Capítulo 4: O Caminho que se Abre
O céu ainda estava cinzento quando Kazuto voltou para casa.
O som distante das sirenes ecoava pela cidade, e embora os noticiários não dissessem abertamente, todo mundo sabia: a tragédia da escola havia sido causada por mais uma daquelas “aberrações”.
Kazuto mal conseguia pensar. As imagens do sangue, dos gritos e do rosto de Tommy ainda estavam queimadas em sua mente.
Ele lembrava da sensação estranha correndo em seu corpo, daquela energia que havia surgido do nada quando destruiu os espinhos de isopor.
Não sabia explicar. Não queria explicar.
Abriu a porta de casa.
O silêncio da sala o envolveu como um cobertor pesado. Seus pais trabalhavam até tarde; não havia ninguém para perguntar o que tinha acontecido.
Ele jogou a mochila no canto e se atirou no sofá, encarando o teto.
“O que foi aquilo…? Eu devia estar morto. Mas… meu corpo se mexeu sozinho. Aquilo era… Feralis?”
Antes que pudesse mergulhar mais fundo nas próprias dúvidas, ouviu três batidas fortes na porta. TOC. TOC. TOC.
O coração disparou.
Lentamente, levantou-se e abriu a porta.
Do outro lado estava ela.
Nara Martelo.
A mulher que, horas antes, havia arrancado a cabeça de Tommy como se fosse nada. De perto, era ainda mais imponente: alta, de músculos densos, cabelos pretos presos em trança grossa. Os olhos — de um castanho profundo — transmitiam autoridade, como os de alguém que carregava o peso de centenas de decisões nas costas.
Ela não sorriu.
— Kazuto, certo?
Ele congelou.
— S-sim…
— Abra caminho. Nós precisamos conversar.
Sem esperar permissão, ela entrou. Suas botas pesadas bateram no chão de madeira como marteladas. Nara parou no meio da sala, avaliando o ambiente simples e arrumado.
Kazuto fechou a porta atrás dela, nervoso.
— Você… você é aquela mulher da escola. A que me salvou…
— Salvar não é bem a palavra. Eliminei uma ameaça. Você apenas estava vivo no processo.
A frieza dela o cortou como faca. Ele apertou os punhos.
— Então… por que está aqui?
Ela o encarou por um instante. Depois, soltou um suspiro pesado.
— Porque você despertou.
A palavra caiu como um trovão na mente de Kazuto.
— D… despertou?
— Seu Feralis. Ele emergiu hoje, quando você se defendeu dos espinhos daquele desgraçado. E isso muda tudo.
Kazuto deu um passo para trás, como se quisesse fugir da responsabilidade que vinha junto com aquelas palavras.
— Eu não pedi por isso. Eu não quero isso! Eu só quero minha vida normal de volta!
Os olhos de Nara brilharam, duros, mas não cruéis.
— Você acha que tem escolha? Olhe para a cidade. Olhe para a sua escola. Crianças foram massacradas. Professores mortos. Quantos mais você acha que vão morrer até entender que esse mundo não é mais “normal”?
O silêncio foi sufocante. Kazuto mordeu o lábio, tentando segurar o nó na garganta.
— Eu não estou aqui para recrutar você à força. Mas entenda: agora que despertou, você atrai perigo. Se ficar sozinho, será caçado. Se negar sua própria fera… ela vai devorar você por dentro.
Kazuto baixou os olhos.
— Então… o que você quer que eu faça?
Ela cruzou os braços, firme.
— Venha comigo. Há um lugar — chamamos de Refúgio da Lua Calada. É uma escola, uma casa, um templo, tudo ao mesmo tempo. Lá, jovens e adultos que despertaram aprendem a controlar o Feralis antes que sejam destruídos por ele.
Kazuto arregalou os olhos.
— Uma… escola?
— Escola, abrigo, campo de treino. O nome não importa. O que importa é que você não pode mais viver como se nada tivesse acontecido.
Ele hesitou. Pensou nos pais. Pensou na vida que levava até ontem, cheia de provas escolares, de preocupações pequenas. Tudo parecia tão distante agora.
— E meus pais? Meus amigos… o que eu vou dizer?
O olhar de Nara suavizou, só um pouco.
— Seus pais continuarão sua vida. Seus amigos… você já viu o que aconteceu com eles hoje.
Um silêncio pesado encheu a sala. Kazuto sentiu o peso da realidade esmagando seu peito.
Ela deu um passo à frente.
— Eu não vou mentir: não será fácil. Mas você tem duas opções, Kazuto. Fechar os olhos, negar o que é, e morrer cedo. Ou encarar sua fera, aprender a domá-la, e talvez salvar outros que ainda não entenderam o que são.
Ela estendeu a mão.
Kazuto encarou aqueles dedos fortes, calejados, marcados pela luta. Sentiu o coração disparar.
“Se eu aceitar… minha vida nunca mais será a mesma. Mas… se eu recusar… quanto tempo até que algo como Tommy apareça de novo? Quanto tempo até que eu morra… ou pior, até que alguém que eu amo morra?”
Engoliu em seco. Devagar, ergueu a mão e a colocou sobre a dela.
Ela assentiu, firme.
— Bom garoto. Arrume suas coisas. Você parte hoje.
Kazuto arregalou os olhos.
— Hoje?!
— O inimigo não espera, Kazuto. Se quiser sobreviver, precisa começar agora.
Ele olhou para o quarto, para as fotos na parede, para os objetos que contavam a história da sua infância. Tudo parecia tão distante agora.
Respirou fundo.
— Então… vamos.
Ela abriu um pequeno sorriso — raro, mas verdadeiro.
— Coragem. Você vai precisar.
Ela se virou e saiu pela porta, esperando que ele a seguisse.
Kazuto pegou sua mochila caída no canto da sala, jogou dentro algumas roupas e um caderno rabiscado. Antes de sair, lançou um último olhar para sua casa.
O lar que nunca mais seria o mesmo.
Fechou a porta atrás de si.
Do lado de fora, Nara esperava, imponente, com o olhar voltado para o horizonte.
O vento frio da noite soprou contra o rosto de Kazuto. Um arrepio percorreu sua espinha — não apenas pelo frio, mas pela sensação de que um novo mundo se abria diante dele.
Um mundo de feras, sangue e instintos.
E ele, gostasse ou não, fazia parte dele agora.
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