Capítulo 1: Passado (2)
No ano de 2016, Ônix completou seus dezoito anos. Era dia três, em uma bela manhã do mês de junho. O céu estava tão azul que poderia ser facilmente confundido com o mar; as nuvens haviam se ausentado, dando espaço para o sol brilhar, sorrindo gentilmente para o aniversariante.
Ele ainda estava dormindo, mas, pouco a pouco, a luz do sol atravessava a janela até tocar suavemente seus olhos, alertando-o de que já era dia.
Lentamente, abriu os olhos, absorvendo a luz que o abraçava. Levantou-se, espreguiçando-se logo após, enquanto bocejava e saía da cama.
Arrumou o edredom que havia deixado bagunçado. Seu olhar ainda estava um pouco pesado, sentindo brevemente o sono que insistia em envolvê-lo.
— Vou arrumar rapidinho aqui. De noite, eu durmo…
Os olhos estavam desfocados enquanto seu corpo se movia no modo automático. Ainda estava perdido em devaneios, quase dormindo acordado.
Um passarinho pousou em sua janela, cantando para Ônix. Sua gentil canção o fez voltar a si, focando sua atenção na suave voz do passarinho.
— Já está aqui, Piz?1
Um sorriso bobo derreteu momentaneamente o rosto de Ônix, que olhava para aquele pássaro com um carinho palpável. Após arrumar sua cama, foi para a janela.
Ao abri-la, o sol abraçou seus olhos, fazendo-o mover a mão para a frente em proteção. Em seguida, o passarinho voou até sua testa, acariciando-o com a sua delicadeza.
Ônix, cuidadosamente, o acariciou de volta, massageando sua pequena cabeça. Enquanto o acariciava, o pássaro cantava, como se dissesse: feliz aniversário.
— Lembrou-se do meu aniversário, seu passarinho fofo?
O pássaro cessou seu voo, pousando suavemente à frente de Ônix, que o observava fixamente, sem piscar nem sequer uma vez. Isso permaneceu inalterado em Ônix desde seu nascimento. Seus olhos escuros abraçavam as estrelas que ali habitavam. Estes eram os olhos universais que seu pai havia visto antes de vê-lo nascer.
Pouco depois, o pássaro cantou uma última vez, voando para as árvores. Ônix observou-o voar, com um singelo sorriso em seu rosto.
— Seu carinho me foi um ótimo presente, amigo.
Respirou fundo, ainda sentindo o gentil amor daquele pássaro na testa. Fechou a janela e a tampou com uma cortina. Abriu gentilmente a porta, ainda bocejando. Começou a caminhar para o banheiro. Nesse meio tempo, notou que tudo estava estranhamente silencioso.
Todas as luzes estavam apagadas, nem mesmo uma gota de água caía da torneira da pia. Tudo ao seu redor conspirava para manter o silêncio, algo incomum em seu cotidiano.
Fechou os olhos, acariciando o lacrimejo que ali se formava. Sem que percebesse, olhares em tom ciano, escarlate e lilás acompanhavam cada um de seus passos.
Ele abriu a porta do banheiro e entrou, com os olhos semiabertos, pegando sua escova. Enquanto escovava os dentes, refletia sobre o silêncio que envolvia sua casa.
“Silencioso hoje, né…? Será que a mãe e o pai saíram para algum lugar? Acho que eu não deveria ter acordado tão cedo…”
Saiu do banheiro assim que terminou de escovar. Seus olhos ainda estavam semiabertos de cansaço, mas seu modo automático o levava para a cozinha.
“Acho que vou tomar uma água e voltar a dormir…”
Seus passos ecoavam pela escuridão e pelo silêncio. Quanto mais se aproximava, mais aqueles olhares brilhavam de ansiedade, aguardando com atenção sua chegada.
Ao chegar na cozinha, seus dedos tocaram gentilmente o interruptor de luz, pressionando-o até que seu tick ecoasse pela moradia, trazendo a luz consigo.
— SURPRESA!!!
O pequeno estrondo do lança-confetes ecoou como pipoca estourando. O som do apito “língua de sogra” espalhou-se com a mesma intensidade, enquanto os confetes abraçavam seu corpo.
