Capítulo 54: Exército de Sombras
O silêncio pairava no ar como um pássaro abraçando as nuvens, cobrindo aquele frágil ambiente com dor e angústia, guardando-a para si.
O sangue se misturava com aquele sorriso bobo de Andressa, como se amaldiçoasse suas intenções, transformando-a em mais um gatilho para o passado.
O céu, noturno e estrelado, presente nos olhos de Ônix, estava tão instável quanto a liberdade das andorinhas assim que a tempestade começa.
Por que ela estava sorrindo? Que conquista houve no que fez? Tudo o que ela obteve foram ossos quebrados e o desmaio, que levava sua consciência para longe.
Enquanto suspirava em dúvida, seu olhar universal buscava a todo custo entender a felicidade que estava estampada no rosto de sua companheira, mas não houve resposta alguma.
Enquanto divagava em seus próprios pensamentos, percebeu um sutil sangue escorrendo pelos lábios da moça, caminhando até seu queixo.
Como uma carta que transformou-se em um avião, o misto da angústia e da confusão pousou em suas pálpebras, abrindo-as sutilmente.
De repente, como se o destino tentasse lhe dar a resposta, pequenas memórias do passado retornaram a ele, não de sua vida passada, mas do breve encontro que teve.
Desde sua pergunta boba sobre onde o norte ficava até as gargalhadas de Andressa, tudo voltou a si, recordando-o de um detalhe importante: eles eram semelhantes.
No fim das contas, mesmo que desejasse se negar a acreditar, ele não teria feito a exata mesma coisa se fosse ela a pessoa ameaçada, e não ele?
Foram alguns minutos de reflexão, mas ele finalmente pôde entender que não há justificativas para que uma gentileza genuína aconteça independente do lugar.
Seria do agrado dela se ele ficasse se culpando pelo o que aconteceu? De modo algum e, agora, ele sabe disso melhor do que qualquer pessoa.
Mesmo que ainda o machucasse, um breve riso escapou de seus lábios, aceitando a preocupação e as boas ações de sua amiga de uma vez por todas.
Por fim, gentilmente moveu seus dedos para o sangue que escorria, limpando-o cuidadosamente como se fosse um pai limpando a boca suja de seu filho.
Esse breve e fofo evento durou alguns segundos. Logo depois, Ônix devolveu o sorriso genuíno que recebeu, tentando aceitar o que passou. Como resultado, sussurrou:
— Muito obrigado…
O silêncio retornou com seu reinado; no entanto, dessa vez, ao invés de dor e angústia, entregava paz e leveza, como se a provação estivesse sido concluída.
Esse momento durou mais alguns segundos até que fosse interrompido pelas gramas que, de repente, começaram a se quebrar com passos pesados.
Eles vinham por trás de Ônix, aproximando-se lentamente, como se tivesse total controle da situação, assim como um lobo encontra um coelho.
Nosso garoto naturalmente olhou para trás suavemente, buscando enxergar o que lhe via como alvo, até que eventualmente o encontrasse.
Escuro como as próprias sombras que carregava consigo, no entanto, em formato de armadura, indo dos pés à cabeça, cobrindo seu rosto.
Algumas faíscas escuras saíam de seu corpo, como se seu equipamento tivesse tomado forma a pouco tempo, indicando que os observava de longe.
Ambos se encararam por um longo tempo, como se esperasse que um dos dois cedesse à presença um do outro, mas nada disso aconteceu.
Em seguida, o garoto, guardado na armadura, apontou o dedo para a moça desmaiada com frieza, dizendo suas primeiras palavras logo em sequência:
— Se não quiser morrer aqui e agora, me entregue ela. Tenho que matar um jogador para concluir a missão e ter recompensas melhores, e ela é o alvo perfeito pra isso.
Ônix ouviu cada palavra atentamente, mas não conseguiu acreditar em sequer uma delas. Em todo esse tempo vivendo nesse mundo, foi a primeira vez que ouviu claramente intenções assassinas vindo de outro jogador.
A missão era tão importante assim a ponto de nem pensar duas vezes para alguém desejar tirar uma vida humana? E, não qualquer uma, mas sim de uma das pessoas que lhe demonstrou afeto.
Não, isso não pode, e nem vai deixar acontecer nem por pontos infinitos. Pouco depois que processou o que estava acontecendo, levantou-se, fixando a pessoa à sua frente.
Os dentes cerravam, tentando mastigar a raiva que subia pela espinha, mas isso só resultou em um ódio crescente que se ocultava na escuridão.
