📖 Capítulo 17: A Poeira e o Aviso

    O último raio de sol tingia o pátio do Refúgio em tons de cobre e vermelho. Kazuto, com a camisa grudada de suor e o corpo latejando de cansaço, varria o que parecia ser a última folha do planeta Terra.

    Ele parou, apoiado na vassoura, e olhou para o espaço vazio à frente. O pátio estava impecável — não havia sequer poeira para um inseto pousar.

    — …Se tivesse campeonato mundial de faxina, eu já era campeão dos campeões. — murmurou, tentando rir, mas só conseguiu soltar um suspiro pesado.

    A brisa da noite começou a soprar, trazendo o som distante de passos, vozes, treinamentos noturnos… o Refúgio nunca dormia por completo.

    Com passos lentos, Kazuto caminhou até o dormitório, arrastando a vassoura como se fosse uma espada quebrada. Ele só queria cair na cama e apagar.

    Ao abrir a porta, foi recebido por um cenário caótico: cada um dos colegas parecia viver num universo próprio.

    Himari estava em cima da cama, de braços erguidos, faíscas correndo pelos dedos, gritando:
    — EU JÁ SOU UMA CAMPEÃ! QUEM PRECISA ESPERAR O TORNEIO?!

    Sora estava sentado no canto, aura vermelha e pesada vibrando no ar como calor sufocante. Ele falava baixo, mas a raiva escorria em cada palavra:
    — Só uma idiota faria festa antes de ver sangue na areia da arena.

    Chen Hua estava sentada na mesa, cultivando flores carmesins que cresciam direto de sua pele, espalhando perfume doce e mortal pelo quarto. Ela falava serena, mas com a frieza de uma lâmina.
    — Melhor você guardar energia, Himari. Nenhuma flor desabrocha antes da hora.

    Nariko estava deitado no chão, barriga para cima, mastigando algo indefinido — talvez pão velho, talvez carne seca, ninguém sabia. Falava de boca cheia:
    — A melhor parte desses torneios é a comida que servem pros guerreiros. Aposto que tem buffet de todos os Refúgios.

    Ryo afiava suas garras contra a parede, deixando marcas fundas. Seus olhos brilhavam selvagens, e o sorriso era de predador.
    — Que buffet, que nada. No fim, só importa esmagar vocês todos debaixo das minhas garras.

    Kazuto ficou parado na porta, ainda segurando a vassoura. Ele piscou.
    — …Eu só saí cinco minutos. Que tipo de culto demoníaco começou aqui dentro?

    Todos o encararam ao mesmo tempo, e Himari foi a primeira a correr até ele, quase eletrocutando sua manga.
    — KAZUTO! VOCÊ NÃO VAI ACREDITAR!

    — Já tô não acreditando só de olhar… — respondeu ele, mas foi arrastado para dentro.

    Himari o chacoalhou pelos ombros, olhos faiscando.
    — A gente foi escolhido pro Torneio das Feras!

    Kazuto arregalou os olhos.
    — O… o quê? Como assim “a gente”?

    Chen Hua se levantou e se aproximou, deixando uma pétala vermelha cair no chão. Sua voz era calma, mas carregada de peso.
    — Todos os Refúgios, do leste ao oeste, vão enviar lutadores. É uma tradição tão antiga quanto os Shisai. O vencedor recebe a Honra dos Shisai.

    Kazuto piscou.
    — A… honra dos… quem?

    Sora suspirou, cruzando os braços.
    — Os Shisai. Os líderes espirituais. Se você conquista essa honra, até eles te reconhecem. Ou temem.

    Chen Hua completou:
    — Mas também é chamado de “Cemitério das Feras”. Muitos que entram… nunca saem.

    Nariko levantou a mão ainda deitado.
    — Mas se alguém morrer lá dentro… a gente pode dividir a comida dele?

    Silêncio mortal.

    — Brincadeira! — disse ele, rindo, e deu uma mordida exagerada no pão. — …Ou não.

    Kazuto se segurou para não surtar.
    — Vocês tão falando de um torneio mortal, e parece que tão discutindo sobre um piquenique!

    Himari sorriu, ainda vibrando eletricidade.
    — Porque é a nossa chance de mostrar que esse Refúgio é o mais forte do mundo!

    Ryo bateu a garra contra a parede, arrancando um pedaço de pedra.
    — Não é “nossa” chance. É a minha. Vou rasgar cada um de vocês até não sobrar nada.

    Sora riu baixo, provocativo.
    — Você não consegue nem me encarar sem tremer, cachorro.

    Ryo avançou contra ele, aura explodindo, mas Chen Hua estalou os dedos e espinhos cresceram do chão, separando-os.
    — Guardem isso para a arena. — disse ela, com firmeza. — Se querem se matar, pelo menos façam em frente a um público.

    Kazuto caiu na cama, cobrindo o rosto com as mãos.
    — Dois meses… Dois meses até esse torneio, e eu nem sei qual é o meu Feralis…

    O silêncio tomou o quarto. Até Nariko parou de mastigar. Himari sentou-se ao lado dele, os olhos sérios apesar do sorriso.
    — Então vai descobrir. A gente vai te empurrar até lá, mesmo que você não queira.

    Sora bufou.
    — E se não descobrir, vai ser só peso morto.

    Ryo riu baixo.
    — Peso morto que eu mesmo vou arrancar do caminho.

    Chen Hua colocou uma flor sobre a mesa, em frente à cama de Kazuto. A pétala brilhava em vermelho suave, pulsando como coração.
    — Dois meses. Ou você floresce… ou murcha.

    Nariko quebrou o clima, erguendo o pão.
    — E eu tenho dois meses pra descobrir se vou conseguir comer sem interrupções até lá.

    Kazuto tirou a mão do rosto e olhou para o teto. O cheiro de flores, o som de mastigação, os estalos de eletricidade e o arranhar de garras preenchiam o quarto como uma tempestade.

    “Dois meses…”, pensou.
    “Dois meses pra descobrir quem eu sou. Dois meses pra não morrer.”

    Kazuto ficou olhando o teto, o peso das palavras de Chen Hua ecoando como um tambor em sua mente. A flor carmesim sobre a mesa parecia pulsar mais forte, como se zombasse de sua incerteza. Ele apertou os punhos, sentindo o vazio onde seu Feralis — a manifestação de sua essência selvagem — deveria estar. Todos no dormitório já haviam despertado os seus, mesmo que parcialmente. E ele? Nada. Apenas um garoto com uma vassoura.

    Himari, percebendo o silêncio dele, deu um tapa leve em seu ombro, soltando uma faísca acidental que fez Kazuto pular. — Para de se afundar! — disse ela, sorrindo. — Você já sobreviveu ao treinamento do Mestre Kuro. Isso já é mais que muitos.

    — Sobreviver não é o mesmo que lutar — retrucou Kazuto, a voz rouca. — E se eu for mesmo só… peso morto?
    Sora, ainda no canto, lançou um olhar cortante. — Então morre quieto e não atrapalha.

    Chen Hua franziu o cenho, mas antes que pudesse falar, a porta rangeu. Mestre Kuro entrou, o manto negro esvoaçante, olhos brilhando como brasas sob a luz fraca. — O Torneio não perdoa fraqueza — disse ele, a voz grave. — Mas também não exige perfeição. Encontrem sua força. Ou serão esquecidos.

    Kazuto engoliu seco, o coração disparado. A lua lá fora parecia observá-lo, esperando. Dois meses. Era tudo o que tinha.

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