Capítulo 63: Mar Vulcânico
Na ausência de um coração pulsante, ou dos pulmões se estendendo para que o oxigênio o auxiliasse, nada existia senão o silêncio, que se tornara ainda mais forte quando esse detalhe foi percebido.
Não havia quase nada a ser sentido. Das mãos aos braços, ou dos pés às pernas, tudo estava tão desligado que era mais fácil dizer que não faziam mais parte do corpo.
Existia uma única coisa que sinalizava que sua existência não era falsa: uma intensa agonia, como se a ponta de uma agulha estivesse presa entre a pele e a unha.
Essa sensação tornava-se mais forte a cada instante. Mais do que uma possível ansiedade: um aviso. Seu corpo estava em queda, e o que tornava essa realidade ainda mais urgente era o fato de não haver nada a ser feito.
Segundos depois, o barulho de algo colidindo com o chão desabrochou pelo horizonte. Era grave, abafado e quase inaudível, mas ainda estava ali, provando que ele ainda estava vivo.
O espaço no qual se encontrava, preso entre o abismo da inconsciência e a luz da consciência, não o permitiria despertar tão cedo; precisava de um gatilho a mais, algo que o faria abrir os olhos.
E, felizmente, veio. Uma voz circulava pela escuridão, dizendo algo que não podia ser entendido, como se fosse um áudio corrompido que tenta se reparar constantemente.
— otiaS ,ratuL …ohlocse uE
Aos poucos, o que era sussurro tornou-se um murmúrio, e do murmúrio floresceu o necessário para seu despertar: a voz do único companheiro que estava ao seu lado.
— Eu escolho… Lutar, Saito.
Isso trouxe de volta o som do ar que lhe atravessava o peito para que sua respiração fosse possível, mesmo que ainda fosse calma e gentil para não machucá-lo.
O vento repousava sobre as pálpebras, tentando abri-las como uma janela, sussurrando para que ele despertasse. Na sua ausência, o que os aguardava seria a morte.
Instantes depois, sem pressa como alguém que acaba de acordar, seus olhos se abriram, observando o céu escuro que ainda era tampado pelas nuvens tempestuosas.
Ainda estava tão confuso que seus lábios nem faziam questão de se levantarem; não havia nada que pudesse dizer. Em contraste, os pensamentos divagavam consigo:
“Eu desmaiei…? Por quanto tempo?”
À procura de novas informações, as pupilas caminhavam pacientemente, até que encontrassem Morfius de pé, com seus olhares brilhando em ciano.
“O que ele tá fazendo aqui? Idiota… Deveria ter fugido.”
A mente travou involuntariamente após suas indagações, mantendo-se assim por um tempo breve, indicando que ele não estava apto a sequer estar acordado agora, mas isso não era negociável.
Na sequência, tentou apenas mover brevemente um único dedo, e isso bastou para que todo dano acumulado que seu desmaio havia escondido viesse à tona.
Seu corpo inteiro começou a se contrair; cada músculo pulsava como se tentasse fugir de onde moravam. A tremedeira vinha de todos os ossos, quase uma convulsão.
A boca tossia sangue, e a respiração, que já não se encontrava em seu melhor equilíbrio, agora estava completamente instável, como se estivesse com falta de ar.
Pensar estava além de seus direitos. Só conseguia saber, mesmo sem raciocinar, que enfrentar seu próprio corpo agora seria seu desafio mais difícil.
Apenas uma pequena parte de sua energia estava disponível para invocar os elementos, mas ele sabia que não seria a melhor das escolhas usá-la para que pudesse se mover.
Punindo cada uma das fibras que não quiseram obedecê-lo anteriormente, começou a mover seu corpo forçando os braços a trabalharem pesado.
Era possível sentir os músculos rangendo. Seu ombro estava quase descolando do corpo. As graves lesões o alertavam sobre a linha que ele estava ultrapassando.
Ignorando todos os sinais, levantou-se em seu ritmo lento, aparentando que poderia desmontar de novo a qualquer instante, mas esse era o risco a ser tomado pela sobrevivência.
Manter o pé direito levantado era mais do que uma obrigação. Esmagado do jeito que estava, seria problemático se ele tentasse andar normalmente.
Com todo esforço disponível, caminhou mancando até Morfius. Seus olhos escarlates estavam a ponto de fechar a qualquer instante, mas o brilho que lá habitava não diminuiu nem um pouco.
Lá estavam eles: dois guerreiros quebrando limites observando de cima a besta caída, que também precisava se esforçar para que pudesse levantar.
