Capítulo 8: O Conselho dos Shisai
O Refúgio da Lua Calada nunca dormia por completo.
Mesmo sob o manto da noite, tochas ardiam em corredores subterrâneos, guardas se revezavam em silêncio nos portões e monges caminhavam devagar, balançando sinos de cobre e espalhando incenso de ervas raras. Diziam que o som metálico afastava os ecos do instinto selvagem, que rondavam os portadores de Feralis como lobos invisíveis.
No coração da fortaleza, porém, havia um lugar onde a noite parecia mais densa: o Salão dos Ecos. Ali, apenas os líderes do Lumen Feralis — os temidos e respeitados 15 Shisai — tinham acesso.
As paredes eram cobertas por tapeçarias antigas: feras em luta com homens, lobos partidos entre sombra e luz, flores brotando entre ossos. O ar era pesado, carregado de séculos de segredos e decisões que moldaram o destino de incontáveis portadores de Feralis.
No centro, uma mesa circular de pedra — tão antiga que se dizia moldada durante o primeiro ritual de selamento. Sobre ela, marcas de golpes e fissuras lembravam que até mesmo as discussões dentro do Lumen deixavam cicatrizes.
Na cabeceira simbólica, sem trono, sem enfeites, estava Nara Martelo. Suas mãos largas e calejadas repousavam sobre a mesa. O corpo robusto, marcado por cicatrizes, parecia uma muralha viva. Mas os olhos eram serenos, como os de um monge que já havia visto o suficiente para não se deixar abalar por nada. Cada olhar dele, porém, pesava como um martelo espiritual.
O som grave de um sino anunciou o início do conselho.
Nara foi o primeiro a falar. Sua voz não era apenas som, era peso.
— Um Feralis perdido atacou civis dentro de uma escola em Tóquio. — fez uma pausa, permitindo que as palavras se espalhassem pelo salão como chamas em palha seca. — O nome dele era Tommy.
O silêncio que se seguiu foi absoluto. Todos já haviam ouvido rumores, mas ouvir da boca de Nara era diferente.
Hira, o Lamento Ardente, apoiada no braço da cadeira, foi a primeira a romper a quietude. Seus olhos refletiam brasas, e mesmo em repouso a aura de fogo parecia pulsar sob sua pele.
— Eu senti o fogo dele se extinguindo, mesmo à distância. — murmurou. — Você o matou, Nara?
Nara não desviou o olhar. — Eu o julguei. Ele já havia cruzado a linha da humanidade.
Raen, o Corte Eterno, ergueu a cabeça lentamente. O braço, sempre transformado em lâmina viva, repousava sobre o ombro, como um guerreiro que nunca abaixava a guarda.
— Nenhum duelo? Nenhum chamado à redenção?
— A fera já havia devorado o homem. — respondeu Nara. — Não restava nada além de instinto.
O silêncio voltou a pesar, até que Kael, o Duro, bateu os punhos de diamante contra a mesa, fazendo a pedra tremer.
— Então falhamos! — sua voz ecoou como rocha quebrando. — Mais uma vez, deixamos um Feralis se perder antes de alcançá-lo. Quantos ainda terão de morrer até que sejamos rápidos o suficiente?
Orik, o Forjador, cruzou os braços, a pele se moldando em concreto rijo.
— Não é apenas falha nossa. É multiplicação. Casos como Tommy estão surgindo em lugares onde nunca houve sinais antes. É como se algo estivesse acordando os jovens… como se alguém estivesse espalhando sementes da fera.
Mikael, o que Escuta o Vento, fechou os olhos e massageou as têmporas. Quando falou, sua voz não saiu apenas de sua boca — ecoou dentro das cabeças de todos ali.
— Há correntes psíquicas agitadas. Como se uma muralha invisível tivesse ruído. Sinto ecos não só em Tóquio… mas em várias cidades. O vento sopra com medo.
Um murmúrio inquieto percorreu o círculo de Shisai.
Foi então que Ilma, a Guardiã da Névoa, inclinou-se para frente. Sua silhueta parecia quase se desfazer na penumbra, como se estivesse sempre a um passo de desaparecer.
