Capítulo 56: Receptáculo
Os lábios daquelas sombras, entreabertos e estremecidos, tentavam berrar a sede que tinham da luz que somente Ônix podia lhes oferecer, mas as cordas vocais não estavam funcionando.
Os mesmos olhos que choravam escuridão também distorciam em cansaço, se juntando ao abismo de suas dores enquanto os corpos curvados juntavam-se ao chão.
As mãos se jogavam no solo, sentindo o peso do mundo em cada um de seus dedos, mas, ainda assim, havia esforço para fazê-las levantar, apontando para onde queriam ir.
De pouco a pouco, da ponta dos dedos até o antebraço, cada sombra começava a ser desfeita pela maldição de Ônix que, para eles, era uma bênção aguardada
Não demorou muito até que elas se tornassem névoas flutuantes, vapores de escuridão que se fixaram no ar, processando o que estava acontecendo com seus corpos.
As pálpebras de Ônix cederam espaço para que a surpresa pudesse pousar nos olhos, enquanto os lábios semiabertos não sabiam o que fazer senão suspirar.
Enquanto mal conseguia entender com perfeição o que estava acontecendo, uma dor, aguda como quebrar inúmeras costelas, começou a atravessar seu peito.
Ao olhar para baixo no mesmo instante, percebeu que aquele garoto também havia se dissipado e, agora, estava se refugiando dentro de si, entregando todas as dores que tinha.
Antes que pudesse pôr sequer a mão no peito, algo parecia tentar chamar sua atenção para a frente, sussurrando seus próprios pedidos de socorro.
Assim que levantou seu pescoço, uma densa nuvem de escuridão estava diante de si, moldando sua forma para algo mais humano, ajoelhando diante dele.
Não havia sobrado tempo para perguntar; o abraço que as sombras tanto desejavam entregar havia acontecido em um instante, se transportando lentamente para o seu interior.
Enquanto elas se locomoviam, cada história era contada como um filme, cada lágrima que havia sido derramada tinha seu próprio roteiro para mostrar, e cada grito de desespero foi ouvido.
Não eram um, nem dez, tampouco cinquenta; foram cem almas absorvidas, cem angústias encontrando o refúgio que queriam, sacrificando a paz de seu receptáculo.
Tentar respirar queimava sua garganta, porque ali não havia oxigênio, mas sim mágoa, em mais abundância do que gotas de água que existem no mar.
Pensar? Agora, ele não conseguia nem questionar o que estava acontecendo; sua mente não tinha espaço para indagações, estava lotada de gritos que não tinham um lar.
O coração batia forte como um tambor, sem saber como lidar com aquela chuva de emoções que havia recaído sobre si de repente, nem para onde enviar.
Só havia um espaço para as dores tentarem fugir em forma de lágrimas: os olhos, mas o caminho estava fechado; a maldição não iria ceder nem por um segundo.
No fim de tudo, além de um corpo entregue às tremedeiras, não lhe restou nada; até mesmo abraçar a si mesmo lhe causava ainda mais dor.
Sem saber mais o que poderia fazer, levou as mãos à cabeça com pressa, apertando-a com toda força que tinha, mas não adiantou nada.
Os berros só ficavam cada vez mais fortes; não tinha como escapar dessas angústias, elas já faziam parte de si. Esse é o “benefício” de ser o dono das sombras.
Sem ter a que recorrer, usou de suas últimas forças para erguer seu pescoço, entregando-se ao berro que veio de sua alma, pedindo ajuda em segredo, para que suas dores sumissem só por um segundo dessa vez…
Mas ninguém veio. No meio do abismo de seu sofrimento, só existia ele e seu berro. A solução não existia, senão apenas continuar a sentir, até que não o incomodasse mais.
Do outro lado, estava o garoto de armadura, ainda confuso e assustado sobre o que estava acontecendo, inseguro sobre o que aconteceu com o seu próprio exército.
Seu corpo tremia sutilmente com as angústias internas, enquanto processava tudo o que tinha acontecido, desde a autodestruição de seus “soldados” até o momento atual.
Estava sozinho, apenas ele e seu próprio mérito; no entanto, seu adversário estava logo ali, ajoelhado, completamente distraído com seus problemas.
