Capítulo 6: Lumen Feralis
O portão erguia-se diante dele como um arco de pedra engolido pelo tempo, coberto por musgos verdes e raízes que se entranhavam nas rachaduras. A princípio, parecia apenas uma construção abandonada, esquecida em meio às montanhas. Mas, à medida que Kazuto se aproximava, sentiu que aquela pedra respirava. Não era metáfora — o ar oscilava, o chão parecia pulsar com um ritmo lento, profundo, como se a montanha possuísse um coração.
O jovem estremeceu. A pele formigava. Cada passo mais perto fazia o ar se tornar denso, pesado, como mergulhar em águas profundas.
À frente, Nara caminhava com a mesma firmeza de sempre, os ombros retos, sem hesitar nem olhar para trás.
— Chegamos. — Sua voz cortou o silêncio, firme, imutável.
Kazuto engoliu em seco, sem ter coragem de perguntar “aonde exatamente”.
Quando Nara tocou o portão, a pedra rangeu com um som grave, tão pesado que parecia ecoar pelo vale inteiro. O mundo do lado de dentro revelou-se como um golpe de luz inesperado.
Atrás da entrada, uma cidade se escondia. Não uma cidade comum, mas algo suspenso entre mito e realidade. Casas de madeira com telhados curvados, pintados de vermelho escuro e marrom. Lanternas penduradas em fios tremulavam com o vento, espalhando uma luz amarelada suave pelas passagens estreitas. Árvores colossais atravessavam o vilarejo, os galhos entrelaçados em torno das construções como braços protetores.
Era templo, vila e fortaleza ao mesmo tempo.
E estava vivo.
Homens e mulheres treinavam em pátios, seus gritos cortando o ar como trovões. Outros carregavam cestos de frutas, tecidos e ervas, ou varriam as ruas com calma quase monástica. Crianças riam e corriam, mas mesmo elas tinham nos olhos algo diferente, uma centelha selvagem.
O peito de Kazuto apertou. Nunca vira nada tão impressionante. Nunca sentira tanto medo.
Nara empurrou os portões até o fim, e o som reverberou como um tambor. Instantaneamente, olhares se voltaram para eles. O treino parou. As conversas silenciaram. Até as crianças congelaram.
Kazuto sentiu como se todos quisessem olhar dentro dele, como se pudesse ser despido ali, em público, sem nada para esconder-se.
De repente, uma garota de cabelos pretos lisos, presos em um rabo de cavalo baixo, aproximou-se. Seus olhos tinham algo de gentil, mas a postura era firme, disciplinada.
— Esse é o novato? — perguntou, com um sorriso tímido.
— É. Vai ficar. — respondeu Nara, direta.
A garota inclinou-se levemente, em gesto de boas-vindas.
— Seja bem-vindo ao Refúgio. Eu sou Himari.
Kazuto tentou sorrir, mas seus músculos estavam duros. Limitou-se a acenar.
Antes que conseguisse pensar em uma resposta, um assobio ecoou acima. Algo caiu de um galho grosso, aterrissando na frente dele. Era um garoto de cabelos espetados, sorriso travesso e energia elétrica na postura.
— Mais um pra virar comida de fera? — Nariko riu alto, batendo no ombro de Kazuto com força exagerada. — Relaxa, tô brincando. Eu sou Nariko.
Kazuto deu um passo atrás, sem saber se ria ou se fugia.
Nariko ergueu as mãos como se dissesse “calma aí”.
— Ei, tô de boa. Não mordo. Pelo menos não sem aviso. — piscou.
Kazuto só conseguiu soltar um riso nervoso.
Então, passos soaram no pátio. Um garoto descia devagar as escadas, cabelos claros, olhar duro, como gelo, e uma postura de guerreiro. Ele cruzou os braços, encarando Kazuto de cima a baixo.
— O novato parece frágil. Vai ser peso morto.
Nariko gargalhou.
— Esse é o Sora. Ele fala mais do que luta.
— Cala a boca, Nariko. — O tom de Sora era cortante, quase uma lâmina.
Himari suspirou, acostumada com aquela rivalidade.
Antes que a tensão explodisse, uma figura leve apareceu correndo. Uma garota pequena, de traços delicados, segurava cuidadosamente um vaso com flores. Seu sorriso era doce e discreto, irradiando calma.
