Capítulo 9: O professor de Vassoura
O sol da manhã mal havia atravessado as montanhas que cercavam o Refúgio da Lua Calada quando o sino soou três vezes. O toque ecoou pelos corredores de pedra, pelas torres quebradas e até mesmo pelo bosque que envolvia o lugar. Era um som firme, quase metálico, que parecia se chocar contra o coração de cada novo residente. Não era alarme. Era rotina. Um aviso claro: o primeiro dia de aulas começava.
Kazuto acordou devagar. O corpo ainda pesava, como se o colchão fino não tivesse feito nada para afastar o cansaço acumulado. O teto acima dele era de pedra cinzenta, riscada por rachaduras que lembravam veias secas. O dormitório inteiro parecia um espaço roubado do tempo: frio, úmido, mas de algum modo sagrado.
Ele respirou fundo. A lembrança ainda estava fresca. O ataque na escola, o cheiro metálico de sangue, os gritos sufocados. Tommy. O homem que transformara o isopor em armas assassinas. Seus colegas mortos, a fúria, o medo. E depois… aquela mulher. Nara Martelo, que em um único golpe esmagou a besta.
Agora, Kazuto estava ali, num lugar que parecia mais templo do que escola.
O silêncio ao redor não era realmente silêncio. O Refúgio sempre murmurava: vento entre as janelas quebradas, passos distantes em corredores intermináveis, e o soar leve de sinos pendurados em correntes. Tudo parecia observá-lo.
Ele se levantou, ainda meio sonolento, e no corredor encontrou Himari, já pronta. O cabelo dela estava preso em uma trança firme, os olhos brilhando com uma energia que destoava da pedra fria ao redor.
— Vamos, Kazuto. — disse ela, ajeitando a franja. — Se você se atrasar logo no primeiro dia, vão achar que você é só mais um civil perdido.
Kazuto forçou um sorriso torto. — Não sei se estou pronto para… “aula de monstros”.
Himari deu de ombros. — Já passou da hora de encarar isso.
Enquanto caminhavam, ouviram passos leves. Chen Hua se aproximava. Ele vestia o uniforme simples do Refúgio: uma túnica azul-acinzentada, com a insígnia de um lobo bordado discretamente no ombro. Seu jeito era sereno, mas os olhos tinham uma firmeza que fazia Kazuto pensar que ele sempre estava avaliando o ambiente.
— “Monstros”? — repetiu Chen Hua, rindo baixo. — Aqui todo mundo é um. Inclusive você, Kazuto.
Kazuto engoliu em seco. Ainda não sabia como reagir àquela ideia: ser chamado de monstro, de fera.
No pátio, encontraram Sora e Nariko. Sora parecia inquieto, os olhos varrendo os telhados como se esperasse perigo a qualquer momento. O vento brincava com seus cabelos curtos, e o corpo dele parecia sempre pronto para saltar. Já Nariko contrastava: encostado contra a parede, mastigava um pão duro como se nada pudesse abalá-lo.
— Então… já sabem quem vai ser o professor? — perguntou Nariko, sem parar de mastigar.
Himari balançou a cabeça. — Só disseram que é um dos Shisai.
Chen Hua cruzou os braços. — Então deve ser alguém impressionante. Talvez Hira, a do fogo… ou Naeva, a loba branca.
Sora murmurou, quase em reverência: — Ou Nara Martelo.
Kazuto gelou só de imaginar. A lembrança do martelo esmagando Tommy era impossível de apagar. — Não, não pode ser…
Foi quando a porta do salão de treinamento se abriu com um rangido grave.
Todos se voltaram, tensos.
O que entrou, porém, não foi uma muralha de músculos, nem uma figura imponente coberta de chamas ou garras. Foi… um homem magro, de meia-idade, de expressão cansada. Carregava uma vassoura de palha nas costas como se fosse uma espada ancestral.
Ele caminhava devagar, passos arrastados, mas não havia fragilidade ali. Era como se cada passo fosse pesado o bastante para ressoar. Os olhos semicerrados pareciam sonolentos, mas no fundo havia algo: um brilho calmo, quase distante, como se ele enxergasse poeira onde ninguém mais via.
