Capítulo 61: Morte Inaceitável
Os raios que circulavam a besta do abismo cicatrizavam o solo, exibindo a marca da impiedade, deixando claro que aquele território estava em sua posse.
À sua frente, encontrava-se o peregrino dos olhares escarlates, mantendo sua arma firme enquanto o encarava com determinação e, sobretudo, paciência.
Nada, senão o vento, passeava por sua mente. O semblante neutro ocultava com um véu as brechas que poderiam existir, restando apenas seu espírito de batalha.
Ocultando-se em sua sombra, estava Morfius a alguns metros de distância, observando a criatura que transitou de um pequeno problema até um risco de vida.
Os olhos arregalados enviavam cada detalhe para seus instintos como um sinal de perigo, provocando o tropeçar do próprio coração enquanto hesitava em caminhar.
“Jesus…”
Dos pés à cabeça, ou até mesmo o olhar abissal oculto no sangue, não havia nada que não o convencesse de que o que estava adiante era algo sem falhas.
“Aquilo ali é um monstro…”
As pernas já não o respondiam antes mesmo da batalha começar. Sem nem sequer se mover, o suor já caminhava pelo rosto enquanto os lábios ficavam secos.
Enquanto se perdia diante do perigo iminente, Saito já preparava seus movimentos, flexionando sutilmente o joelho enquanto dobrava a atenção.
O que faria? Uma tentativa abrupta de um golpe surpresa ou um ataque à longa distância com um dos seus elementos? Se pensou em uma dessas alternativas, está incorreto.
Utilizando o vento, deixou que a leveza abraçasse suas pernas, aumentando a velocidade e a precisão que precisaria no movimento que pensou em fazer.
Em seguida, recuou em um instante, ficando lado a lado com seu companheiro que só conseguia prestar atenção naquela coisa que teria que enfrentar.
O olhar escarlate inclinou para a direita, observando aquele rosto assustado e derrotado, incapaz de sequer mover um único músculo para se defender.
Por mais perigoso que o oponente fosse, ficar de braços atados à morte antes mesmo da provação começar era realmente algo que um homem faria?
Para Saito, depois de tantas experiências nesse mundo incomum, esse tipo de covardia não era algo adequado. O pouco respeito que tinha por seu colega acabara de despencar.
Enquanto o nojo e o desprezo moravam em seus olhos, a boca ainda assim preferiu murmurar duras verdades, tentando trazê-lo de volta à realidade:
— Ei.
Era leve e discreto, quase um sussurro, mas audível o suficiente para despertar Morfius por um momento, fazendo-o olhar para a esquerda em um pequeno sinal de luz.
— Se não quiser morrer, avance quando eu for. Lute ou morra, faça sua escolha.
São palavras cruéis à primeira vista, mas não deixam de ser verdades. Se esperar demais enquanto a besta caça, a próxima vida a ser ceifada será a sua.
Esse breve soco de realidade o fez despertar brevemente do desespero em que estava se encontrando. Engolindo seco as falsas esperanças, voltou a olhar para a guerra, mas…
… O vazio abraçou o estômago. Seu corpo ficou tão gelado quanto se estivesse morto. De sua garganta nem o ar escapava, e os olhos tentavam saltar do corpo.
Saito ainda o observava, e esses detalhes não escaparam de sua visão. No primeiro momento, o desrespeito decolou como um foguete, taxando-o como um covarde novamente…
… No entanto, assim que também voltou seu olhar para a criatura que deveria enfrentar, entendeu o motivo da desistência precoce que Morfius acabara de ter.
Aquele monstro esverdeado estava com o corpo inclinado para a frente, mantendo as duas palmas no chão, preparando os pés para saltarem a qualquer instante.
O chão distorcia com o toque, virando poeira enquanto também se tornava parte da força elétrica que surgia por todo o corpo daquele demônio, mas não era só isso.
