Capítulo 0: Passado (1)
Ba-dump… Ba-dump… Ônix enxergava apenas a escuridão. O som de sua respiração ecoava em sua mente enquanto sentia seu corpo ser levado pelo ar, tão leve quanto uma folha.
Começou a sentir o ar frio o envolver. Suas costas entraram em contato com algo gelado como o metal, fazendo-o abrir os olhos lentamente.
Sem que percebesse, estava deitado, encarando o teto. Ainda estava confuso; a escolha de ressurreição que lhe foi entregada não era apenas um sonho? Ele realmente ressuscitou?
Começou a levantar-se, apoiando-se no chão de madeira. Os olhos estavam fixos no nada; sua mente estava em branco, como se estivesse perdido, vagando sem rumo.
Ele demorou para perceber o mais importante detalhe: silêncio. Não havia barulho algum. Olhou de um lado para o outro, mas encontrou somente os móveis da casa.
“Mãe… Onde está minha mãe?”
Ao olhar para a mesa, por um momento, uma ilusão preencheu seus olhos: a casa estava em chamas, os telhados caíam imbuídos com o fogo que os envolvia, enquanto o cheiro de gasolina impregnava suas narinas.
Uma súbita dor surgiu em sua cabeça, fazendo-o fechar os olhos enquanto suas mãos pousavam suavemente no local dolorido. Pouco a pouco, a dor foi ficando pior.
Gritos começaram a surgir em sua mente; barulhos de tiros estavam tão presentes quanto a escuridão. Seu coração, de pouco a pouco, acumulou uma dor aguda, revivendo suas dores.
Ônix curvou-se em dor, tocando sua testa no solo. O som de seus ofegantes suspiros tornou-se sua companhia, enquanto os gritos se esvaíam.
O silêncio o abraçou de novo, como se insistisse em lembrá-lo de que, por algum motivo, ele estava sozinho. Isso o machucou mais do que quaisquer más lembranças.
A brisa tornou-se violenta, rebatendo-se em seu corpo enquanto girava em círculos diante dele. Um redemoinho em tom roxo surgiu de repente, roubando a atenção para si.
Explodiu em partículas, iluminando toda a moradia sem esforço. Pouco depois, juntou-se bruscamente, tornando-se uma admirável janela de sistema.
Olhos afiados encaravam Ônix impiedosamente. O lábio, fechado e torcido, transbordava o desgosto em vê-lo, mas substituiu-se por um singelo sorriso diabólico pouco depois.
Essa coisa abriu sua boca em um suspiro gélido. Ligeiros risos vazaram de lá, como se estivesse satisfeito com o que estava prestes a acontecer com o garoto.
S3
Olá, humano.
Sua voz ecoou pela casa, seca como uma folha morta. Ônix sentiu seu coração saltar com as palavras daquela coisa, acompanhado pelo arregalar de seus olhos. O que era aquilo? Outra divindade? Não sabia responder.
S3
Seus pais re-cu-sa-ram a oferta de reviver contigo.
Um corte atingiu seu coração. Não conseguia pensar em muita coisa, mas isso explicava para ele o silêncio em sua casa. Ele foi abandonado por sua própria família?
Levantou sua cabeça, fitando aquele sistema com um olhar desacreditado. A boca abriu-se, mas nenhuma palavra saiu de lá. Um tornado estava em sua mente.
“Meus pais me abandonaram? Eu estou sozinho? Por quê?”
Incontáveis perguntas, além dessas, preencheram sua mente. O sistema o encarava com um enorme sorriso em seu rosto, os olhos apertando em satisfação.
O vazio tomou conta de sua mente por um momento. Imagens de sua mãe e pai sorrindo vagavam em sua imaginação. Pouco depois, ele concluiu: isso é mentira. Mas ainda tinha suas dúvidas.
— Você está falando a verdade…?
O sistema surpreendeu-se por um momento. O sorriso desapareceu e o prazer em seu olhar também esvaiu-se. Olhou Ônix fixamente por alguns momentos, mas o maldito sorriso retornou logo após.
Começou a gargalhar sem controle. Esses risos ecoavam pela casa como um coro. De pouco a pouco, Ônix estava começando a aceitar a verdade à sua frente.
