O Refúgio da Lua Calada nunca dormia por completo.

    Mesmo sob o manto da noite, tochas ardiam em corredores subterrâneos, guardas se revezavam em silêncio nos portões e monges caminhavam devagar, balançando sinos de cobre e espalhando incenso de ervas raras. Diziam que o som metálico afastava os ecos do instinto selvagem, que rondavam os portadores de Feralis como lobos invisíveis.

    No coração da fortaleza, porém, havia um lugar onde a noite parecia mais densa: o Salão dos Ecos. Ali, apenas os líderes do Lumen Feralis — os temidos e respeitados 15 Shisai — tinham acesso.

    As paredes eram cobertas por tapeçarias antigas: feras em luta com homens, lobos partidos entre sombra e luz, flores brotando entre ossos. O ar era pesado, carregado de séculos de segredos e decisões que moldaram o destino de incontáveis portadores de Feralis.

    No centro, uma mesa circular de pedra — tão antiga que se dizia moldada durante o primeiro ritual de selamento. Sobre ela, marcas de golpes e fissuras lembravam que até mesmo as discussões dentro do Lumen deixavam cicatrizes.

    Na cabeceira simbólica, sem trono, sem enfeites, estava Nara Martelo. Suas mãos largas e calejadas repousavam sobre a mesa. O corpo robusto, marcado por cicatrizes, parecia uma muralha viva. Mas os olhos eram serenos, como os de um monge que já havia visto o suficiente para não se deixar abalar por nada. Cada olhar dele, porém, pesava como um martelo espiritual.

    O som grave de um sino anunciou o início do conselho.

    Nara foi o primeiro a falar. Sua voz não era apenas som, era peso.

    — Um Feralis perdido atacou civis dentro de uma escola em Tóquio. — fez uma pausa, permitindo que as palavras se espalhassem pelo salão como chamas em palha seca. — O nome dele era Tommy.

    O silêncio que se seguiu foi absoluto. Todos já haviam ouvido rumores, mas ouvir da boca de Nara era diferente.

    Hira, o Lamento Ardente, apoiada no braço da cadeira, foi a primeira a romper a quietude. Seus olhos refletiam brasas, e mesmo em repouso a aura de fogo parecia pulsar sob sua pele.

    — Eu senti o fogo dele se extinguindo, mesmo à distância. — murmurou. — Você o matou, Nara?

    Nara não desviou o olhar. — Eu o julguei. Ele já havia cruzado a linha da humanidade.

    Raen, o Corte Eterno, ergueu a cabeça lentamente. O braço, sempre transformado em lâmina viva, repousava sobre o ombro, como um guerreiro que nunca abaixava a guarda.

    — Nenhum duelo? Nenhum chamado à redenção?

    — A fera já havia devorado o homem. — respondeu Nara. — Não restava nada além de instinto.

    O silêncio voltou a pesar, até que Kael, o Duro, bateu os punhos de diamante contra a mesa, fazendo a pedra tremer.

    — Então falhamos! — sua voz ecoou como rocha quebrando. — Mais uma vez, deixamos um Feralis se perder antes de alcançá-lo. Quantos ainda terão de morrer até que sejamos rápidos o suficiente?

    Orik, o Forjador, cruzou os braços, a pele se moldando em concreto rijo.

    — Não é apenas falha nossa. É multiplicação. Casos como Tommy estão surgindo em lugares onde nunca houve sinais antes. É como se algo estivesse acordando os jovens… como se alguém estivesse espalhando sementes da fera.

    Mikael, o que Escuta o Vento, fechou os olhos e massageou as têmporas. Quando falou, sua voz não saiu apenas de sua boca — ecoou dentro das cabeças de todos ali.

    — Há correntes psíquicas agitadas. Como se uma muralha invisível tivesse ruído. Sinto ecos não só em Tóquio… mas em várias cidades. O vento sopra com medo.

    Um murmúrio inquieto percorreu o círculo de Shisai.

    Foi então que Ilma, a Guardiã da Névoa, inclinou-se para frente. Sua silhueta parecia quase se desfazer na penumbra, como se estivesse sempre a um passo de desaparecer.

    — E o garoto? — sua voz saiu baixa, mas clara. — O sobrevivente.