— E o garoto? — sua voz saiu baixa, mas clara. — O sobrevivente.
Não precisou dizer o nome. Todos sabiam de quem falava: Kazuto.
Nara respirou fundo. — Eu o vi resistir. Tommy lançou estacas de isopor contra ele. O garoto não apenas sobreviveu — ele quebrou as estacas com as próprias mãos.
Naeva das Estepes, a loba branca, mostrou os dentes num meio-sorriso instintivo.
— Resistência instintiva? Ou o início de um despertar?
— Ainda não sei. — respondeu Nara. — Mas o fato é: ele sobreviveu onde todos os outros morreram.
Ayo, o Último Zephyra, falou num tom sereno, sua aura suave lembrando chuva caindo sobre pedras.
— Não foi acaso. O vento o trouxe até nós.
“Tião” Varnes, o Contramago, resmungou, batendo a espingarda sagrada contra o chão.
— Bah. Destino, destino… já vi esse papo antes. Às vezes é só sorte. Vocês se esquecem de que a morte também tem preferências.
Eldra, a Mãe Verde, interveio com calma, mas firmeza, suas mãos enrugadas cruzadas sobre a mesa.
— Quando uma árvore sobrevive ao incêndio, Varnes, é porque suas raízes escondem um segredo. Nunca despreze o que resiste às chamas.
Nara ergueu a mão, chamando silêncio.
— Seja acaso ou destino, o garoto está sob nossa guarda. E eu decidi que será treinado.
Murmúrios atravessaram o salão, alguns de aprovação, outros de descontentamento.
Yume, a Aflição Rápida, rosnou baixo, as unhas crescendo em reflexo até raspar a mesa como lâminas.
— Isso é um risco desnecessário. Um novato entre nós é um convite ao desastre. Se perder o controle, teremos sangue derramado dentro de nossas próprias paredes.
Saru, o Copo Vazio, deu um gole em sua garrafa antes de rir suavemente.
— Talvez seja disso que precisamos. Sangue novo. Uma chance de ver se a fera escolhe seu dono… ou o contrário.
Lau, o Faxineiro Divino, limpava calmamente sua vassoura espiritual, como se varresse poeira invisível do ar.
— Um novato é como sujeira. Inofensivo no início, mas se ignorado, sufoca. Se ele ficar, terá de ser limpo.
Kael dos Corações Quebrados, o curandeiro, inclinou-se para frente, a luz suave de sua aura iluminando seus olhos cansados.
— Eu vi muitos jovens assim. Feridos, perdidos, assustados. A fera é cruel, mas também é um espelho. Talvez o garoto nos mostre o que está vindo… antes que nos atinja de surpresa.
Haru, o Cinzento, até então imóvel, deixou escapar uma voz baixa, fria como fumaça:
— O garoto é detalhe. O verdadeiro perigo é o aumento dos incidentes. Estamos apagando incêndios enquanto o mundo inteiro se transforma em cinzas.
Os olhos voltaram para Nara.
Ele cerrou os punhos. O martelo espiritual brilhou por um instante em suas mãos, emitindo uma pressão invisível que fez até as tapeçarias estremecerem.
— Ouçam bem. — sua voz retumbou. — O Lumen Feralis não é refúgio de covardes. Não existimos para apagar feras, mas para guiá-las.
Bateu os punhos contra a mesa. A pedra tremeu.
— O garoto fica. Ele será treinado, testado, guiado. Se for apenas sorte, morrerá no caminho. Se for destino… talvez seja a chave que esperamos.
Um a um, os Shisai assentiram. Alguns com relutância, outros com convicção. A decisão estava tomada.
Quando todos já se preparavam para encerrar, Mikael ergueu a cabeça, a expressão distante.
— Antes de dormir, o vento me trouxe uma canção. — disse lentamente. — Uma voz repetia as mesmas palavras, em cada rajada, em cada sussurro:
“A fera não está vindo.
Ela já está aqui.”
O salão mergulhou em silêncio absoluto.
E, pela primeira vez em anos, até mesmo os 15 Shisai sentiram um calafrio.
A noite pareceu mais pesada sobre o Refúgio da Lua Calada.
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