Mesmo que seu coração tremesse com o que podia resultar de suas ações, seu subconsciente tolo sussurrava para ele incontáveis vezes que uma chance como aquela não iria aparecer de novo.
Seu instinto gritava: “Você pode morrer!”, enquanto seu ego, inflado e fraco, retrucava: “Não fomos derrotados! A hora é agora! Matar, e levá-lo como uma sombra!”
Nesse curto impasse de ideias, não havia espaço para a razão, mas sim para quem tinha posse dos holofotes. Para ele, quem venceu valia mais do que as consequências.
E então, foi com sua conclusão precipitada e irracional que seu primeiro passo nasceu, dando início a uma curta corrida tão desajeitada quanto desesperada.
O tempo é curto! Essa brecha pode desaparecer a qualquer instante! Corra o mais rápido que puder! Rápido! Era o que pensava o ego do rapaz a minutos de sua morte.
Os segundos que passou correndo foram como horas; mas, finalmente, estava diante de Ônix, ainda gritando consigo mesmo, tentando superar as mágoas.
Atropelando a racionalidade, o garoto agarrou a camisa de seu adversário e projetou a perna para trás, atirando um chute na barriga em sequência.
A camisa rasgou-se em pedaços enquanto Ônix voava para um lugar distante, caindo ao chão enquanto as gramas voavam, rolando até que as costas encontrassem uma árvore.
Estava tudo escuro. As pálpebras não desejavam se abrir; elas guardavam os olhos do que temia enxergar, da verdade que queria que fosse mentira.
No entanto, cada vez mais sua mente mergulhava nessa escuridão, levando-o novamente para o seu interior por alguns instantes, deixando-o ver o que estava acontecendo.
Aquela mesma criança em forma de sombra ainda chorava, mantendo os dedos nos olhos, confusa sobre onde estava, sem saber nem se ainda existia.
Seus olhos, ainda fechados com as lágrimas, não permitiam que enxergasse a luz que vinha do teto, iluminando seus arredores para que pudesse andar com segurança.
Enquanto caminhava sem rumo, uma sombra de seu tamanho se aproximava dele em passos lentos, olhando-o com o mesmo carinho e compaixão que recebeu morando naquele lugar: Ephemera.
Segundos depois, estando próxima o suficiente de seu mais novo amigo, deu-lhe o mais sincero abraço, dizendo que, agora que estava ali, tudo ficaria bem.
Enquanto tentava acalmar o garoto, mais noventa e nove sombras caminhavam desoladas, entregando-se às lágrimas enquanto tampavam o rosto.
Ephemera olhava cada um deles com seus olhos marejados, simpatizando com a dor que um dia já foi sua, mas também triste em saber que logo logo elas seriam transferidas a Ônix.
Alguns passos começavam a se aproximar de suas costas, mas ela não precisava se virar para saber quem era, tampouco o motivo de sua presença.
Lá estava ele, o Dummy, com sua pele prateada como sempre esteve, observando cada um daqueles sofredores que correram em busca da paz.
Sem dizer uma única palavra, apenas apontou a mão para todos eles, deixando que uma sutil energia ciana e vermelha os circulasse.
Esses pequenos luminares serviam de guia, influenciando-os a caminharem para um lugar específico, onde cada um encontraria compaixão.
A caminhada durou alguns segundos, mas finalmente chegaram à fonte de toda luz que iluminava a escuridão, luz essa que tomaria para si todas as suas dores.
Era uma pequena sombra, prateada e rabiscada, ajoelhada com o corpo curvado enquanto chorava tudo o que eles desejavam, sofrendo para que eles pudessem sorrir.
Ao redor dessa figura, circulavam as duas cores de antes, protegendo-a de qualquer toque, proibindo até mesmo o abraço mais sincero.
Um pouco distante daquela alma sofredora, estavam cada uma das sombras que choravam, ajoelhando-se em cansaço enquanto as mágoas de seu coração voavam para a fonte de luz.
É assim que vive o mundo interno de Ônix. Sua própria alma chora ajoelhada enquanto absorve a dor de quem vive dentro de si, sem descanso algum, nem por um único segundo.
De pouco a pouco, sua consciência o levava para longe de lá, até que seus olhos se abrissem novamente, enxergando as gramas quebradas que repousavam em seu colo.
Próximo Capítulo: Universo Enfurecido.
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