O grito em coral o assustou momentaneamente, mas seu susto foi substituído por breves risos involuntários que surgiam de seus lábios.
— O que vocês estão fazendo?
Uma garota, um pouco mais alta que ele, assoprava com ímpeto seu apito “língua de sogra”. Os olhos lilás brilhavam tanto quanto a lâmpada; seu cabelo prateado era ondulado e longo, tornando-a ainda mais bela. Celeste.
Saito estava com um pequeno chapéu de aniversariante em sua cabeça. Ainda sussurrava “surpresa…” enquanto girava o lança-confetes.
Waraioni exibia um sorriso caloroso em seu rosto. Segurava uma placa com a inscrição “feliz aniversário” na mão esquerda enquanto girava o lança-confetes com a direita.
Isabella fitava seu filho adotivo com carinho. Seus olhos eram tão cianos quanto um mar limpo; seu cabelo, da mesma cor, caía até o ombro. Um sorriso caloroso cobria seu rosto.
Seu pai adotivo chamava-se Nathan. Seus olhos eram verdes, e seu cabelo cacheado, assim como o de seu filho, combinava com sua estatura. Ele tinha a mesma altura que sua esposa, e um singelo sorriso também se fazia presente nele.
Celeste o abraçou gentilmente. O calor desse abraço envolveu o casal com carinho, enquanto seus sorrisos se mostravam mais aconchegantes que o inverno noturno.
— Feliz aniversário, amor.
Ele a abraçou de volta, tocando com a mão a testa de sua amada. Pouco depois, ela tocou suavemente o queixo de Ônix, fechou os olhos e o beijou.
Aplausos e assobios invadiram o ambiente. Saito ainda lançava alguns confetes enquanto ria discretamente; Isabella olhava para seu filho com orgulho e honra.
— Meu menino cresceu tão rápido…
Ônix acariciou sutilmente o cabelo de sua amada, fitando os olhos lilás que ela possuía. Enquanto a acariciava com a testa, murmurou para que somente ela pudesse ouvir:
— Você é meu maior presente, sabia?
Ela sorriu gentilmente; seus olhos brilhavam de satisfação, como se dissessem: você que é. Celeste segurou a mão dele, guiando-o para sua mesa reservada.
Em seguida, pegou um chapéu de aniversariante que estava sobre a mesa e o colocou gentilmente sobre a cabeça de seu amado, sentando-se ao lado dele.
Waraioni, ao vê-los sentar-se em suas mesas, associou aquilo ao bolo que estava prestes a chegar. Um sorriso satisfeito surgiu em seu rosto enquanto ele caminhava para sua mesa.
— Finalmente, a hora da comida!
Sua frase misturou-se com os risos que acompanhavam sua felicidade. Saito, seu irmão, sentou-se ao seu lado, batendo na mesa em um ritmo sincronizado para se acalmar. Isabella olhou para seu marido com ternura, apontando para a geladeira, e sussurrou:
— Pode pegar para nós, meu bem?
Nathan levantou-se, caminhando para a geladeira. Ao abri-la, lá estava o bolo, coberto por um pote transparente que o protegia de qualquer coisa.
Ele o pegou cuidadosamente, retirando-o em um ritmo lento. O bolo não era muito grande, mas sua aparência era mais impactante do que a palavra “agradável” poderia expressar.
O bolo apresentava um tom escuro, mas não excessivamente, e brilhos prateados o cobriam, conferindo-lhe uma aparência cósmica, semelhante ao universo que habitava os olhos de Ônix.
Nathan colocou-o na mesa e afastou-se em seguida. Todos, exceto Ônix, levantaram-se de suas mesas, dirigindo-se para o lado de Nathan logo após. Logo, as palmas se iniciaram, sincronizadas. Não demorou muito para que a clássica canção surgisse:
“Parabéns pra você, nesta data querida; muita felicidade, muitos anos de vida. Viva!”
Ônix riu sem jeito, um pouco envergonhado com toda a atenção que recebia, mas o canto em coral que se seguiu o deixou ainda mais constrangido junto com sua amada:
— Com quem será… com quem será… com quem será que o Ônix vai se casar? Vai depender… vai depender… vai depender se Celeste vai querer.
