A rua parecia diferente naquela noite.

    Kazuto seguia alguns passos atrás de Nara, e cada barulho ecoava mais do que deveria — o sopro frio do vento, o arrastar seco de uma sacola plástica presa em uma grade, o ruído distante de um carro que passava e se perdia.

    Era como se Tóquio tivesse se tornado um lugar estranho depois do massacre.

    Ele olhava para as costas de Nara, largas, firmes, e pensava em como tudo havia mudado em questão de horas. Ontem, ele era apenas mais um estudante qualquer. Hoje, caminhava atrás de uma mulher que matara um monstro humano com as próprias mãos, como se esmagasse um inseto.

    A mochila balançava em seu ombro, leve demais para a sensação de peso que trazia. Dentro, só algumas roupas, livros e cadernos que agora pareciam inúteis. Quem se importava com provas de matemática quando havia gente capaz de transformar o próprio corpo em espinhos assassinos?

    “Minha vida… acabou de virar de cabeça para baixo. E essa mulher… quem ela realmente é?”

    O silêncio entre eles era denso. Apenas o som ritmado das botas de Nara batendo contra o asfalto quebrava a monotonia. Havia firmeza em cada passo, como se ela nunca hesitasse, como se o mundo obedecesse ao compasso dos pés dela.

    Kazuto não sabia se sentia segurança ou medo.

    O carro de Nara

    Chegaram a uma esquina pouco iluminada, onde um carro preto os esperava. Era um modelo antigo, robusto, com pintura fosca marcada por arranhões. Havia a sensação de que aquele veículo já vira coisas demais, como um guerreiro que sobreviveu a batalhas e agora carregava cicatrizes.

    Nara destravou a porta com um movimento seco e olhou para ele.

    — Entre.

    A voz não era um pedido.

    Kazuto obedeceu sem protestar.

    O interior tinha cheiro de couro velho, misturado com o aroma metálico de óleo e pólvora. No banco de trás, repousavam armas. Algumas, ele reconhecia: espadas, uma corrente grossa, um par de tonfas de metal. Outras, no entanto, eram estranhas — lâminas curvas que pareciam ter sido feitas para cortar não carne, mas algo além.

    Ele sentiu um calafrio.

    Nara assumiu o volante. O carro rugiu como um animal desperto, e logo estavam em movimento.

    A conversa no carro

    Por longos minutos, o único som foi o motor grave, misturado com o farfalhar das ruas que ficavam para trás.

    Kazuto olhava pela janela: as luzes da cidade passavam como rios de neon, mas logo começaram a rarear. O coração dele batia rápido, como se cada piscada do semáforo fosse um lembrete de que ele não voltaria a ver nada daquilo do mesmo jeito.

    Por fim, ele quebrou o silêncio.

    — Esse… Refúgio. O que é, exatamente?

    Nara não desviou os olhos da estrada.

    — É um lar. Para os que despertaram o Feralis e não têm para onde ir.

    Fez uma pausa, e a forma como a boca dela se contraiu deixou claro que a palavra “lar” pesava demais.

    — Mas não se engane. Lá não há paz. Você vai treinar. Vai sangrar. Vai entender o que significa carregar uma fera dentro de si.

    Kazuto abaixou os olhos. Suas mãos tremiam discretamente.

    A lembrança de Tommy se erguendo na sala, espinhos brotando como lanças, gritos cortando o ar… tudo voltou em uma onda de calor e frio ao mesmo tempo.

    Ele se recordava também do instante em que reagira — os espinhos se despedaçando diante dele, sua pele estranha, a força que não era dele.

    Aquilo ainda queimava dentro do peito.

    — E se eu… não quiser lutar? — perguntou, num fio de voz.

    Nara apertou os lábios, o maxilar marcado sob a luz fraca do painel.

    — Então sua fera lutará por você. Contra você.

    As palavras saíram como um veredicto.