Antes que a batalha oferecesse a sua última rodada, Saito suspirou discretamente. Em seguida, forçou os lábios a se abrirem para que pudesse dizer uma última coisa importante:
— Desculpa ter te subestimado.
Essas palavras ecoaram pela mente de Morfius. Ao ouvi-las, não havia ego nem superioridade em seu coração, apenas o mais profundo respeito por alguém mais forte do que ele.
Saito voltou o olhar à criatura que ameaçava suas vidas. Nesse instante, o mar ciano e as lavas escarlates olhavam com impiedade a presa que deviam caçar.
Morfius, sabendo que a luta pela sobrevivência estava a um instante de começar, também deu a si mesmo o direito de dizer a última coisa que gostaria:
— Agora é guerra.
O monstro, antes desafiador, agora desafiante, levantou-se com as mãos nos joelhos. Sua situação atual exigia de seu pescoço um pouco mais de força para que se erguesse.
Suas visão estava turva e embaçada. Para ser pior, o mundo parecia rodar sem controle, quase o fazendo cair de novo; no entanto, um detalhe importante impediu sua queda.
Orbes vermelhas voavam em sua direção com hostilidade máxima, avisando ao mundo interior daquela besta que a morte estava mais próxima do que ele imaginava.
À primeira vista, sua reação foi apenas não fazer nada. Ainda era confuso, imaginava consigo se não era uma ilusão que enxergava, mas, felizmente para nós, não era.
Se não fosse seu instinto, manteria as mãos baixas até que o rosto fosse acertado outra vez. Porém, graças a ele, pôde levantar a guarda para defender-se do golpe que viria.
Saito, enquanto voava a todo vapor, rangia os dentes e lábios conforme seu punho direito apertava a si mesmo, quase esmagando os próprios ossos.
Assim que encontrou-se próximo o suficiente, seu soco foi disparado contra o antebraço adversário, ecoando o grave som do tiro de um tanque.
A pressão que esse ataque gerou forçou o desafiante a recuar, mesmo que estivesse com as pernas firmes ao chão, deixando seu rastro sobre a grama.
O local atingido foi de verde para vermelho em instantes, e o ranger dos lábios não escondia a dor que se multiplicava a cada instante que se passava.
Cada ataque, mesmo perfeito, deixa uma brecha, e aqui não foi diferente. Saito, tendo que manter seu pé direito flutuando, teve que pousar apenas com o esquerdo, encontrando por poucos segundos a incapacidade em se mover.
Seja um ou dois, segundos aqui decidirão vidas. Antes dessa brecha ter sido apresentada com seu pouso, a criatura já tinha preparado seu direto de esquerda.
E então, desejando devolver com três moedas a mais, também atirou seu golpe, que tinha como alvo o rosto de Saito, e o objetivo de arrancá-lo fora.
Saito não estava e nem podia se mover. Se estivesse sozinho, o fim de sua história teria sido agora; no entanto, Morfius, cheio de coragem, não permitiu que isso acontecesse.
Atirando-se entre Saito e o golpe que avançava, enterrou os pés ao chão e jogou seu ombro esquerdo para o punho, sacrificando mais de sua energia em troca de uma defesa.
Não havia tempo a perder. Sem intenções de o permitir pensar, cuspiu o sangue que encontrava-se preso em sua língua no olho esquerdo do desafiante.
A escuridão tampou completamente sua visão esquerda, permitindo que Saito passasse furtivamente por lá, agarrando o cabo da katana em um ataque que deveria ser definitivo.
Oferecendo o máximo que tinha, tentou cortá-lo ao meio, mas, antes que pudesse ultrapassar metade do corpo, a lâmina, derrotada com os desgastes, quebrou ao meio.
O suposto ataque derradeiro tornou-se a porta de entrada para mais um impasse, paralisando os três guerreiros assim que o barulho do metal se despedaçando ecoou.
Todos os instintos da criatura dilataram ao perceberem que sua vida acabara de ser decidida pela sorte, estando há poucos passos de ter a vida finalizada.
Os olhos, explodindo em sangue com o arregalar do ódio, não podia acreditar que toda uma vida de caça estava sendo predada por um mar vulcânico.
Apostando sua história na loucura, rugiu como nunca antes. Mais algumas árvores encontraram a queda e, o ar, que não teve o mínimo de paz nessa guerra, voltou a se contorcer.