Ela arrumou seu cabelo de forma desajeitada, evitando contato visual, enquanto seu rosto corava. O coração pulsava aceleradamente, mas ela não hesitou em se armar de coragem para dizer:
— É claro que eu quero…
Ônix corou, num misto de vergonha e felicidade. Um súbito silêncio envolveu o lugar, mas o grito alegre de Waraioni foi o primeiro a ecoar:
— VIVA!!!
Lançou diversos confetes sobre Celeste, que tampou seu rosto corado. Mais confetes vieram dos demais participantes, enquanto todos gritavam “viva”.
Risadas fofas e alegres emanavam de todos. Pouco depois, um novo e súbito silêncio instalou-se, como se o presente final, ainda mais importante que o bolo, estivesse prestes a ser apresentado.
Isabella foi até uma gaveta e a abriu, fitando uma pequena caixa guardada ali. Pegou-a com cuidado, como se estivesse segurando um bebê.
Ela a colocou gentilmente sobre a mesa, perto de Ônix. Sua caixa era escura, com alguns brilhos que a envolviam por completo. Isabella afastou-se, fitando seu filho com um singelo sorriso.
— Filho, estávamos nos preparando para esse dia durante muito tempo. Todos nós juntamos muito esforço para te dar esse presente. Pode abrir, por favor?
Ônix inclinou a cabeça com confusão, no primeiro momento. Olhou para a caixa com estranheza, mas sentiu seu coração derreter em alegria antes mesmo de abri-la.
Pegou a caixa com cuidado, fitando-a por alguns instantes, e começou a abri-la com cautela. Todos observavam ansiosos para ver sua reação.
De pouco a pouco, o presente revelou-se como três pingentes relicários dourados, em formato de coração, grudados horizontalmente uns aos outros.
Um pouco acima, havia um pequeno botão também dourado, convidando-o a apertá-lo. Ele olhou discretamente para sua mãe, que acenou suavemente com a cabeça.
Ao pressioná-lo, os três corações começaram a se abrir, um por um. No primeiro, havia uma foto dele quando bebê, com sua mãe e seu pai segurando-o enquanto sorriam. Um pouco abaixo dessa imagem, estava escrito “Ônix”, em tom vermelho.
O segundo coração abriu-se. Nele, ele estava junto, juntamente com Saito e Waraioni, que sorriam enquanto bagunçavam seu cabelo. Também, um pouco abaixo, estava escrito “nós”.
Por fim, o terceiro coração abriu-se. Nele, havia uma foto de um beijo entre Ônix e Celeste e, logo abaixo, a última mensagem: te amamos.
Um confortável calor subiu em seu corpo, abraçando seu coração. Perdeu-se em devaneios, pensando: “eu mereço tudo isso?”, num misto de gratidão.
Seu rosto foi o que mais sentiu esse calor amável e, sem que percebesse, lágrimas caíam como chuva de seus olhos. Pela primeira vez, todos o viram chorar de felicidade.
Correram para Ônix em seguida, abraçando-o enquanto riam de satisfação ao ver sua alegria. Dentre todos, Celeste foi a que mais se emocionou, quase chorando também.
Ela pegou o celular de seu bolso e o colocou em um modo no qual uma foto é tirada automaticamente em cinco segundos. Logo depois, afastou-o para que todos aparecessem e disse:
— Digam “X”!
E então, todos gritaram “X” enquanto sorrisos se espalhavam pelos rostos. A tarde e a manhã daquele abençoado dia foram tão memoráveis que todos desejaram que durassem para sempre.
A comemoração acabou somente à tarde, aproximadamente uma hora antes dos garotos irem para a escola. Waraioni acariciava a própria barriga; seus olhos fechados fixavam o teto e sua boca estava manchada de bolo.
Saito não estava tão cheio, tendo comido apenas o que seu corpo precisava. Celeste comeu bastante, mas estava longe de se sentir saciada.
Ônix sentia-se saciado. Havia poucos resquícios do bolo em seus lábios, mas sua amada fez questão de limpá-lo gentilmente com um lenço.
