O dormitório dos aprendizes erguia-se no canto mais silencioso do Refúgio da Lua Calada, afastado do pátio de treinamento e da biblioteca subterrânea. Uma construção de madeira clara, com telhas negras envernizadas, exalava o cheiro terroso da floresta que a cercava. Lanternas de papel pendiam do beiral, balançando sob o vento frio da noite, projetando sombras dançantes no chão de pedra.

    Kazuto subiu os degraus com passos lentos, a mochila pendendo no ombro. As tábuas rangiam sob seu peso, emitindo um som quase melancólico. Estava nervoso. Não era só o fato de estar em um lugar estranho, mas a consciência de que, pela primeira vez desde o massacre na escola, ele teria de dividir o espaço com outros que carregavam as mesmas marcas invisíveis do destino: o Animalis.

    A porta se abriu com um leve estalo, e o interior revelou-se iluminado por lampiões de óleo. O ambiente era simples, mas acolhedor: cinco camas de madeira dispostas lado a lado, separadas apenas por pequenas mesas de apoio; o piso lustrado refletia a luz suave, e no ar pairava um incenso de ervas amargas misturado ao aroma doce de flores secas.

    Kazuto parou no batente, observando.

    Nariko já estava largado em sua cama, deitado de barriga para cima, braços atrás da cabeça. Ao perceber a presença do novato, ergueu-se só o suficiente para soltar um sorriso de canto.

    — Bem-vindo ao paraíso, Kazuto. — disse, com sarcasmo. — Cinco estrelas, serviço de quarto zero, e cuidado: se ouvir passos na madrugada, pode ser só a madeira rangendo… ou outra coisa.

    Sora, sentado em posição ereta na cama ao lado, lançou-lhe um olhar breve, quase indiferente. Havia algo selvagem nos olhos dele, como se a qualquer momento pudesse explodir em fúria.

    Chen Hua, mais delicada, ajeitava um pequeno vaso de flores recém-colhidas na beira da janela. Tocava as pétalas com reverência, como se cada movimento fosse uma oração silenciosa.

    Já Himari dobrava lençóis com perfeição militar, organizando cada detalhe de sua cama, do travesseiro ao casaco cuidadosamente dobrado ao pé. Quando notou Kazuto hesitante, apontou para a cama vazia ao lado da sua.

    — É a sua. — disse, firme, sem hesitar.

    Kazuto assentiu, deixando a mochila no chão. Por alguns segundos, só o silêncio se fez ouvir, quebrado pelo sopro do vento lá fora.


    Primeiras Palavras

    Nariko não resistiu por muito tempo. Puxou assunto com seu jeito provocador:

    — Então, novato… já descobriu qual é a sua fera?

    Kazuto engoliu seco.

    — Eu… não. Quer dizer, ainda não senti nada.

    Nariko gargalhou, alto, inclinando-se para frente.

    — Isso vai ser divertido. Ver um novato descobrir qual Animalis carrega dentro de si é como assistir a um jogo perigoso: às vezes termina em espetáculo, às vezes em tragédia.

    — Cala a boca. — murmurou Sora, ríspido, como se a provocação o incomodasse.

    Nariko apenas riu, levantando as mãos em rendição.

    — Relaxa, grandão. Só tô quebrando o gelo.

    Kazuto olhou ao redor, inseguro. — Vocês… já sabem lidar com o Animalis de vocês?

    O silêncio foi interrompido pelo próprio Nariko, que abriu um sorriso largo.

    — Claro que sim. O meu é Tampa.

    Kazuto piscou, confuso.

    — Tampa…?

    Nariko estufou o peito. — Isso mesmo. Qualquer coisa que eu imaginar como uma tampa, eu posso criar. É bizarro, eu sei. Mas já me salvou mais vezes do que posso contar. Tampo buracos no chão, bocas de monstro, ataques de energia… até gente irritante. — Ele fez uma pausa dramática. — Já tranquei um inimigo dentro de uma tampa invisível. O cara ficou batendo lá dentro como um peixe em aquário. Hilário.

