Capítulo 20: Reencontro
O chão daquela sala, ainda prateado, começou a pulsar como um coração batendo. Sua cor começou a mudar bem devagar para o tom ciano. S2 observava quieta, com frieza em seu olhar.
Assim que todo o solo foi tingido, partículas cianas subiram, e o chão recuperou o prateado original enquanto elas se distanciavam cada vez mais.
Todas juntaram-se, formando uma esfera perfeita. Começou a girar em seguida. Sua forma estava se deformando, alternando entre o horizontal e vertical.
Não demorou muito para se fixar em uma forma retangular. Sua interface em um tom ciano único, junto aos olhares quase brilhantes em confiança, não podiam mentir sua identidade.
S1
E aí?
S2 balançou a cabeça em reprovação. Um suspiro desdenhoso vazou de seus lábios. Sua apresentação foi ridícula, mas sua presença conseguia ser mais nojenta.
S2
Precisa de toda uma cena só pra você aparecer?
Sistema Um sorriu, soltando alguns poucos risos, se divertindo com a situação. Sabia que aquela aparição “cinemática” era desnecessária, mas quis fazê-la mesmo assim.
S1
Eu gosto de uma cena. Você também fez mó drama pra aparecer aqui, então não reclama comigo. Vai, fala aí, o que você quer?
Os olhos da Sistema Dois se arregalaram em um misto de surpresa e indignação. As sobrancelhas quase atingiram o céu, mas, a pouca postura que lhe sobrou impediu que isso acontecesse.
S2
HÃ? Como assim “o que você quer”? Me dá o que me prometeu: permissão para mim e para o S4 acessarmos a sala da divindade “Celeste”.
Os lábios de S1 torceram-se enquanto ele desviava seu olhar para o lado. Permaneceu em silêncio por um tempo, pensando no que falar, em qual desculpa oferecer.
S1
Hum… Tem certeza de que te prometi isso? Não sei se lembro…
O pouco controle que restava para ela desapareceu. A raiva mudou até mesmo a cor de sua interface, e a voz, aparentemente controlada, foi-se com o vento.
S2
TÁ DE BRINCADEIRA?! VOCÊ PROMETEU SIM! Suspiro Se você não der o acesso, eu juro que te rodeio na porrada.
Uma ameaça clássica, que na maioria das vezes não acontece nada, mas a situação de agora era diferente. Sistema Um agora tinha duas escolhas: dar o acesso ou dar o acesso.
S1
Tá, tá, tá bom… Coisa chata, viu?
Um sistema em tom ciano, porém, muito menor do que o seu eu original, surgiu diante da S2. Felizmente, era uma mensagem da qual ela se agradou em ler:
S1 Minimizado
Você recebeu acesso à sala da divindade “Celeste”!
Sua cor de origem retornou. A voz, um pouco mais serena, disse: “Acho bom mesmo. Agora, vou lá falar com Celeste, espero que tenha um ótimo dia.”
Assim que ela se foi, o silêncio tomou conta por um momento. Pouco depois, Sistema Um também deixou o local, deixando-o abandonado, tendo apenas o ar para preencher aquele vazio.
Celeste estava numa sala branca e infinita, sem marcos de tempo ou espaço. Ela estava sentada em um banco de pedra. Seus pés batiam no chão algumas vezes. O som ecoava com facilidade.
“Que tédio…”
Olheiras a abraçavam. Os olhos, inchados e vermelhos, entregavam todas as lágrimas que ali passaram, tendo sua única companhia apenas ela mesma.
“Quando vou poder falar com você, Ônix…? Queria tanto te dar um abraço… Me pergunto quando a S2 vai voltar também.”
Em meio aos seus devaneios, sentiu o vento bater em suas costas, como se algo estivesse soprando. Assim que se virou, notou S2 sorrindo.
S2
E aí, gatinha? Como está? Te falei que voltava, boba!
Um sorriso involuntário surgiu no rosto de Celeste. Ela saltou de seu banco, saltitando enquanto abraçava a tela do sistema, tão animada quanto uma criança.
— S2! Estava com tanta saudade de você!
S2
Para, assim fico envergonhada, sua besta…
Parou de abraçá-la, mas seu sorriso manteve-se brilhante. Arregalou os olhos quando percebeu que sua amiga havia falado, ouvindo-a pela primeira vez.
— Espera… Você falou? Nossa, sua voz é bonita, viu? Por que ficava digitando antes?
S2
Ah, obrigada… Eu só não gostava de falar, mas também tinha outro motivo…
— Ah, entendi…
Seu ânimo apagou-se como uma flor que murcha. Seus lábios torcidos se esforçavam para que as lágrimas não caíssem, mas os lábios entregavam em um prato cheio suas preocupações:
— E o Ônix? Como ele está? Faz muito tempo que o S4 não vem para eu poder acompanhar como meu amor está…
Os olhos de S2 caíram como uma folha seca. Quanto tempo havia se passado durante sua ausência? Os detalhes em seu olhar cansado esbanjavam para o mundo seus desejos em denunciar as angústias que sentia.