Saito pegou seu celular e o ligou, olhando fixamente para o horário que, naquele momento, marcava 16:02. Seus olhos perderam-se na informação, como se tentasse lembrar de algo importante.
“Ah, é… a escola.”
Desligou o celular, olhando para o teto em seguida, enquanto os lábios se torciam em desaprovação. A preguiça começou a envolver seu corpo junto com a sensação de saciedade.
“Merda, não quero ir… Será que, se eu disser que tropecei e perdi de vista a vontade de ir para a aula, consigo faltar? Acho que não, né? Mamãe vai me encher de porrada até eu encontrar a vontade… porcaria.”
Levantou-se da cadeira, colocando-a debaixo da mesa em seguida. Isabella notou esse sutil movimento do rapaz; seus instintos a alertaram de sua intenção.
— Já tá indo, garoto?
Saito olhou para ela, perguntando-se: “Eita, ela percebeu?” enquanto mantinha uma expressão neutra. Acenou para Isabella e respondeu:
— Tenho que ir; já, já é a aula. Tô morrendo de preguiça, mas se eu faltar, minha mãe me mata.
Ela riu discretamente, achando fofo a obediência do garoto, e acenou suavemente ao se despedir do amigo de seu filho. Saito caminhou até seu irmão em passos lentos e pesados, dando dois toques em sua testa enquanto o via suspirar com dificuldade.
— Bora, já deu a hora de ir embora.
Waraioni abriu os olhos aos poucos, encontrando dificuldade até para falar. Qualquer movimento fazia sua barriga doer por excesso.
— Já…? Pô, espera aí então… Acho que fiquei gravido, igual à Virgem Maria.
— Ah, é? Deixa a mamãe saber que você quer faltar só porque comeu demais. Levanta daí, se não eu te dou uma pisa e ainda te deixo para trás.
— Tá, tá, já tô levantando…
Levantou-se, apoiando-se com dificuldade na cadeira, enquanto sentia as costas estalarem. Saito acenou para Ônix, dizendo “já tô indo”, enquanto ajudava seu irmão a andar.
Ônix respondeu: “Falou!”, acenando para ele. Celeste observava fixamente os dois irem embora, tentando se lembrar de algo muito importante.
Franziu as sobrancelhas, mas nada a fazia recordar. Sua testa começou a esquentar; sua aura de dúvida era tão palpável que parecia que fumaça escapava de suas orelhas.
— Esqueceu de alguma coisa, amor?
O questionamento de Ônix a fez voltar a si. Ainda um pouco perdida, desistiu de tentar se lembrar, aceitando que era inútil. Em seguida, perguntou:
— Bebê, cê sabe que horas são?
Ônix pensou por um momento, murmurou “hum…” enquanto tentava adivinhar o horário. Ao lembrar-se de Saito e Waraioni se retirando, chutou a hora correta:
— Acho que já são quatro horas, né? Por isso eles estão saindo cedo.
— Ah, entendi, quatro horas…
Em sua mente, as palavras “quatro horas” ecoaram como um grito num túnel. Sua expressão passou de reflexiva para surpresa e medo num piscar de olhos.
— QUATRO HORAS?
Apertou as próprias bochechas, ansiosa, questionando por que não tinha prestado atenção nesse detalhe antes. Ônix tampou ligeiramente os ouvidos.
— Eita… cê esqueceu de alguma coisa?
Seu rosto parecia derreter a cada segundo que passava. Alguns traços de lacrimejo apareciam em seu olhar, mas era um drama desnecessário.
— Eu falei para o meu pai que voltaria antes das cinco… Acho que vou morrer…
Ônix surpreendeu-se por um momento, mas logo riu discretamente. Achou a situação um tanto fofa, e seu drama lhe parecia engraçado.
— Deixa disso. Você sabe que seu pai é gente boa.
Apoiou a cabeça nos ombros de sua amada, aproveitando seu calor, ciente de que ela em breve se retiraria. Celeste fez-lhe um gentil cafuné enquanto sorria.
— É porque você nunca o viu bravo, né, bobinho…
Um breve silêncio se instaurou, mas o aconchego do calor falava pelo casal. Celeste levantou-se, observando seu amado com um carinho palpável.