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Ah, então você ainda tem dúvidas? Faço questão de mostrar a você até o nome de seus pais. Leia com atenção, moleque:
Mãe Biológica: Lethe Mortana.
Causa da Morte: Morte no parto.
Pai Biológico: Derelicto Relinquo.
Causa da Morte: Afogamento.
Mãe Adotiva: Isabella Ferreira.
Causa da Morte: Assassinato.
Pai Adotivo: Nathan Fernandes.
Causa da Morte: Assassinato.
Os olhos de Ônix tremiam a cada palavra que lia. “Mentira… Por favor, me diz que é tudo mentira…” Sua mente divagava com as boas memórias, mas nada disso importava agora.
O sistema permaneceu em silêncio por um breve momento. Seus olhos, agora, não eram mais impiedosos, eram vazios e robóticos, fitando o jogador com os olhos lacrimejantes à sua frente.
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Por fim, não há mensagem alguma deixada por seus pais.
Esse foi o baque final. Sem sequer mensagens, o abandono estava completo. Lágrimas começaram a escorrer do rosto de Ônix, caindo como chuva no solo.
O sistema virou seu rosto, evitando olhar para o garoto abandonado. Ele desapareceu de pouco a pouco, substituindo seu corpo por partículas brilhantes.
Ônix tapou os olhos, mas as lágrimas não paravam de sair. Por quê? Apenas, por quê? Não há resposta palpável e nem lógica em seus pais o terem abandonado.
Seu passado começou a invadir sua mente, pesando seu corpo e esmagando seu coração. Sua visão começou a escurecer, levando à inconsciência em seguida. Como se não bastasse, ele, agora, está sonhando com seu passado.
O ano era 1997. Não havia nuvem alguma no céu noturno, mas estrelas estavam presentes em abundância. Neste ano, uma criança indesejada estava no ventre de sua mãe.
O pai da criança se chamava “Derelicto”. Para ele, esse bebê foi um erro e não deveria nascer. A vida financeira do casal já era difícil apenas com eles; com uma criança, seria ainda mais.
A mãe, Lethe, era fielmente contra essa decisão. Para ela, não existe “coincidência”, existe acontecimentos. O bebê veio como uma bênção dos céus e não deveria morrer.
Duas ideias contrárias colidiram como fogo e água, o que fez o ambiente pesar como chumbo. A luta entre o amor de uma mãe e a “razão” de um pai não resultaria em algo sem consequências.
Ela estava sentada no sofá. Seu longo cabelo ondulado, junto às sobrancelhas, tinha um tom forte em vermelho; porém, seus olhos eram escuros e a pele morena.
O homem estava em pé. Cabelo cacheado, pele morena e a baixa altura davam personalidade à sua aparência. Estava em pé, diante de sua esposa.
— Ele não foi planejado, Lethe, você sabe disso! Não temos condições nem para nos mantermos direito, quanto mais uma criança!
O marido encarava sua esposa incrédulo, questionando-se como ela não pensava da mesma maneira. Seus olhos afiados olhavam com hostilidade para quem o amava.
Sua esposa, porém, olhava-o compassiva, os olhos serenos como o mar, como se estivesse vendo uma criança inocente gritar contra a voz do amor.
Antes de respondê-lo, ela acariciou sua própria barriga, sentindo algo deixando seu corpo mais leve, abraçando-a em aconchego. Seu filho, antes mesmo de nascer, já amava sua mãe.
— Tenho certeza de que não foi um acidente, ele veio na hora certa. Você pode não entender por não estar no meu corpo, amor, mas… Eu sinto um universo inteiro vindo dessa criança.
Derelicto abriu sua boca para falar, mas interrompeu-se ao ver os olhos de sua esposa. Apenas por um momento, o universo habitou em seu olhar, observando com carinho seus olhos hostis.
— Obstáculos não existem para uma mãe. Ele vai sim nascer.
Ele ainda não queria aceitar, mas não havia nada a ser feito perante o maior amor que existe. Suspirou em frustração, olhando para baixo, pessimista em relação ao futuro que virá.
Lethe levantou-se do sofá, caminhando em direção ao seu esposo em passos lentos. O abraçou, envolvendo-o com carinho e confiança além dos limites.
— Confie em mim.