Atrás de si, escondendo-se como a sombra que o sangue vomitado por aquele crânio deixou, havia uma figura que todos reconheceriam independentemente de onde olhassem.
Um corpo fino como o de uma moça, mas completamente encapuzado pelo abismo que abraça o inferno e cumprimenta as sombras daqueles que partirão pelas suas mãos.
Uma foice, maior que seu corpo, era segurada pela gentileza de sua palma, deitada em seu corpo, apoiando-se no trapézio como uma toalha de pano.
Dentes mais afiados do que qualquer arma branca que exista, um olhar que poderia ser confundido com a própria escuridão e, por fim, sua marca registrada: o maldito sorriso.
A morte já os assistia de perto, esperando pacientemente pelo resultado que viria em poucos minutos, apostando as fichas em quem morreria e como.
Os instintos de Saito, diante da dona morte, fizeram seu corpo congelar por um instante, não por medo, mas um alerta do quão perigosa era a história que ele estava indo atrás.
Infelizmente, um instante nesse mundo era coisa demais. Quando suas fibras recuperaram a postura, aquela criatura já estava à sua frente, com o punho a um palito de acertá-lo no rosto.
Raciocinar não é adequado nessa situação, justamente por isso que não o fez. Confiando em seus reflexos, moveu a parte cortante da katana rente ao golpe para bloquear, encostando o antebraço na parte de trás para mantê-la firme.
Os dedos do pé agarraram o chão como se suas vidas dependessem disso. Oferecendo-lhes suporte, o elemento ar os empurrou ainda mais para o solo, fixando-os como um prego.
E então, ele veio, explodindo na arma branca como uma bala de canhão, tentando quebrá-la com seus ossos que aparentavam ser indestrutíveis, mas a pele falhou em resistir ao impacto.
Saito não tinha sequer recebido o ataque diretamente em si, mas, ainda assim, todo o seu corpo ressoou com aquele golpe, rasgando os músculos do braço.
As pernas, que eram como pregos, tornaram-se frouxas à força, falhando em manter seu portador firme, tornando seus joelhos reféns da fraqueza.
As narinas, acompanhando o ritmo dos olhos, lacrimejavam sangue. Seus lábios, apertados ao deparar-se com uma dor abrupta, tentavam prepará-lo para o que viria a seguir.
E então, como se fosse uma pedra sendo jogada ao mar, foi arremessado pelo impacto, sem conseguir apoiar-se em seus elementos para cair sem se machucar.
Da mesma forma que uma bolinha de gude, saltitava assim que encontrava o chão, permanecendo assim até que fincasse a katana no solo, arrastando-se brevemente até parar.
Seu estado era lamentável. Os dedos tremiam só de tocar a grama, sem força de ao menos agarrá-la. Se formos falar das pernas, é melhor pensar que elas não existem mais.
O corpo latejava fortemente, gritando à própria alma para que cessasse seus movimentos, tentando convencê-lo de que não valia a pena o esforço.
Seu pescoço desafiava a si mesmo para que conseguisse levantar-se sutilmente, conseguindo ver com muito esforço o estado em que sua lâmina se encontrava.
Havia uma rachadura no lugar onde o punho acertou, misturando-se com uma poça de sangue, cuspindo em sua face uma verdade que não desejava: mais golpes causariam destruição, não só de sua arma, como também de si mesmo.
Enquanto absorvia cada informação lentamente, seus olhos dilatavam e brilhavam como nunca. Seu corpo começava a queimar, e a gasolina, com o apelido de ódio, criava seu próprio império.
— Ina…ceitável.
Essa não era uma luta em que ele poderia simplesmente esquecer, no entanto, seus membros diziam o oposto, negando-se a todo custo mover-se um centímetro.
— Não importa.
Se as pernas não se movem, domine o vento e as faça se moverem por vontade própria. Os braços? Dê a mesma ordem, nem que isso signifique tornar-se sua própria marionete.
