O portão erguia-se diante dele como um arco de pedra engolido pelo tempo, coberto por musgos verdes e raízes que se entranhavam nas rachaduras. A princípio, parecia apenas uma construção abandonada, esquecida em meio às montanhas. Mas, à medida que Kazuto se aproximava, sentiu que aquela pedra respirava. Não era metáfora — o ar oscilava, o chão parecia pulsar com um ritmo lento, profundo, como se a montanha possuísse um coração.

    O jovem estremeceu. A pele formigava. Cada passo mais perto fazia o ar se tornar denso, pesado, como mergulhar em águas profundas.

    À frente, Nara caminhava com a mesma firmeza de sempre, os ombros retos, sem hesitar nem olhar para trás.

    — Chegamos. — Sua voz cortou o silêncio, firme, imutável.

    Kazuto engoliu em seco, sem ter coragem de perguntar “aonde exatamente”.

    Quando Nara tocou o portão, a pedra rangeu com um som grave, tão pesado que parecia ecoar pelo vale inteiro. O mundo do lado de dentro revelou-se como um golpe de luz inesperado.

    Atrás da entrada, uma cidade se escondia. Não uma cidade comum, mas algo suspenso entre mito e realidade. Casas de madeira com telhados curvados, pintados de vermelho escuro e marrom. Lanternas penduradas em fios tremulavam com o vento, espalhando uma luz amarelada suave pelas passagens estreitas. Árvores colossais atravessavam o vilarejo, os galhos entrelaçados em torno das construções como braços protetores.

    Era templo, vila e fortaleza ao mesmo tempo.

    E estava vivo.

    Homens e mulheres treinavam em pátios, seus gritos cortando o ar como trovões. Outros carregavam cestos de frutas, tecidos e ervas, ou varriam as ruas com calma quase monástica. Crianças riam e corriam, mas mesmo elas tinham nos olhos algo diferente, uma centelha selvagem.

    O peito de Kazuto apertou. Nunca vira nada tão impressionante. Nunca sentira tanto medo.

    Nara empurrou os portões até o fim, e o som reverberou como um tambor. Instantaneamente, olhares se voltaram para eles. O treino parou. As conversas silenciaram. Até as crianças congelaram.

    Kazuto sentiu como se todos quisessem olhar dentro dele, como se pudesse ser despido ali, em público, sem nada para esconder-se.

    De repente, uma garota de cabelos pretos lisos, presos em um rabo de cavalo baixo, aproximou-se. Seus olhos tinham algo de gentil, mas a postura era firme, disciplinada.

    — Esse é o novato? — perguntou, com um sorriso tímido.

    — É. Vai ficar. — respondeu Nara, direta.

    A garota inclinou-se levemente, em gesto de boas-vindas.

    — Seja bem-vindo ao Refúgio. Eu sou Himari.

    Kazuto tentou sorrir, mas seus músculos estavam duros. Limitou-se a acenar.

    Antes que conseguisse pensar em uma resposta, um assobio ecoou acima. Algo caiu de um galho grosso, aterrissando na frente dele. Era um garoto de cabelos espetados, sorriso travesso e energia elétrica na postura.

    — Mais um pra virar comida de fera? — Nariko riu alto, batendo no ombro de Kazuto com força exagerada. — Relaxa, tô brincando. Eu sou Nariko.

    Kazuto deu um passo atrás, sem saber se ria ou se fugia.

    Nariko ergueu as mãos como se dissesse “calma aí”.

    — Ei, tô de boa. Não mordo. Pelo menos não sem aviso. — piscou.

    Kazuto só conseguiu soltar um riso nervoso.

    Então, passos soaram no pátio. Um garoto descia devagar as escadas, cabelos claros, olhar duro, como gelo, e uma postura de guerreiro. Ele cruzou os braços, encarando Kazuto de cima a baixo.

    — O novato parece frágil. Vai ser peso morto.

    Nariko gargalhou.

    — Esse é o Sora. Ele fala mais do que luta.

    — Cala a boca, Nariko. — O tom de Sora era cortante, quase uma lâmina.

    Himari suspirou, acostumada com aquela rivalidade.

    Antes que a tensão explodisse, uma figura leve apareceu correndo. Uma garota pequena, de traços delicados, segurava cuidadosamente um vaso com flores. Seu sorriso era doce e discreto, irradiando calma.

