Algum tempo se passou. As coisas iam bem, com exceção de um detalhe…

    — O rei ainda não lhe tirou os braceletes — murmurou Roz ao marido.

    O artesão encarava a esposa, rubro.

    — Ele alterou as condições — disse Dédalo. — Agora sou oficialmente o guardião de Skiá, a filha dele. Se ela fugir da prisão, ou mesmo pôr um pé fora de lá… perco as mãos.

    Encontravam-se às margens do rio de sempre, onde se apaixonaram. As outras duas náiades cantavam, alegres.

    — Acho muita maldade… deixar uma criança, do jeito que deixamos — lamentou-se.

    — Não se preocupe com isso. Quem sabe o que o rei dos deuses lhe faria, se desobedecesse sua ordem?

    Ele deu de ombros. Sentado sob a grama das margens daquele rio, que leva o nome de sua esposa, perguntou a si mesmo;

    “Como diabos ela obteve pernas? Há não muito tempo era uma náiade! Como as outras ali, em minha frente! Ah…”, perdeu o raciocínio, quando sentiu sua mão tocar a dela, “Eu só quero…”

    Ele apenas queria sentir aquela beleza, que Hermes e Eros disseram que ele não conhecia — e estavam certos.

    ㅡㅡㅡ

    Um homem de longos cabelos prateados, e manto negro, veio ao encontro de Dédalo, que continuava observando as nàiades — sozinho, desta vez, porque a mulher fora para casa.

    — Ei, artesão… estes braceletes não lhe incomodam? São feitos do ouro que apenas o deus da forja sabe de onde vem, percebo.

    Ele sequer virou a cabeça para encarar o estranho, que prostrou-se a frente dele, bloqueando sua contemplação às damas do rio.

    — O que há contigo? Por que me ignora?

    — Não estou te ignorando… estou lendo a sua presença. Sentindo-a, também… é parecida com a de Zeus, porém, menos colérica. Tu me pareces mais sábio — disse Dédalo.

    O homem sentou ao seu lado, intrigado.

    — O senhor é um deus. Não só um deus, como um dos mais importantes, dada a semelhança com o rei deles… — deduziu. — Não é Zeus, muito menos Poseidon. Só pode ser Hades, o deus do submundo.

    O do manto negro o pegou pelo braço, e o atirou contra o rio. Mas antes que este caísse nas águas…

    Fuwuuuuuh!

    Um portal negro surgiu, e o engoliu!!

    “Mas o quê!?”

    Quando abriu os olhos, viu-se em frente a um palácio feito de blocos cinzentos de pedra. Com todos aqueles detalhes, o artesão até pensou que haveria de existir um deus construtor.

    Dolorido, percebeu estar num chão ladrilhado com pedras brancas, como quartzo.

    — O meu castelo — disse o deus. — Me poupaste o trabalho de me apresentar, então decidi pular para o que importa.

    Hades mandou que o grande portão de carvalho se abrisse, e ele, como se tivesse vida própria, o fez. Então entraram, subiram a única escada no hall, e andaram em um longo corredor cheio de quadros nas paredes.

    “Aonde estamos indo? O que está acontecendo…? Poxa vida, esses deuses só me aparecem para atazanar a paz! Cacildes!!”

    No final, o deus do submundo abriu uma porta de ferro e pediu que o convidado entrasse. Dentro do quarto, só não imersos em escuridão por causa de uma tocha, mostrou-lhe um imenso grimório.

    — Ontem, em sua visita ao Olimpo, o mensageiro dos deuses de Thero, um outro mudo, chamado Yoshiyuki… cof, cof! — a poeira não lhe era boa. — Yoshiyuki conversou com Hécate, a deusa da magia…

    — E então?

    — Ele entregou a ela este grimório, com todas as magias que conhece. Vai do básico ao nível quase divino — disse Hades, animado. — Mas o ponto, senhor Dédalo, é o que está contido na página setecentos e onze.

    Ele abriu o livro, e indicou o trecho.