Segurou sua mão gentilmente, levando-a para sua barriga. Ao acariciar a barriga de sua esposa, de pouco a pouco, sua mão foi encharcando-se com calor.
De repente, tudo tornou-se escuro, extinguindo quaisquer vestígios de luz. Estava sob o nada, até o chão havia desaparecido sem deixar um único rastro.
Não encontrou nada, mesmo olhando para todos os cantos. Pouco a pouco, pequenas pontas de luz começaram a envolver a escuridão, como estrelas no céu.
Ao olhar para cima, dois olhos o observavam. Eram tão escuros quanto o abismo anterior, mas estrelas preenchiam aquele olhar divino que o fitava com carinho. Estes eram os olhos universais.
— Também sente o que sinto, amor? Essa criança deve nascer.
A voz de sua esposa o fez voltar a si. O calor foi de sua mão para todo o seu corpo. Um misto de emoções o envolvia. Qual era a melhor solução? Essa resposta não estava ao seu alcance.
Lágrimas involuntárias começaram a cair de seus olhos. Apoiou-os nos ombros de sua esposa, aceitando que nem sempre as melhores soluções vêm sem consequências.
— … Sinto.
Um singelo sorriso surgiu no rosto de sua amada. Ela sabia que não seria fácil, mas ficou genuinamente grata com a compreensão de seu esposo.
— Que bom, meu bem.
Três meses se passaram. Lethe estava impossibilitada de trabalhar, pois poderia ser prejudicial para sua gravidez. A situação foi ficando cada vez mais difícil a partir desse período.
Seis meses se passaram. Derelicto trabalhava de segunda a sábado, fazendo hora extra para ter um pouco mais do que ganhava no final do mês.
Sua sobrecarga era normal e justificável, mas ele nunca deixou isso ser exposto. Para ele, mostrar fraqueza nessa situação poderia ser ruim para sua amada esposa.
Nove meses se passaram. Tudo havia ido de mal a pior. As contas, o aluguel, sua esposa grávida, tudo era demais para somente uma pessoa só conseguir sustentar.
Lethe estava fraca e com fome. O dinheiro não foi o suficiente para pagar tudo o que deveria. A realidade, afiada como uma faca, mostrou sua face para o inocente casal.
Ela estava deitada em sua cama, em silêncio, com dificuldade até para falar. No fim das contas, Derelicto já sabia o resultado do que estava por vir.
“Ela está fraca… Fraca demais para dar à luz. Dizem que o parto dói muito, né…? No final das contas, eu estava certo desde o início… É tudo culpa minha.”
Estava sentado ao lado de sua esposa, divagando em pessimismo enquanto os olhos ficavam cada vez mais mortiços. Sua mão foi tocada pelo gentil carinho de Lethe, que sussurrou para ele:
— Eu acho que o bebê vai nascer em breve… Tô me sentindo tão feliz… Nossa família vai ser tão linda…
Um corte partiu seu coração ao meio. Mesmo perto da morte, sua esposa ainda sonhava com uma família ao lado de seu marido que, até agora, não a abandonou.
Lágrimas caíram nas mãos de sua amada. O final ruim para essa família era inevitável. Acariciou a mão de Lethe, sentindo seu calor que estava prestes a desaparecer.
Ele levantou-se, guardando as mãos em seus bolsos, caminhando em passos lentos para fora da casa. Lethe ouviu os vagos passos de seu marido desaparecendo pouco a pouco, deixando-a sozinha, apenas ela e seu sonho.
Lágrimas caíram como a última folha de uma árvore. No fim das contas, ninguém estaria ao seu lado em seu último momento de vida, senão seu filho prestes a nascer.
— Nossa família… Vai ser linda… Eu sei…
Murmurou para si mesma, abraçando sua barriga, sentindo o universo chorar em sua despedida que aconteceria em breve. A criança nascerá logo logo.
Fora de casa, Derelicto caminhava em passos lentos em direção a uma ponte. Nessa noite, o céu estava repleto de estrelas, mas uma estranha chuva cobria a cidade enquanto os relâmpagos pareciam sussurrar a tragédia.
No fim das contas, ele foi apenas uma vítima de uma provação. Conseguiria cuidar de alguém que, em um contexto distorcido, foi a causa para a morte de sua esposa? Essa foi uma provação que ele não conseguiu lidar.