    — Vocês estão assustando ele — disse, colocando o vaso em um parapeito de pedra. — Eu sou Chen Hua.

    Kazuto finalmente conseguiu respirar fundo. Quatro pessoas, quatro energias diferentes — cada uma esmagava e atraía de um jeito distinto.

    Nara, até então em silêncio, interrompeu:

    — Onde está Kael?

    — No salão, em reunião com os Shisai. — respondeu Himari, apontando.

    Nara fez um gesto para que seguissem.

    O grupo atravessou o vilarejo até a maior construção do Refúgio: um salão imponente, sustentado por pilares de pedra cobertos de inscrições antigas. Tochas crepitavam em suportes de ferro, lançando sombras dançantes pelas paredes. O ar ali parecia mais frio, pesado. Como se a própria estrutura observasse quem entrava.

    Kazuto entrou de ombros tensos.

    No interior, homens e mulheres aguardavam. Nenhum deles parecia comum. Suas presenças distorciam o espaço ao redor, tão intensas que faziam o estômago de Kazuto revirar.

    Um deles levantou-se. Era um homem de corpo robusto, músculos como rocha, cabelos longos com as pontas grisalhas. Seus punhos brilhavam discretamente, envoltos em energia.

    — Então este é o garoto.

    A voz era grave, pesada, mas não agressiva.

    — É. Sobreviveu ao ataque de Tommy. — respondeu Nara.

    O homem se aproximou, passos lentos e firmes. Seu olhar não tinha ódio, mas julgamento.

    — Qual o seu nome?

    — K-Kazuto…

    O homem fechou os olhos por um instante, como se meditasse sobre aquilo.

    Nara assentiu.

    — Sou Nara Martelo. Líder do Lumen Feralis. — Tocou o peito. — Aqui, guiamos os que despertam para não serem devorados pela própria fera.

    — Fera? — Kazuto repetiu, confuso.

    Uma mulher de cabelos ruivos, olhar caloroso e firme, adiantou-se.

    — Todo humano tem dentro de si o Animalis. É o instinto selvagem, a força primitiva que tanto impulsiona quanto destrói. Quando desperto, manifesta-se no Feralis: o poder.

    Kazuto engoliu em seco.

    — Então Tommy…

    — Sim — ela confirmou. — Tommy foi devorado pelo próprio Animalis. Deixou de ser humano.

    Um homem encostado numa vassoura esquisita riu baixo.

    — É por isso que existimos. — Deu uma piscada. — Pra limpar a sujeira quando a fera toma conta.

    Kazuto ficou em silêncio, sem saber se estava com medo ou fascinado.

    De repente, um homem com uma lâmina no lugar do braço direito inclinou-se à frente. Seus olhos eram navalhas.

    — Desde que prove que merece estar aqui.

    Nariko inclinou-se no ouvido de Kazuto:

    — Esse é Raen. Mania de duelo. Relaxa.

    Kazuto tentou rir, mas a garganta estava seca.

    A reunião terminou em silêncio pesado. Antes de saírem, Nara decretou:

    — Kazuto ficará no dormitório dos aprendizes. Vocês quatro — Himari, Nariko, Sora, Chen Hua — cuidem dele.

    Os jovens assentiram.

    Do lado de fora, a noite já caía. O céu roxo se mesclava às lanternas douradas. O Refúgio parecia sussurrar segredos entre as árvores.

    Nariko bocejou, esticando os braços.

    — Pronto, novato? Preparado pra conhecer nosso inferninho?

    Sora deu um empurrão ríspido em Kazuto.

    — Se não aguentar, pode voltar pra casa.

    Chen Hua sorriu gentilmente, quebrando a tensão.

    — Não dê ouvidos. Vai dar tudo certo.

    Himari guiava na frente, passos leves.

    — O Refúgio não é só um lugar de treino. É uma casa. Aqui você vai aprender a viver com sua fera… ou ser devorado por ela.

    Kazuto olhou ao redor, captando cada detalhe — os sons de treino, o eco de tambores, o farfalhar das árvores.

    E no fundo, algo queimava em sua pele.

    Medo.
    Curiosidade.
    E uma centelha selvagem, inexplicável.

    Ele soube, com clareza aterradora: sua vida nunca mais seria normal.

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