    Não precisou dizer o nome. Todos sabiam de quem falava: Kazuto.

    Nara respirou fundo. — Eu o vi resistir. Tommy lançou estacas de isopor contra ele. O garoto não apenas sobreviveu — ele quebrou as estacas com as próprias mãos.

    Naeva das Estepes, a loba branca, mostrou os dentes num meio-sorriso instintivo.

    — Resistência instintiva? Ou o início de um despertar?

    — Ainda não sei. — respondeu Nara. — Mas o fato é: ele sobreviveu onde todos os outros morreram.

    Ayo, o Último Zephyra, falou num tom sereno, sua aura suave lembrando chuva caindo sobre pedras.

    — Não foi acaso. O vento o trouxe até nós.

    “Tião” Varnes, o Contramago, resmungou, batendo a espingarda sagrada contra o chão.

    — Bah. Destino, destino… já vi esse papo antes. Às vezes é só sorte. Vocês se esquecem de que a morte também tem preferências.

    Eldra, a Mãe Verde, interveio com calma, mas firmeza, suas mãos enrugadas cruzadas sobre a mesa.

    — Quando uma árvore sobrevive ao incêndio, Varnes, é porque suas raízes escondem um segredo. Nunca despreze o que resiste às chamas.

    Nara ergueu a mão, chamando silêncio.

    — Seja acaso ou destino, o garoto está sob nossa guarda. E eu decidi que será treinado.

    Murmúrios atravessaram o salão, alguns de aprovação, outros de descontentamento.

    Yume, a Aflição Rápida, rosnou baixo, as unhas crescendo em reflexo até raspar a mesa como lâminas.

    — Isso é um risco desnecessário. Um novato entre nós é um convite ao desastre. Se perder o controle, teremos sangue derramado dentro de nossas próprias paredes.

    Saru, o Copo Vazio, deu um gole em sua garrafa antes de rir suavemente.

    — Talvez seja disso que precisamos. Sangue novo. Uma chance de ver se a fera escolhe seu dono… ou o contrário.

    Lau, o Faxineiro Divino, limpava calmamente sua vassoura espiritual, como se varresse poeira invisível do ar.

    — Um novato é como sujeira. Inofensivo no início, mas se ignorado, sufoca. Se ele ficar, terá de ser limpo.

    Kael dos Corações Quebrados, o curandeiro, inclinou-se para frente, a luz suave de sua aura iluminando seus olhos cansados.

    — Eu vi muitos jovens assim. Feridos, perdidos, assustados. A fera é cruel, mas também é um espelho. Talvez o garoto nos mostre o que está vindo… antes que nos atinja de surpresa.

    Haru, o Cinzento, até então imóvel, deixou escapar uma voz baixa, fria como fumaça:

    — O garoto é detalhe. O verdadeiro perigo é o aumento dos incidentes. Estamos apagando incêndios enquanto o mundo inteiro se transforma em cinzas.

    Os olhos voltaram para Nara.

    Ele cerrou os punhos. O martelo espiritual brilhou por um instante em suas mãos, emitindo uma pressão invisível que fez até as tapeçarias estremecerem.

    — Ouçam bem. — sua voz retumbou. — O Lumen Feralis não é refúgio de covardes. Não existimos para apagar feras, mas para guiá-las.

    Bateu os punhos contra a mesa. A pedra tremeu.

    — O garoto fica. Ele será treinado, testado, guiado. Se for apenas sorte, morrerá no caminho. Se for destino… talvez seja a chave que esperamos.

    Um a um, os Shisai assentiram. Alguns com relutância, outros com convicção. A decisão estava tomada.

    Quando todos já se preparavam para encerrar, Mikael ergueu a cabeça, a expressão distante.

    — Antes de dormir, o vento me trouxe uma canção. — disse lentamente. — Uma voz repetia as mesmas palavras, em cada rajada, em cada sussurro:

    “A fera não está vindo.
    Ela já está aqui.”

    O salão mergulhou em silêncio absoluto.

    E, pela primeira vez em anos, até mesmo os 15 Shisai sentiram um calafrio.

    A noite pareceu mais pesada sobre o Refúgio da Lua Calada.

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