— Vocês estão assustando ele — disse, colocando o vaso em um parapeito de pedra. — Eu sou Chen Hua.
Kazuto finalmente conseguiu respirar fundo. Quatro pessoas, quatro energias diferentes — cada uma esmagava e atraía de um jeito distinto.
Nara, até então em silêncio, interrompeu:
— Onde está Kael?
— No salão, em reunião com os Shisai. — respondeu Himari, apontando.
Nara fez um gesto para que seguissem.
O grupo atravessou o vilarejo até a maior construção do Refúgio: um salão imponente, sustentado por pilares de pedra cobertos de inscrições antigas. Tochas crepitavam em suportes de ferro, lançando sombras dançantes pelas paredes. O ar ali parecia mais frio, pesado. Como se a própria estrutura observasse quem entrava.
Kazuto entrou de ombros tensos.
No interior, homens e mulheres aguardavam. Nenhum deles parecia comum. Suas presenças distorciam o espaço ao redor, tão intensas que faziam o estômago de Kazuto revirar.
Um deles levantou-se. Era um homem de corpo robusto, músculos como rocha, cabelos longos com as pontas grisalhas. Seus punhos brilhavam discretamente, envoltos em energia.
— Então este é o garoto.
A voz era grave, pesada, mas não agressiva.
— É. Sobreviveu ao ataque de Tommy. — respondeu Nara.
O homem se aproximou, passos lentos e firmes. Seu olhar não tinha ódio, mas julgamento.
— Qual o seu nome?
— K-Kazuto…
O homem fechou os olhos por um instante, como se meditasse sobre aquilo.
Nara assentiu.
— Sou Nara Martelo. Líder do Lumen Feralis. — Tocou o peito. — Aqui, guiamos os que despertam para não serem devorados pela própria fera.
— Fera? — Kazuto repetiu, confuso.
Uma mulher de cabelos ruivos, olhar caloroso e firme, adiantou-se.
— Todo humano tem dentro de si o Animalis. É o instinto selvagem, a força primitiva que tanto impulsiona quanto destrói. Quando desperto, manifesta-se no Feralis: o poder.
Kazuto engoliu em seco.
— Então Tommy…
— Sim — ela confirmou. — Tommy foi devorado pelo próprio Animalis. Deixou de ser humano.
Um homem encostado numa vassoura esquisita riu baixo.
— É por isso que existimos. — Deu uma piscada. — Pra limpar a sujeira quando a fera toma conta.
Kazuto ficou em silêncio, sem saber se estava com medo ou fascinado.
De repente, um homem com uma lâmina no lugar do braço direito inclinou-se à frente. Seus olhos eram navalhas.
— Desde que prove que merece estar aqui.
Nariko inclinou-se no ouvido de Kazuto:
— Esse é Raen. Mania de duelo. Relaxa.
Kazuto tentou rir, mas a garganta estava seca.
A reunião terminou em silêncio pesado. Antes de saírem, Nara decretou:
— Kazuto ficará no dormitório dos aprendizes. Vocês quatro — Himari, Nariko, Sora, Chen Hua — cuidem dele.
Os jovens assentiram.
Do lado de fora, a noite já caía. O céu roxo se mesclava às lanternas douradas. O Refúgio parecia sussurrar segredos entre as árvores.
Nariko bocejou, esticando os braços.
— Pronto, novato? Preparado pra conhecer nosso inferninho?
Sora deu um empurrão ríspido em Kazuto.
— Se não aguentar, pode voltar pra casa.
Chen Hua sorriu gentilmente, quebrando a tensão.
— Não dê ouvidos. Vai dar tudo certo.
Himari guiava na frente, passos leves.
— O Refúgio não é só um lugar de treino. É uma casa. Aqui você vai aprender a viver com sua fera… ou ser devorado por ela.
Kazuto olhou ao redor, captando cada detalhe — os sons de treino, o eco de tambores, o farfalhar das árvores.
E no fundo, algo queimava em sua pele.
Medo.
Curiosidade.
E uma centelha selvagem, inexplicável.
Ele soube, com clareza aterradora: sua vida nunca mais seria normal.
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