— Hum, deixa eu ver se entendi… — ele cruzou os braços. — Você virou amante da copeira de Hera… a Hécate já não era o suficiente, mulherengo de uma figa!

    — Tu que não sabes a empresa que este nobre ser, que está à vossa frente, se meteu — disse Hermes, o deus mensageiro.

    Ele não estava com o habitual elmo de asinhas, nem as sandálias aladas: vestia uma camisa simples de cor negra, e uma calça de pano branco.

    — Aliás, Eros, Yoshiyuki quem me deu estas roupas. Disse que ficariam boas em mim. 

    — Diga de uma vez o que diabo você fez, maldito! — reagiu o deus do amor, que vestia um chiton casual.

    — Poxa, mas você é muito apressado! Pois bem. Aconteceu que Yoshiyuki chegou a uma hipótese muito… “absurda”, em palavras suas. E, em uma vez que veio ao Olimpo, disse ter visto um livro nos aposentos de Hera… e me pediu para “usar qualquer meio possível para roubá-lo, pois fiquei sabendo da tua fama como deus dos ladrões”.

    — Um livro…? É mesmo. Ela normalmente anota alguma coisa naquele masso de papéis. Algo como um diário…

    Eles estavam no quarto de Yoshiyuki, trancados. Eros, sentado na cama, viu o amigo puxar um livro da escrivaninha.

    — Veja. Não me atrevo a ler sozinho, e o deus da morte avisou que estaria ocupado, por um tempo — falou Hermes, coçando a cabeça. — E temos mais alguns papéis para ler. Teremos um longo trabalho pela frente, como ajudantes de Athena.

    — Ajudantes? Nós? Por quê?

    — Não tinha ninguém melhor para pegarem, aí sobrou pra gente… — murmurou o deus dos viajantes, triste. — Como sempre. Todo mundo acha que somos desocupados.

    “E não somos?”, indagou-se Eros. “Certo, certo, vejamos o livro…”

    E ele abriu…

    ㅡㅡㅡ

    Os parágrafos seguintes faziam parte do livro.

    Talvez este longo texto seja algo como um monólogo. Uma parte de uma peça onde, sozinho, o personagem fala consigo mesmo ou com a plateia. 

    Não que eu deseje que alguém leia este meu diário — e azarado seja quem o faça, pois eu o eliminarei, com certeza.

    Das ressalvas que faço, peço que compreenda que não tenho a intenção de seguir alguma “lógica temporal”. Como assim? Bem, a preocupação em escrever “no passado”, “no futuro” ou “no presente”.

    Por que, a princípio, se o infeliz, além de ler este escrito, quiser julgar a escrita… ah, esse eu pessoalmente levarei ao Tártaro.

    Certo, agora o monólogo realmente começa.

    Sou Hera, a deusa dos casamentos. Tenho alguns outros títulos, mas o mais importante é esse sobre “casamento”. Sou a esposa de Zeus, o que me confere o cargo de rainha do Olimpo.

    Semanas atrás, Eris, minha irmã, disse que tinha um plano para eliminar o meu marido. O matar, em outras palavras. Julguei que ela seria capaz… pois ele não é lá muito inteligente.

    Na verdade, em boa parte do tempo, Zeus é tão burro que parece desligado — é, essa é a palavra. Ele parece ter a capacidade de ter e não ter inteligência.

    Por isso, acredito que qualquer um seria capaz de o matar. Principalmente se esse alguém for uma mulher — e, sendo sincera, não me importaria de ela ter algum caso com o mesmo.

    Estou acostumada a isso. A jurar fidelidade a um homem infiel. Não há nada que eu possa fazer para mudar os hábitos dele — tanto que aceitei participar de seu assassinato.

    Algumas doenças apenas a morte cura — a infidelidade é uma delas. 

    Um homem deve ser fiel. Inteligente, perspicaz… coisas que remetam à Yoshiyuki. Ah, Yoshiyuki, isso mesmo. Um homem muito bom.

    Confesso que estou disposta a contradizer a minha função, como deusa dos casamentos, se o meu amante for esse homem. Estaria, na verdade, se incrivelmente Athena não mostrasse interesse por ele.

    Estou gostando de ter esse tal diário. Quero contar muita coisa… muita coisa mesmo. Guardo tantos pensamentos, tantas memórias… só que tinta, essa invenção que algum mortal criou, e que Hermes nos trouxe… é pouca.

    Nunca tive a oportunidade de dizer isso a ninguém, mas, dada a falta de recursos, precisarei resumir e omitir algumas coisas — podem ser escritas no futuro, se assim o destino quiser.

    Todos os meus pensamentos conflitantes, pesares, arrependimentos… se condensam, em meu interior. Sinto como se algo se expandisse e contraísse dentro de mim, como o pulsar de algo.

    É como se houvesse um ser vivo dentro de mim… uma vida, talvez. Mas não estou grávida. Não sei dizer o que é esse sentimento… 

    Mesmo que eu não saiba dizer o que, com precisão, isso é… é algo que me incomoda. As vezes sinto uma fúria interior…

    Fúria essa que se relaciona a tudo que envolva ao meu dito “marido”. Oh! Isso mesmo! Só de falar nele, sinto essa força querer surgir, e logo depois se dissipar!

    Queria continuar, mas alguém está vindo. Ah, é Yoshiyuki — talvez eu flerte com ele, se me for conveniente.

    ㅡㅡㅡ

    — Minha nossa. Em poucas palavras, ela disse muita coisa… — comentou Eros. — E como ela sabe escrever?

    — Meu amigo, isso eu não sei. Se não me falha a memória, a copeira dela disse que Athena ia aos seus aposentos, para ensinar assuntos diversos.

    O deus do amor, com seus cachos dourados reluzindo — coisa que acontecia quando estava animado —, agitou-se na cama.

    — Pode ser apenas uma dedução ruim, mas… Hermes, você não acha que a Athena pode ter alguma “coisa”, nisso?

    — Hum… — e tossiu. —- Talvez. Não temos provas. Tudo o que temos é a minha vaga memória de a copeira ter dito que Athena e Hera estudavam.

    Mas a intuição de Eros não queria descartar a ideia.

    — Acho que isso pode nos custar a vida…

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