— Eu já vou, tá? Hoje não vou para a escola, tenho que ajudar meu pai em casa com as compras que ele fez.
Ônix respondeu “tudo bem”, enquanto se levantava e ficava diante de Celeste. Ela segurou gentilmente suas duas bochechas, beijou-o e, logo em seguida, tocou sua testa com a sua.
— Eu te amo.
Ônix retribuiu com um “eu também”, abraçando-a pela última vez nesta vida. Depois disso, Celeste despediu-se de sua sogra e caminhou até a porta, saindo em passos suaves.
Ônix suspirou, olhando para baixo, fitando seu colar que havia ganhado. Acariciou-o, recordando-se dos bons momentos de sua festa de aniversário.
“Hoje não foi um dia nem um pouco ruim…”
Nathan caminhou até ele em passos suaves; um sorriso singelo contaminava seu rosto. Sentou-se ao lado de seu filho, dando alguns tapinhas em suas costas.
— Desde quando meu garoto é tão garanhão assim?
Risos maliciosos surgiram de seu rosto. Ônix corou de vergonha, mas seu pai não parou só aí. Ele abraçou a si mesmo enquanto simulava beijos ao vento.
— Vuxe eh meuh mió pesenti, sabiah? muah, muah, muah~
Olhou discretamente para seu filho, observando suas bochechas corarem de vergonha enquanto ele escondia o próprio rosto. Gargalhou em seguida, bagunçando o cabelo de Ônix.
— Deixa o menino!
Isabella surgiu com essa frase, aplicando um belo cascudo na cabeça de seu marido. Um pequeno galo cresceu lá, de onde saía fumaça.
— Fica com vergonha não, tá bom, filho? Homem romântico hoje em dia tá ficando difícil de encontrar!
Sorriu para seu gentil garoto. Uma luz brilhante acompanhou seu sorriso enquanto ela fazia o sinal de beleza com sua mão direita. Nathan acariciava o galo discretamente.
De repente, palmas hostis ecoavam, vindas de fora da casa. O barulho veio acompanhado do grito: “Ô DE CASA!”, nitidamente hostil, aumentando gradativamente.
Nathan arregalou os olhos em surpresa, reconhecendo a voz de imediato. Olhou para Ônix, observando seu olhar um pouco franzido de desconforto.
Nathan murmurou ”Hum…” para si mesmo, questionando como seu filho agiria nessa situação. As palmas começaram a ficar cada vez mais agressivas.
Isabella olhou para a porta. Seus olhos entristecidos sabiam o que iria acontecer. Suspirou, caminhando até lá em passos lentos enquanto olhava para trás para dizer:
— Deixa que eu vou lá…
Ônix, calado, observou sua mãe se distanciando cada vez mais. Seu coração palpitava de desconforto; seus instintos alertavam que algo desagradável iria acontecer.
Por instinto, seguiu sua mãe com passos sutis, disfarçando sua presença o máximo possível. Seu pai riu discretamente, seguindo-o logo depois no mesmo ritmo.
Isabella abriu a porta gentilmente. O rangido ecoou, suspendendo as palmas agressivas. Ela observava o pequeno e hostil homem que estava em seu portão.
Baixo, um pouco acima do peso; sua barriga assemelhava-se a seios. Seu cabelo estava prateado, não pela idade, mas sim pela falta de cuidado com a saúde. Uma risca vertical separava seus cabelos.
Seus olhos castanhos observavam Isabella com hostilidade, quase saltando para fora. Ela, por sua vez, observava-o compassivamente enquanto se aproximava.
Ônix fixou-se na porta, olhando discretamente para não ser visto. Estava tão imerso em sua investigação que nem notou seu pai observando-o com cuidado atrás dele.
Isabella estava diante de seu conhecido mais desconfortável. Ônix observava atentamente o conflito: a calmaria em ciano e a fúria em tom castanho.
— Oi, Carlos… Veio aqui pra me perguntar sobre o pagamento? Se for, eu já falei que recebo na semana que vem…
Carlos torceu os lábios de raiva. O franzir de suas sobrancelhas apenas complementava a ira que abraçava seu corpo, tornando-o quase irracional.