    — A Animalis não aceita ignorância. Ou você a domina, ou ela devora quem você é.

    Kazuto engoliu em seco. Sua garganta estava seca, como se tivesse engolido areia.

    A estrada

    A cidade logo se perdeu no retrovisor.

    Entraram em rodovias menos movimentadas, ladeadas por fábricas abandonadas, terrenos baldios e, pouco a pouco, por trechos de vegetação. As luzes artificiais se tornaram raras. O carro iluminava apenas um túnel estreito de estrada à frente; todo o resto era engolido pela escuridão.

    Kazuto sentia a mudança como se atravessasse um limiar invisível: deixava para trás o mundo que conhecia, adentrando outro onde as regras eram diferentes.

    — E você? — perguntou, hesitante. — Como… despertou?

    Nara ficou em silêncio por tempo demais. Kazuto pensou que ela o ignoraria.

    Mas, então, a resposta veio, baixa, quase indiferente.

    — Eu tinha a sua idade. Meu vilarejo foi atacado por um usuário enlouquecido de Tórrida. Ele queimou tudo. Pessoas. Casas. Até o chão.

    As mãos dela apertaram o volante.

    — Quando percebi, estava em cima dele. Meus punhos já não eram só meus. Era a primeira vez que vi sangue escorrer pelas minhas mãos.

    A frieza da voz escondia algo mais profundo. Não havia dor explícita, mas havia cicatrizes que não se fechavam.

    — E conseguiu… controlar? — Kazuto arriscou.

    Nara soltou um riso curto, áspero, sem alegria.

    — Controle é uma palavra bonita. Aprendi a usar. Aprendi a matar com ele. Mas domar…? Talvez ninguém consiga.

    Kazuto desviou o olhar para fora. As árvores passavam em sombras rápidas. O som dos insetos se misturava ao rugido distante de animais noturnos.

    A colina

    De repente, o carro desacelerou. Nara encostou no acostamento de uma estrada estreita, envolta em neblina.

    — Por que paramos? — Kazuto perguntou, inquieto.

    Ela não respondeu. Apenas saiu, batendo a porta.

    Depois de um instante de hesitação, ele seguiu.

    Subiram alguns metros pela encosta até que a floresta se abriu, revelando uma vista que tirou o fôlego de Kazuto.

    No horizonte, entre montanhas cobertas de névoa, erguia-se uma construção imensa. Parecia um castelo esquecido pelo tempo: muralhas cobertas de musgo, torres quebradas que apontavam para o céu, e janelas que brilhavam com uma luz azulada.

    Não era apenas um prédio. Era uma presença.

    Kazuto sentiu os pelos da nuca se arrepiarem.

    — Lá está — disse Nara, a voz carregada de uma solenidade estranha. — O Refúgio da Lua Calada.

    Kazuto prendeu a respiração. O nome soava como um eco, como se as montanhas o repetissem.

    — Eu… vou morar lá? — a pergunta escapou, ingênua, quase infantil.

    Nara virou-se para ele. A lua iluminava seu rosto marcado, seus olhos duros.

    — Vai viver. Ou vai morrer. Tudo depende de você.

    As palavras caíram sobre ele como uma pedra.

    Kazuto ficou em silêncio, encarando a construção. Sentia como se olhasse para o portão de outro mundo, um caminho sem volta.

    Nara retornou ao carro.

    — Vamos. A noite ainda é longa.

    Kazuto entrou devagar. Suas mãos tremiam de novo.

    O carro retomou a estrada, descendo pela colina em direção ao Refúgio.

    O presságio

    Kazuto encostou a cabeça no vidro e fechou os olhos por um instante, tentando respirar fundo.

    Mas não havia paz.

    O silêncio da noite foi quebrado por um som distante, grave, como o rugido de algo que não era humano, ecoando pelas montanhas.

    Kazuto sentiu o coração gelar.

    E entendeu, sem precisar de explicações, que sua vida comum havia realmente acabado.

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