Dito e feito. Controlando a si mesmo como um boneco, conseguiu ficar de pé, preparando-se para avançar na mesma direção da qual foi jogado como um nada.
Hora de voltar no tempo. Assim que Saito foi arremessado, Morfius observou-o voar, desaparecendo no horizonte como se tivesse teleportado.
O suor, que caía como chuva de seu queixo, estava desacreditado com o que aconteceu com seu amigo, evaporando com a confiança que cegava seu olhar.
Sua mente, antes de pensar que o que estava acontecendo era um sonho, ordenou o corpo a olhar para frente, observando a criatura que fixava seu olhar nele.
De seu punho, havia um profundo corte que o fazia derramar sangue como uma tempestade, todavia, seu semblante negro avisava que aquilo não importava.
Agora, era apenas ele e a morte, encarando um ao outro com energias distintas. Enquanto um pensava se a morte seria indolor, o outro dava início aos passos que o levariam até sua presa.
Morfius, mudo pelo desespero, saltou ligeiramente para trás, entretanto, o medo reduziu drasticamente a velocidade que ele tinha consigo.
De um momento ao outro, aquele monstro já estava rente a ele, jogando o braço direito para trás, o sinalizador perfeito para um ataque direto, sem a menor chance de ser uma finta.
Restava-lhe duas opções: tentar um bloqueio perfeito ou confiar em sua energia e vigor para que tampassem noventa por cento do dano que viria.
O vazio que consumia a mente passou a responsabilidade para seus instintos, que ordenaram que o bloqueio fosse feito assim que viu o braço se movimentar para trás, ignorando os riscos.
E então, o golpe foi disparado, acertando em cheio os braços firmes de Morfius. O impacto conseguiu explodir o ar de uma forma ainda mais brutal do que a anterior, e o resultado era… trágico.
Com o mesmo resultado do qual uma parede reforçada teria ao colidir-se com um caminhão em velocidade máxima, os ossos de seu braço já estavam trincados.
A pele abraçava o tom vermelho, e os braços tremiam como se estivessem sofrendo com algum distúrbio, entregando-se à dor que os levou ao chão.
Mesmo que a energia que tinha tivesse barrado a maior parte do dano, ainda assim, doía demais; entretanto, infelizmente agora não era a hora de pensar na dor.
O próximo ataque já estava preparado, e, mais uma vez, seus braços tomaram à frente e mostraram para o que veio, aguardando com uma determinação maior do que antes.
E, então, boom. O ataque explodiu mais uma vez, e agora era o limite. Seus ossos foram de uma pequena trinca para uma rachadura completa, resistir a mais um era impossível.
Quem sabia disso melhor do que ninguém era aquele demônio da face imutável, que já preparava seu próximo soco, um que seria a finalização dessa história.
No entanto, antes que ele pudesse golpeá-lo mais uma vez, alguém se aproximava com uma velocidade superior à de um jato, rasgando o vento sem se importar com nada.
O ar lutava consigo mesmo para resistir à dor, enquanto gritava em todas as direções, atraindo aquela besta a olhar levianamente para o lado.
Demorou demais. Antes de entender o que estava acontecendo, o joelho de Saito já tinha explodido em seu rosto, fazendo seu corpo girar no ar antes que encontrasse o chão.
Saito, ainda muito prejudicado com a dor que o abraçava, tropeçou no ar até que caísse no chão, rolando até que uma árvore o impedisse de continuar.
Ainda que seu corpo não o obedecesse, levantou-se à força como uma marionete quebrada até os pés, esforçando-se até mesmo para respirar.
Sobretudo, seus olhos, brilhantes como um farol, negavam a todo custo que a luta havia terminado. Os lábios, abrindo-se para anunciar guerra, disse em poucas palavras:
— Vem, monstro do caralho.
Próximo Capítulo: Coragem, a Filha do Medo.
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