Com muito esforço, forjou um sorriso que parecia genuíno. Sua voz, em um tom mais animado do que o normal, tentava acalmar sua companheira com boas notícias:
S2
Bobinha, está se preocupando à toa! Convenci o S1 a dar permissão para mim e para o S4 quando falei que ajudaria ele a auxiliar um jogador que escolhesse. Logo o S4 aparece aqui, tá bom? Agora, nada nos impede de ficar ao seu lado!
Aquelas palavras pareciam apalpar os ouvidos de Celeste com gentileza. O conforto apaziguou a fúria que a solidão marcava em seu coração.
— Obrigada, S2…
Por mais que não tivesse feito nada de errado, sendo apenas uma vítima de um mundo injusto, sua alma, tão gentil quanto a de seu marido, não hesitou em perguntar:
— Por que me ajuda tanto?
Sistema Dois ficou confusa por um momento. Por qual motivo aquela pergunta surgiu? Para ela, todo o suporte que lhe foi dado ainda era muito pouco se for comparado com seu sofrimento.
S2
Sei sua história, boba. Nunca ficaria parada vendo alguém tão bom quanto você e seu marido sofrerem. Vou conseguir permissão para falar com o Ônix também, tá? Contarei tudinho a ele.
Isso era tudo o que lhe faltava. Ainda que não conseguisse entender com exatidão do porquê havia sido presenteada com uma companheira tão boa quanto ela, estava profundamente grata.
— Obrigada…
Aproximou-se dela com um sorriso caloroso no rosto. Um abraço surgiu tão naturalmente quanto uma amizade ainda mais duradoura do que qualquer coisa que há na terra.
Durante o abraço, Celeste não podia parar de pensar na luz que aquela sistema representava a ela. Em uma forma de tentar recompensá-la, pensou em um fofo apelido:
— De hoje em diante, vou te chamar só de “Ly”, tá bom?
Repentino como uma tempestade que chega sem aviso, mas, ao mesmo tempo, confortante. S2 não entendeu direito o significado, mas, apenas de saber que era relacionado a um apelido carinhoso foi o suficiente para deixá-la envergonhada.
S2
Hã? Ly? Por quê?
Um pequeno riso de Celeste ecoou tão natural quanto a água. Seus lábios não torciam mais em angústia, agora, podiam dizer com um sorriso erguido o que sentia:
— É porque me faz lembrar a palavra “Light”. Você é tão boa quanto a luz para mim.
S2 não estava acostumada com esse tipo de tratamento antes. O que dizer? Obrigada? A inocente vergonha que existia em si não conseguiu pensar em nada além de:
S2
Sua boba…
Pouco depois, a brisa começou a ficar mais forte, o que as fez olhar para o lado. Partículas prateadas juntavam-se próximas a elas, formando um sistema.
S4 — Opa! Desculpe o atraso, estava ocupado.
Sua voz era leve, como um coral celestial. Os olhos de Celeste brilharam com sua chegada. Depois de tanto tempo, finalmente iria conseguir ver Ônix.
— S4!
Começou a correr saltitante em sua direção, mas o sistema voou um pouco para longe. Evitando seu carinho? Não, na verdade, ele ainda não estava acostumado com isso.
S4 — Por favor, não me abrace. Fico com vergonha.
Celeste não sabia que uma ação tão simples podia esbanjar tamanha fofura. Não conseguiu conter suas risadas, mas, aceitou os termos do sistema envergonhado.
Um pouco após esse evento, S4 perguntou se poderia dar início à sua transmissão. Celeste não hesitou em dizer para que ele finalmente começasse.
Como em um cinema tecnológico, a escuridão abraçou tanto ela quanto Ly. Seus corpos haviam desaparecido, mas ainda estavam presentes em um lugar que nunca haviam ido antes.
A sensação era de ser um fantasma, observando Ônix de perto, fazendo parecer que ele realmente estava ao seu lado, por mais que isso, por enquanto, era um sonho impossível.
Morfius, com os olhos fechados, afundava na escuridão. Ele estava consciente, conseguia sentir o ar gelado rebater em seu corpo, mas ainda não conseguia se mover.
“Eu ainda tô vivo…?”
Abriu os olhos, mas não conseguia enxergar nem seu próprio corpo. Mesmo que respirasse, não podia sentir o movimento dos próprios pulmões.
“Onde eu tô?”
Começou a afundar com mais velocidade, assemelhando-se com uma queda. De repente, colidiu com algo no chão, o que o fez fechar os olhos.
Quando os abriu, notou a escuridão ser substituída por luz ligeiramente. Pouco depois, sem que percebesse a mudança, já havia retornado para a casa.
Ônix o olhava confuso, tentando entender de onde ele havia surgido. Dando pouca importância para isso, estendeu a mão para ajudá-lo a levantar.
— Tá tudo bem, amigo?
Morfius aceitou a ajuda oferecida. As costas estalavam como pipocas, e a dor aguda parecia espancá-lo, mas, não era nada de muito crítico que não pudesse suportar.