Seus olhos universais pareciam estagnados, como se cedessem pela primeira vez em muito tempo à hostilidade que se escondia dentro de si, respondendo com uma única palavra:
— Não.
O ar tornou-se pesado, como se não aguentasse a explosão de emoções que emergia do garoto amaldiçoado, que, desde que reviveu, teve perda atrás de perda.
A luz começava a se ausentar lentamente, entregando-se às sombras que sutilmente se erguiam de Ônix, trazendo consigo as estrelas de seu olhar.
Nesse momento, não havia espaço para outro sentimento senão a ira, que abraçou tudo ao seu redor, tornando a escuridão espalhada em seu próprio território.
O garoto de armadura sentia um peso constante o jogando para baixo, como se a pressão da atmosfera se voltasse contra ele, repugnando suas ações.
As pernas encontravam a instabilidade, tremendo sem fim, sem encontrar refúgio. Não demorou muito para que os joelhos encontrassem vergonhosamente o chão.
Os braços tentavam empurrar o chão, buscando se impulsionar de volta para o topo, mas não havia nenhuma escapatória para o problema que havia arranjado.
“Merda…”
Enquanto tentava desesperadamente se levantar, Ônix se aproximava lentamente com as mãos no bolso, olhando seu adversário de cima com desprezo.
“Preciso recuar urgentemente!”
Sem ter chance alguma de fugir, ergueu a cabeça por instinto, tentando absorver o máximo que podia de informações, mas já era tarde demais.
Um impiedoso chute frontal colidiu velozmente em seu rosto, empurrando não só o seu pescoço para trás, mas, também, fazendo-o voar em instantes.
Mesmo que seu adversário estivesse distante, Ônix continuou avançando, desejando garantir que ele se afaste o máximo possível de Andressa.
Em sua última preocupação, voltou seu olhar para trás, observando como ela ficaria ali com sua ausência: frágil e exposta a qualquer mínimo perigo.
Nesse momento, a hesitação lhe abraçou, sussurrando em seus ouvidos um único desejo: “Eu gostaria que ela estivesse protegida, nem que só um pouco.”
Felizmente, as sombras atenderam o seu pedido. De pouco a pouco, um rastro sombrio caminhava em direção a Andressa, até que estivesse rente a ela.
Em seguida, acumulou-se em um único ponto, transformando-se em uma esfera que a cobria em gentileza, ocultando-a de qualquer um que tente se aproximar.
O leve arregalar da surpresa pousou em seus olhos. Não sabia como fez isso, tampouco se foi realmente ele quem o fez, mas, do fundo de seu coração, agradeceu mais uma vez, com um singelo sorriso.
Por fim, retomou sua caminhada, dirigindo-se em direção ao oponente que havia jogado para longe, até que ambos se encontrassem novamente.
O garoto levantava-se lentamente da queda enquanto estapeava sua armadura, expulsando a pouca poeira que havia se acumulado em seu peitoral.
Ao retomar a atenção para a frente, pôde ver Ônix aproximando-se em passos calmos, observando-o no fundo dos olhos, sem intenção alguma de recuar.
Percebendo que a luta que provocou era inevitável, suspirou profundamente, pensando consigo mesmo que, a partir de agora, iria com tudo.
Ao levantar seu braço para cima, o chão começava a tremer, como se algo em abundância estivesse vindo, uma legião completa de vítimas.
Mãos, escuras como o vazio em seus corações, erguiam-se do solo, como se fossem seres afogados pelo medo, buscando seus oxigênios: refúgio em luz.
Cada um deles saía da terra em um ritmo lento, com o corpo inteiro tremendo em angústia, desejando em silêncio o retorno para o que eram antes.
Lá estavam eles, um exército de sombras, mas sem força alguma, sem vontade. Respiravam. Os corações batiam, mas eles não estavam verdadeiramente vivos.
Seus corpos eram curvados, e os dedos tampavam os ouvidos com força e medo, evitando ouvir a todo custo as malditas ordens ou o murmúrio do vento.
Entretanto, passos, leves como os de um anjo, se aproximavam deles, vindo de um canto distante, mas eram tão audíveis quanto o som do “eu te amo”.
Era muito mais agradável do que as sombras que os encharcava com a ausência. Misericordioso, paciente e, o mais importante: era a luz que procuravam.
Ao inclinarem o pescoço levemente para cima, em um último fio de esperança, puderam enxergar o garoto que tinha o universo nos olhos e, também, refúgio em seu coração.
Próximo Capítulo: Peixe Fora da Água.
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