virou os olhos. — Então foram chamados os oficiais, e descobrimos coisas terríveis! Era uma assassina de mãos sujas, rameira muito conhecida e envenenadora de senhores de sangue azul, espiã por Better Bloemennen, o Sanguinário…
— Ela nem tem idade para isso… — sussurrou Theo.
— Aliado do Império, inimigos de tudo! De nossos Deuses e de nosso povo!
O magistrado se pôs de costas para Dory, e quando Theo se aproximou, com a mão na espada, um escudiamante o bateu com o ombro. Theo caiu no chão. Quando conseguiu olhar para cima, o guarda tinha tomado sua preciosa e comum espada em mãos.
— É melhor continuar aí, garoto. Essa puta já era.
Não conseguiu reagir senão por uma lágrima seca.
— Eis — continuou o magistrado — os crimes que a acusamos: homicídio de nobres, diversos assassinatos por envenenamento, espionagem pelos inimigos dos Cinco Reinos, roubos diversos, prostituição indevida, assassinato de uma criança nobre e o assassínio do id Baene anterior!
Houve uma comoção. “Matem-na!”, gritavam. “Enforquem-na!”, bravejavam. “Matem-na!”
Theo chorou.
— Qual sua defesa, acusada?
E houve um silêncio.
— Fale algo… — sussurrou o jovem, mas Dory sequer conseguiu levantar os olhos. — Fale algo! — pigarrou. — Citadinos! O-olhem para ela! Ponham bem seus olhos nela! — Mesmo do chão, Theo percebeu que o homem suava. “Não…” — Ela sequer consegue se defender, falar! Vejam os braços magros dela! Como teria ela agredido escudiamantes? Nossos guardas, bem munidos de armaduras de aço?! A garota que chama de assassina, senhor magistrado, é uma órfã, criada em um bom orfanato e por um bom Versicolista! Versicolista Leof, bom e casto homem! Em toda história de seu orfanato, não houve um sequer caso de mau rumor vindo de sua casa! Uma prostituta não sairia de um lugar tão abençoado, muito menos uma assassina!
O Ordenado-Sérvil suspirou.
— As provas negam!
Theo se ergueu; havia uma multidão ao menos cinco vezes maior do que antes — e nenhum deles parecia satisfeito com as acusações do magistério. “Existe alguma chance! Deuses, eu imploro…”
— P-provas?
O magistério-mór de repente tirou da toga negra uma faca suja de sangue seco, a jogando no chão. O jovem defensor empalideceu completamente. Os olhos de Dory quase saltaram de suas órbitas, pingando lágrimas sujas. “A faca… que a dei…”
— Testemunhas deram-nos a exata descrição da acusada! Ademais, o ferido escudiamante foi esfaqueado na coxa por esta mesma faca! A ferida infeccionou gravemente e tornou-se uma mancha negra que só viria de envenenamento, informaram os medistas, que tiveram de amputar a perna do bom homem! — Com um passo rápido, foi fronte à Dory. — Nega isso, acusada?
Sua boca mal se mexeu.
Foi o suficiente para Theo. Estaria chorando sangue, se alguma coisa ainda pudesse ver além dos olhos calmos de Dory. Se pudesse ouvir algo além dos gritos do acusador e do seu coração bombeando arrependimento.
— As provas de espionagem, de prostituição e de outros homicídios, por questões legais, não puderam ser tragos. A família de uma de suas vítimas ainda está de luto: um jardineiro do Palácio dos Cinco, cortado na garganta! Souberam de sua morte há poucos dias! Cartas na língua do Império foram encontradas em suas meias, e os próprios medistas afirmaram os sinais de falta de virtudes na acusada.
— E-ela é uma jovem! — gritou o defensor.
— Minha filha também é jovem. Acusa-a de não ser donzela, defensor?
— E-eu não… — tentou dizer, porém o magistrado virou-se para a turba uma última vez.
— Nega as acusações, Dory?
— …
O silêncio dos lábios dela atiçaram o barulho. Ainda se mexeram por tempo o suficiente para Theo ler os lábios de sua amada dizendo “Não tenho idade para ter espionado uma guerra mais velha do que eu.” Os mesmos lábios que tanto gemeram “Eu te amo!”, que fizeram seu coração oscilar, seus ideais serem desfeitos pelo sonho egoísta de se mudar para uma vila, construir sua casa e ter vários filhos… Os mesmos lábios se contorcendo de desgosto; os olhos que se cravaram nos seus ficam sem medo.
— Espiã! — gritou alguém.
— Traidora!
— PUTA ASSASSINA!
O Ordenado-Sérvil se levantou e rezou em silêncio. Haviam montado a pira de ascensão. Então o fogo da pira crepitou como numa explosão. Theo caiu de joelhos no chão. O carrasco chutou a cadeira no tablado.
— …ão olhem p… mim…
Ela sussurrou. E sussurrou de novo.
Só pôde ouvir o estralo. Só pôde ver os olhos perderem a cor, arregalados como se fossem explodir; o pescoço deslocado e o corpo balançando. E, ainda assim, leu os lábios azulados cantarem uma canção. Todos leram, todos ouviram. Era um poema horrível, como se a própria terra gritasse.
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