    — “Ou seja, um Arcane Pawa, ‘poder arcano’, surge a partir da mistura de todos os elementos mentais e espirituais das pessoas. Alguém com uma emoção muito forte pode o desenvolver, natural e rapidamente” — leu. 

    — O que o senhor quer dizer com isso, senhor Hades? Se está falando de magia, chamaste o ser errado.

    — Estive vigiando as ações de Eris, a deusa da discórdia e mãe do recente filho de Zeus. E sabe o que ela fez, no primeiro instante em que viu-se “sozinha”? — indagou o deus, com seu rosto magro implorando por um “não”.

    Na verdade, Dédalo sentiu que, independentemente de qual resposta lhe desse, ele diria o que queria. Por isso, negou saber.

    — Ainda quero entender que plano ela planeja cumprir, ao ter feito o que fez, mas… saiba que ela perfurou a criança com a “flecha da repulsa”.

    O artesão se espantou. Ele decidiu sentar no chão, que era da mesma madeira que a porta da entrada do palácio, e perguntou;

    — É a flecha que tem os efeitos opostos da “flecha apaixonante”. E sim, é do segundo arsenal de Eros, o deus do amor — explicou o deus, jogando o capuz para trás.

    — As causas são as mesmas: o contato visual — disse Dédalo, cruzando os braços.

    — Ela deve ter planejado bem o suficiente, pois em menos de cinco piscares meus, Zeus surgiu.

    Os olhos do convidado se arregalaram.

    — Então… o bebê… ele passou a odiar o pai!?

    — Exatamente. E como lemos no grimório, além de partirmos do pressuposto de que essas magias funcionam no nosso universo… — o deus sentou-se no chão, em sua frente. — Essa criança pode desenvolver um Arcane Pawa capaz de matar o rei dos deuses. Afinal, ela crescerá habituada com a forte fúria contra ele.

    Mesmo com Hades dizendo aquilo, o semi-deus não sentia que ele estava pensando em seu bem ou no do irmão. Longe disso, como perspicaz que era…

    — Posso dizer que você está ansioso para vê-la o despertar. Não tente negar, e pare com esse tom de voz que alguém preocupado usaria. Deixe de ser ardiloso, maldito — disse Dédalo, irritado. — Vocês deuses me saltam as veias da têmpora! — e levantou, batendo os pés.

    Em um tom furioso, continuou: 

    — Vê estes braceletes? Não, estas algemas douradas!? Foi teu irmão, sangue do teu sangue, que fez! Eu quero que todos vocês recebam retaliação do destino, tal qual a mim impuseram! — rosnou. — Que um assassino os chacine! Passar bem.

    Virou-se de costas, desejando sair dali. Mas antes que pudesse tocar a maçaneta…

    — Isso te beneficiará, seu tolo! Com meu irmão morto, poderei livrar-te destas algemas que às ordens dele o prende! — interveio Hades, correndo até ele.

    — “Com meu irmão morto”… pretendes…

    O sorriso sombrio e dos lábios secos de Hades se exibiu, malicioso e divertido.

    — Eu influenciarei a criança, Skiá, a se tornar a arma que matará o rei do Olimpo — ele disse. — Ela será o fim do reinado dele! O que acha? Estamos certos? — ergueu os braços, como se essa ideia lhe fosse algum tipo de benção.

    — Faça como quiser, só me leve de volta e não me envolva mais — respondeu o artesão, farto daquilo.

    “Me parece coisa de lunático.”

    A partir do portal aberto pelo deus, o semi-deus retornou ao seu lar, onde sua esposa lhe esperava com uma sopa.

    “Hades que se desintegre! Quero mais é contemplar a náiade que tenho em casa.”

    ㅡㅡㅡ

    Enquanto o pobre homem descansava…

    — Isso será divertido — disse um morcego, vendo um bebê sendo amamentado por uma mulher de olhos carmesins e chiton roxo, em um lugar escuro como uma prisão. — Só devo esperar Eris sair.

    Quando a mãe se foi…

    — Olá, criança… que tal uma dose de…

    Dor.

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