— Semana que vem? Eu preciso do dinheiro agora, sua puta, lixo humano. Se não tem dinheiro pra pagar o bagulho, se prostitui logo. Não é culpa minha que você é fodida de pobre.
Nathan, mesmo distante, conseguiu ouvir com clareza a fala do sujeito. Seu sangue ferveu na mesma hora; as pernas quase correram até lá em modo automático.
Respirou fundo, tentando expirar toda sua raiva. Olhou para seu filho em seguida, que, aos poucos, segurava a porta com força gradativa.
“Não posso agir com agressividade na frente do meu filho, não é um exemplo que posso dar. Ele mesmo precisa agir sem influência de ninguém…”
Ônix sentia suas mãos trêmulas ao ver alguém insultando sua mãe por dinheiro; mas, ainda assim, algo o alertava para continuar assistindo por um momento.
Isabella suspirou profundamente, olhando para o chão com um olhar compassivo. Ergueu a cabeça, devolvendo o ódio daquele homem com uma resposta pacífica:
— Desculpa, não tenho dinheiro agora, e suas sugestões não condizem com minhas virtudes. Na semana que vem eu te pago, tá bom? Fica tranquilo, não compro mais roupas suas para não te incomodar.
Ônix teve um súbito arregalar nos olhos. Por que sua mãe respondeu tão passivamente? Isso era algo que ele também fazia sem perceber, mas nunca se questionara sobre o motivo.
Lembrou-se de si mesmo agindo dessa forma diversas vezes, mas foi a primeira vez que viu algo parecido sendo feito por alguém próximo a ele.
Seu coração foi envolvido por um calor confortável enquanto as mãos voltavam a ficar estáveis. A tempestade de raiva que havia nele substituiu-se por um sorriso que ele nem percebeu ter soltado.
“Minha mãe é incrível…”
Seu pai notou essa súbita mudança em sua atitude, rindo ligeiramente em seguida. Baixou a cabeça, suspirando ligeiramente enquanto pensava consigo mesmo:
“Parece que ele aprendeu algo de bom.”
Ônix voltou seu olhar para Carlos, notando-o ainda com hostilidade em sua presença. Ele apertava cada vez mais forte o portão da casa.
— Sua puta do caralho. Eu não vim aqui pra receber esse dinheiro depois. Você vai me pagar, aqui e hoje, de qualquer forma.
Ônix franziu as sobrancelhas, cerrando os lábios em seguida. Parou de se esconder e aproximou-se em passos sutis daquele homem.
Seu pai o seguiu em seguida. Uma súbita raiva estava em seu olhar, mas controlou-se para não dizer nada que fosse de uma atitude hostil.
Isabella manteve-se em silêncio, fitando o olhar de Carlos. Seu foco em encará-lo enquanto buscava uma resposta pacífica impediu-a de notar seu filho e marido ao seu lado.
— Por que está falando com minha mãe assim? Seu porco imundo, pumba calvo do caralho.
Sua voz única fez sua mãe voltar a si, olhando para o filho com os lábios semiabertos. Nathan olhava para ele com um sorriso alegre, acenando a cabeça sutilmente enquanto apontava para Ônix com os dedos indicadores.
— Fala com minha mãe direito se não quiser levar pau.
O brilho nos olhos de seu pai brilhava como o farol de um carro. Sua mãe o observava com surpresa entristecida, perguntando-se de onde ele aprendera aquilo.
Carlos quase espumava de fúria. Seus olhos arregalados quase saltavam para fora, fixando o olhar intenso daquele garoto que não hesitava.
— Quem é você pra falar assim comigo, seu moleque? Sua mãe não te deu educação? Vem cá pra fora pra eu te dar uma surra!
Nathan arregalou os olhos em surpresa, virando-os lentamente para os de sua esposa. Seus olhos, cianos como o mar, pareciam-se com um caldeirão de lava.
Um pequeno arrepio percorreu sua espinha. Fazia muito tempo que algo não a irritava tanto assim. A ameaça ao seu filho despertou em seu interior seu antigo instinto de deusa da guerra.
— Basta.
Sua voz furiosa ecoou como um tiro sob o mar. Seu olhar em chamas fitava Carlos, que, agora, a observava assustado com seu estado atual.