— Nossa… Tô estragado. Cadê o resto do pessoal?
Ônix olhou para o lado, coçando a bochecha. Estava ali há algum tempo, esperando que retornassem, mas, até então, eles ainda não haviam aparecido.
— Ah… Devem aparecer já, já.
Uma partícula escura começou a aparecer próximo a eles. Pouco depois, substituiu-se por uma fenda. Saito saiu de lá em passos calmos, com tranquilidade em seu olhar.
— Opa, já estão aqui? Cadê o Oni?
Ônix sentou-se, escorando na parede para descansar. Respondeu logo depois, supondo que Waraioni apareceria em pouco tempo, talvez alguns minutos.
Assim que terminou de falar, outra fenda surgiu. Dessa vez, Waraioni saiu de lá com um olhar de poucos amigos. Assim que percebeu a presença de seus companheiros, começou a coçar a nuca em nervosismo.
— … E aí.
Saito apontou o dedo para o seu título, torcendo os lábios para tentar não rir. Seu irmão, com as bochechas rosadas, tentava explicar o contexto:
— Então… Como que eu posso explicar…
Saito tampou sua boca com a mão, mas suas bochechas encheram de ar, dando passagem para a gargalhada que veio em seguida, ecoando como uma explosão.
Waraioni tampou os olhos. Não sabia onde esconder seu rosto, tampouco o título que parecia brilhar como diamante. No fim, somente a voz frustrada pode dizer o que se passava em sua mente:
— Puta que pariu…
Ônix riu discretamente, e Morfius ainda tentava entender a situação. Carol ouviu as risadas e caminhou até lá. Seus leves passos entregavam sua presença. Assim que chegou, notou seus amigos. Seus olhos brilharam.
— Eba! Já voltaram!
Começou a correr para Waraioni com os braços abertos, mas interrompeu-se ao notar o título acima de sua cabeça, estranhando o que estava escrito.
— Nossa, tio? “O mais fraco”? O que é isso? Você?!
Saito começou a sentir sua barriga doer enquanto algumas lágrimas caíam. Tentava parar de rir, mas não conseguia, como se estivesse condenado a viver assim para sempre.
Em seguida, Robson chegou à sala de estar. Seus olhos arregalaram-se em surpresa ao ver o título que Waraioni carregava. Aparentemente, havia algo escondido.
— Garoto, quem te deu esse título?
Waraioni suspirou, pensando se valia a pena responder aquela pergunta. No fim, respondeu, mas foi algo tão vago que conseguiu esbanjar para todos o seu desconforto:
— Ah, foi um velho dos infernos. Nem quero lembrar do rosto daquele otário também.
Robson tocou o título. Nesse momento, o mesmo trocou ligeiramente sua cor, mas retornou à prateada de antes, como se não fosse algo fixo.
— Isso é raro, ele está sujeito a alterações. Quem te deu esse título consegue alterar a hora que quiser… Deve ser uma divindade bem poderosa.
Felizmente, nem tudo estava acabado. Com isso revelado, entendeu que, dependendo de suas ações dali adiante, poderia ter essa vergonha revogada.
— Ah, sério? Assim eu fico um pouco mais aliviado.
Saito finalmente conseguiu cessar seus risos, enxugando as lágrimas que pareciam grudar no rosto. A voz, ainda um pouco instável, disse:
— Muito bom, muito bom. Bora comer? Não comi nada até agora.
Carol começou a saltitar ao ouvir a palavra “comer”. Robson riu ligeiramente, mas não se surpreendeu, como se isso fosse algo óbvio aos seus olhos.
— Claro. Eu deixei a comida pronta pra quando vocês voltassem, jovens.
Saito agradeceu, caminhando para a cozinha logo depois. Todos o seguiram, exceto Ônix e Robson. Waraioni interrompeu seu caminhar ao perceber que Ônix não estava os seguindo.
— Cê não vem comer, Ônix?
Não estava com fome, mas, mesmo se estivesse, a dor interior não o permitiria perceber. Ainda assim, mesmo que quisesse, ainda tinha assuntos a tratar, e vai ser complicado.
— Não, obrigado. Tenho que conversar um pouco com o Robson sobre um assunto. Eu vou depois.
Seu irmão entendeu a situação, retornando seu caminhar logo depois. Robson sentou-se em um sofá pequeno. Havia um sofá vago próximo a ele, Ônix foi lá, mas manteve-se em silêncio.
Seus pés batiam no chão num ritmo ansioso, traindo a calma que tentava manter. Sua mente podia apenas preocupar-se com uma coisa: “Como eu posso contar…”
Robson pôde sentir a ansiedade do garoto como se fosse sua. Sua voz, um pouco rouca, disse: “Tá tudo bem, garoto. Pode contar o que aconteceu.”
Seu corpo parou de tremer, mas o coração ardia em ansiedade. Respirou profundamente, fechando os olhos, juntando forças de onde não tinha. O silêncio pairou novamente, pesado como um véu. Pouco depois, Ônix finalmente disse:
— Dalila morreu.
Próximo capítulo: Promessa.
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