Os alunos se entreolharam, confusos.
O homem parou diante deles, apoiando-se na vassoura como quem se apoia em um cajado.
— Bom dia. — disse, a voz grave mas sem emoção. — Eu sou Lau. Alguns me chamam de Faxineiro Divino.
Kazuto piscou. Esperava que fosse uma piada. Mas ninguém riu.
Lau observou o grupo em silêncio, como se pesasse cada respiração.
— Vocês… são meus alunos agora.
🧹 O Faxineiro Divino
O silêncio que se seguiu foi quase doloroso. Até que Himari, incapaz de esconder a decepção, falou:
— Espere… você é o professor?
Lau coçou o queixo, olhando para o teto como se houvesse pó acumulado lá. — Sim. A não ser que prefiram aprender sozinhos e morrer cedo.
Nariko riu curto. — Mas você é… um faxineiro.
O olhar de Lau se ergueu. Não havia raiva. Não havia frieza. Apenas peso. Um olhar que atravessava. Nariko engoliu em seco, o pão quase preso na garganta.
— A sujeira mata mais rápido. — respondeu Lau. — Poeira no coração. Impureza na alma. A fera começa aí. Eu varro. Eu selo. Eu ensino vocês a não apodrecerem por dentro.
Chen Hua manteve a postura, mas seus olhos estavam tensos. — Mas… você é um dos Shisai, não é?
Lau assentiu lentamente. — O décimo-segundo.
Kazuto sentiu a espinha gelar. Aquela figura simples, com ares de zelador cansado, estava no mesmo círculo de lendas que Nara Martelo.
Sora falou pela primeira vez, hesitante: — Então você vai nos ensinar a lutar?
Lau girou a vassoura, apoiando-a no chão com firmeza.
— Lutar? — sorriu pela primeira vez. Não era um sorriso alegre, mas irônico, quase melancólico. — Não, crianças. O mundo já está cheio de guerreiros. Eu vou ensinar vocês a limpar.
Himari franziu a testa. — Limpar o quê?
Lau caminhou até o centro da sala. Com a ponta da vassoura, desenhou um círculo no pó do chão.
— A sujeira dentro de vocês. O instinto que quer tomar forma. O Feralis é fera, e a fera se alimenta do que sobra no coração: raiva, medo, inveja. Se não aprenderem a varrer isso… vão ser consumidos.
Ele ergueu a cabeça, fitando cada um.
— Minha aula não é sobre matar feras lá fora. É sobre não se tornarem uma.
🌑 O Peso da Revelação
O grupo silenciou. Até Nariko, sempre sarcástico, engoliu as palavras.
— Eu… achei que ia aprender a lançar chamas ou cortar pedras. — murmurou.
Lau não piscou. — Se é só isso que deseja, peça transferência. Aqui vocês vão aprender a sobreviver mais do que um mês.
A palavra “sobreviver” soou fundo para Kazuto. Desde Tommy, era a única palavra que ressoava.
Himari fechou os punhos. — Então… o senhor vai ser nosso professor mesmo? Não é só disfarce?
Lau suspirou. — Vocês não entendem. Entre os Shisai, eu sou o mais adequado para iniciantes. Os outros quebrariam vocês no primeiro dia. Eu, ao menos, deixo vocês respirarem enquanto aprendem.
Ele ergueu a vassoura e a colocou no ombro. Virou-se calmamente para a porta.
— Agora me sigam. A lição começa fora deste salão.
— Fora? — Chen Hua franziu a testa. — Onde?
— No pátio de treinamento? — arriscou Sora.
Lau balançou a cabeça. — Não. Na rua de trás. Poeira acumulada demais lá.
Himari suspirou alto, frustrada. — Ele tá falando sério…
Kazuto, porém, não conseguia rir. Cada palavra parecia carregada de algo maior, como se o simples ato de “varrer poeira” fosse, de fato, varrer algo dentro da alma.
Enquanto seguiam o professor pelos corredores frios, Kazuto sentia crescer dentro de si uma estranha desconfiança:
Talvez… a vassoura fosse mais perigosa que qualquer espada.
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