    Kazuto não soube se ria ou se ficava desconfortável.

    Chen Hua, com a voz suave, interveio:

    — Eu prefiro falar do meu. — Disse, acariciando uma das flores. — O meu Animalis é Flor. Com ele, posso fazer crescer pétalas que cortam como lâminas, raízes que seguram inimigos, ou até criar pequenos campos de serenidade, que acalmam feras e corações. Para mim, é como cuidar de um jardim dentro do caos.

    Kazuto ficou impressionado com a calma que ela transmitia.

    Sora, por outro lado, não tinha a mesma paciência.

    — O meu é simples. — disse, cruzando os braços. — Raiva Pura. Quando eu solto, cada músculo, cada osso, cada parte do meu corpo fica tomada por uma fúria que não dá para descrever. Mais rápido, mais forte, mais violento. Mas também mais perigoso. Se eu não controlo, a raiva me controla.

    Os olhos de Kazuto se arregalaram. O tom sério de Sora transmitia não orgulho, mas peso.

    Por fim, Himari ergueu a cabeça, finalmente quebrando o silêncio.

    — O meu é Eletricidade. — disse, seca. — Só isso. Posso gerar, controlar, sentir cada faísca ao meu redor. É útil para lutar, mas também para… — ela fez uma pausa, olhando diretamente para Kazuto — revelar quem está mentindo.

    Kazuto piscou, surpreso.

    — Como assim?

    — Correntes elétricas correm pelo corpo quando a pessoa mente. O coração bate diferente, a pele responde. Eu sinto. — Ela desviou o olhar, voltando a arrumar o travesseiro. — Não é tão bonito quanto parece.

    Nariko, incapaz de deixar o clima sério se prolongar, soltou uma gargalhada.

    — E você, Kazuto? Vai ser o quê? Cachorro vira-lata? Minhoca?

    — Para, Nariko. — repreendeu Himari, irritada.

    Chen Hua sorriu, doce.

    — Seja qual for, Kazuto, vai ser seu. E nós vamos ajudar você a entender.

    Kazuto engoliu em seco, sentindo-se esmagado pelo peso da expectativa.


    O Peso do Silêncio

    Mais tarde, o quarto mergulhou em semiescuridão. Apenas as lanternas de papel do lado de fora projetavam luzes tremeluzentes pelas frestas da janela. Cada aprendiz ocupava-se à sua maneira:

    Nariko assobiava baixinho, jogando uma tampa invisível no ar, como se fosse uma moeda, e pegando de novo.

    Sora permanecia sentado, de olhos fechados, respirando fundo, os punhos cerrados como se tentasse conter uma fúria interna.

    Chen Hua sussurrava para suas flores, como se conversasse com amigos invisíveis.

    Himari, deitada de lado, deixava que pequenas faíscas percorressem seus dedos, iluminando o espaço em pulsos azulados.

    Kazuto observava cada um deles, fascinado e intimidado ao mesmo tempo.

    “Eles já sabem quem são”, pensou. “Já têm suas feras, suas armas, seus caminhos. E eu…? Eu sou só alguém que sobreviveu por acaso.”

    Deitou-se, encarando o teto de madeira. O som do vento atravessava as frestas, acompanhado pelo rangido do dormitório. Tentou fechar os olhos, mas o sono não vinha.

    Foi então que sentiu.

    Um calor profundo, latente, espalhando-se pelo peito. Não era dor, nem febre. Era como se algo dentro dele roçasse as grades da prisão em que estava. Um instinto. Um murmúrio. Uma fera esperando o momento certo.

    Kazuto abriu os olhos, respirando rápido.

    “Será… que já está começando?”

    Virou o rosto. Nariko roncava alto. Chen Hua dormia sorridente, como uma criança. Himari permanecia imóvel, o corpo sereno. Sora ainda estava desperto, olhos semicerrados, encarando o chão com uma fúria silenciosa.

    Kazuto fechou os olhos de novo, mas o calor não desapareceu.

    Dentro dele, algo murmurava. Algo que queria sair.

    E ele sabia: aquela seria apenas a primeira noite de muitas.

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