— Sai daqui, Carlos. Já falei que vou pagar o que te devo semana que vem. Cuide-se e tenha uma ótima noite.
Sua voz continha o máximo que podia de hostilidade, mas seu ódio, tanto na fala quanto no olhar, era mais forte que quaisquer barreiras.
Carlos não se viu tendo outra escolha senão retirar-se de lá em silêncio, em passos largos. Seu “cuide-se” assemelhava-se mais a “sai, ou eu te mato”, deixando-o ainda mais irritado.
Nathan, vendo que tudo já havia sido resolvido, começou a andar em passos curtos para a casa, rindo sutilmente e comemorando internamente a atitude brava de sua gentil amada.
Ônix ficou surpreso com como as coisas foram resolvidas rapidamente. A brisa do vento ecoou pelo local, abraçando-o enquanto algo desconfortável crescia em seu peito.
A fúria de Isabella logo foi substituída por tristeza, ao recordar-se de como seu filho falara com hostilidade em sua fala, algo que ela considerava incorreto.
— Ônix, por que falou com ele daquela forma?
Sua voz desanimada esbanjava reprovação, como se julgasse a si mesma. Ônix ficou confuso no primeiro momento, questionando-se se havia feito algo de errado.
— Ah… Eu vi uns amigos meus da escola falando assim quando alguém falava de forma desagradável com eles. Eu agi errado?
Isabella suspirou profundamente, pensando “Escola… Tinha que ser.”, enquanto olhava para baixo. Por algum motivo, esse longo suspiro machucou o coração de Ônix.
— Sabe… É muito difícil irar-se sem pecar, mas dói muito mais irar-se e pecar, principalmente quando sabemos que as palavras são poderosas desde antes do mundo se tornar o que é com o Verbo.
Fitou o fundo de seus olhos com as pálpebras caídas. Seu coração batia desconfortavelmente por ter de adverti-lo, mas era necessário.
— A calma desvia a fúria, mas a palavra ríspida desperta a ira. Eu demorei muito para aprender isso; se eu tivesse aprendido antes, talvez meu passado tivesse sido mais gentil comigo.
Ônix refletiu por um momento: “Passado gentil…?” enquanto tentava entender seus ensinamentos. Lembrou-se de como sua mãe estava agindo compassivamente há pouco e, daí em diante, tudo começou a fazer sentido.
— Tudo bem, eu entendi. Desculpa, tá? Vou me esforçar para melhorar.
As estrelas em seus olhos dançavam, como se anotassem com canetas de todas as cores a nova lição aprendida. Sua mãe sorriu gentilmente, orgulhosa do arrependimento de seu garoto.
— Não tem problema se você entendeu. Vai lá tomar banho; não vou deixar você faltar!
Ônix riu ligeiramente, dizendo “tá bom, tá bom”, enquanto caminhava em passos suaves para dentro de casa, indo em direção ao banheiro logo após.
Longe dali, Carlos caminhava em passos apressados para sua casa, chutando as pedras que estavam em seu caminho enquanto franzia a testa.
“Porra, nunca fui tão humilhado… Tenho que ter certeza de que vou retribuir duas vezes mais o que eu passei.”
Não demorou muito até que ele chegasse em sua casa, correndo para seu guarda-roupa e procurando algo que pudesse servir-lhe de disfarce.
Encontrou um traje de palhaço lá, junto a uma máscara um pouco rasgada, mas que servia. Pensou “Perfeito!”, sorrindo com satisfação com seu disfarce.
Enquanto isso, Ônix já havia terminado seu banho, vestindo suas roupas escolares logo após. Caminhou para o portão de sua casa, com um sorriso alegre em seu rosto.
— Mãe, já tô indo, tá?
Sua voz alcançou gentilmente os ouvidos de sua mãe, que sorriu ligeiramente no mesmo instante. Seus olhares cianos observavam seu filho no portão.
— Tá bom, meu filho! Boa aula!
Próximo capítulo: Passado (3)
- @Maik: Ele apelidou o passarinho de “Piz” porque a pronúncia lembra a palavra “Peace”, que se traduz “paz”.[↩]
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