Ele pulou da ponte. Em seus últimos momentos, os olhos de sua esposa não desapareceram de sua mente. Enquanto afundava no mar, convencia a si mesmo que viver não valia a pena sem sua amada ao seu lado.
Gritos ecoaram pela cidade, como uma sirene. Lethe lutou contra o próprio corpo para que seu filho pudesse nascer e, felizmente, ela saiu vitoriosa dessa batalha.
A filosofia dessa mãe era: nada nesse mundo é coincidência. Sua filosofia se provou verdade no momento em que seu filho veio ao mundo.
Pouco antes do ocorrido, um casal caminhava próximo de lá e, ao ouvir os gritos da mulher, correram até o local para ver o que estava acontecendo. Ao verem que o grito vinha da casa, hesitaram por um momento, com medo do que poderia acontecer.
Ao olharem para o céu, sentiram uma estranha sensação. Estrelas estavam aglomeradas em um só ponto, como se sinalizassem o que era o certo a se fazer.
Passando por cima de todos os seus instintos, eles entraram na casa, correndo em direção ao grito desesperado da mãe que lutava para seu filho nascer.
Eles estavam diante da porta, mas, de repente, os berros desapareceram. Arrepios percorreram suas espinhas, o coração acelerado sinalizava que algo estava errado, mas era preciso seguir em frente.
O rangido da porta ecoou como um sussurro cósmico ao se abrir. Estava um pouco escuro, mas as estrelas iluminavam a mãe segurando seu filho nos braços.
Milagre. Apenas essa palavra justificava. O filho acabara de nascer, mas estava sem nenhuma sujeira ou sangue. Estava em silêncio; lágrima alguma, ou até gritos, saíam do bebê.
Lethe olhou levemente para o lado, notando a presença daquele casal. Lágrimas ainda caíam de seus olhos, mas a pouca força que lhe restou só a permitia murmurar:
— Por favor… Cuidem… Do meu bebê…
Uma estranha tristeza abraçou o coração daquele casal. Que mundo injusto; antes mesmo de um bebê nascer, já estava destinado a viver sem seus pais.
A moça, Isabella, caminhou em passos suaves em direção a Lethe enquanto lágrimas caíam como chuviscos. Ela segurou a criança com cuidado, movendo-a próxima de sua mãe.
— Olha… Este é seu filho. Ele vai crescer muito saudável e vai ter uma vida muito feliz…
Lethe moveu sua trêmula mão para o rosto de seu filho, acariciando sua macia bochecha enquanto sentia sua vida se esvair pouco a pouco. Uma de suas últimas ações antes de partir foi beijar a testa da sua criança, marcando-a com seus lábios.
— Meu filho… Meu lindo filho… Quero que seu nome seja… Ônix Arbor…
Outro milagre aconteceu. A criança reagiu a esse carinho, abrindo seus olhos, olhando fixamente para sua mãe que também fitava seu olhar.
Não havia pupila alguma, seu olhar era o completo abismo, mas estrelas preenchiam toda aquela escuridão, tornando seus olhos um céu noturno cheio de estrelas.
Ele riu gentilmente, segurando a mão de sua mãe com dificuldade enquanto movia sua testa para a dela. Lethe teve todo seu esforço recompensado nesse momento.
Ônix não pôde viver com sua mãe, mas foi sua mais especial companhia nos seus últimos momentos de vida. Seu nascimento milagroso foi a última felicidade da pessoa que mais lhe amou.
O casal pagou todo o serviço funerário. Eles cuidavam de Ônix com todo o carinho e amor possível. Isabella se sentiu tão mãe que, eventualmente, começou a amamentar a criança.
Uma vez ao ano, o casal visitava a lápide de Lethe junto de Ônix, levando flores em sua homenagem. Quando Ônix perguntou quem era, eles responderam dizendo que era sua primeira mãe, que o amou mais do que amava a vida que tinha.
Ele sentia uma estranha paz perto da lápide, como se estivesse sendo abraçado, e a intensidade mudava dependendo do quão próximo ele ficava. Foi assim que Ônix conheceu seus pais adotivos e foi separado dos seus pais biológicos.
Próximo capítulo: Passado (Parte 2)
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