Ainda que concentrasse parte de sua energia nos pés, Morfius não conseguiu evitar de ser empurrado para trás, esforçando-se como podia para não cair.
Saito, no ápice do desgaste, voou como uma das folhas quebradas, ricocheteando contra o solo inúmeras vezes até que a pressão do vento se acalmasse.
Estava distante, não sabia quanto, mas que seria problemático já era uma certeza. Sobretudo, observando brevemente os arredores, notou que a distância podia tornar-se uma vantagem definitiva dessa luta.
Hora de apostar tudo. O resultado da vida e da morte seria decidido nesse agora ou nunca. Respirou fundo, usando um dos segundos de paz que encontrou na floresta caída.
Uma minúscula parcela da energia restante foi para o vento trabalhar na locomoção. O restante ele doou para a eletricidade que, por agora, circulará por seu corpo.
A melhor decisão veio agora: ao invés de voltar de onde foi arremessado, começou a voar pelo horizonte, contando com o improvável para não ser percebido por ninguém.
Seus braços, caídos como um balão sem ar e ainda tão avermelhado quanto o sangue, não conseguiam sentir os próprios dedos, tampouco levantar.
Seu companheiro havia sido atirado como se fosse uma pétala sem um corpo interior, deixando-o quase sozinho, acompanhado somente pela criatura com sede de caça.
“Acho que… Acabou mesmo.”
Os pés não se moviam mais. Todo o esforço que fez para que não fosse disparado junto com Saito resultou na drenagem completa de sua energia.
“Não consigo me mexer…”
Sem energia, tampouco vigor, restou apenas um saco de carne e ossos que só estavam em pé porque a queda seria desgastante demais.
As pupilas, por vontade própria, erguiam-se até o topo para que pudessem enxergar o estado em que aquela besta imbatível se encontrava.
Lá estava ele: ofegante como se os pulmões tivessem desaparecido por um instante. Uma tempestade de suor escorregava da face, mas o sorriso confiante estava lá novamente.
“Eu fiz o que eu podia, mas…”
O monstro, em passos difíceis pelo desgaste, aproximou-se, com os punhos cerrados, de Morfius, esticando o braço para trás enquanto ouvia os ossos estalarem.
Por fim, com a força que lhe restava, golpeou o torso do oponente já derrotado, explodindo as costelas de seu peito enquanto o sangue jorrava em explosão.
O corpo de Morfius, sem força alguma para oferecer, pôde apenas voar até encontrar uma árvore que acalmasse sua queda, deixando-o escorado em seu último refúgio.
“Ah… Eu…Não quero morrer…”
As tosses, as folhas secas no chão se despedaçando com a caminhada da criatura, ou até mesmo o ar gelado, não podia sentir e nem ouvir coisa alguma.
Antes que os olhos se fechassem, pôde ver uma fagulha de luz escarlate vindo das costas da besta, disparando em direção à sua nuca enquanto o choque elétrico gritava por todo seu corpo.
Lá estava Saito, vindo do céu como um meteoro, mantendo as mãos juntas para trás enquanto as palmas estavam gentilmente abertas, segurando uma espada invisível.
Sua presença era furtiva pelo vento, mas não para os berros dos raios, fortificando-se a cada pequeno instante que se passava entre os segundos.
O arrepiar levantou-se pela espinha da besta, forçando-o a olhar para trás abruptamente, notando uma estrela escarlate voando em sua direção.
Com o último desespero, doou todo o restante da energia disponível para seu berro, forçando o vento a se contorcer incontáveis vezes até que se tornassem facas.
Saito atravessava aquele furacão cortante sentindo cada músculo descolado ser fatiado de pouco a pouco; no entanto, pelo preço de sua vida, tinha que continuar.
Além do corpo, seu olho esquerdo também foi fatiado, um corte vertical vindo acima da sobrancelha até a parte inferior dos olhos, tentando o impedir de continuar avançando, mas de nada adiantou.
O berro que estourava suas cordas vocais lhe deu a força necessária para continuar avançando, concentrando toda a energia elétrica em sua palma, criando uma espada espectral temporária.
Permaneceu em queda, causando uma chuva de seu próprio sangue, até que alcançasse o alvo de seu ataque mais poderoso feito até agora.
Em uma junção de feixes de luzes, um corte, limpo como o mar, distorcendo as cores do horizonte, foi realizado no pescoço da criatura que os ameaçava.
Saito encontrava-se agora sem energia, rolando no chão até que as raízes o abraçassem, deixando-o deitado ao lado de seu aliado esgotado.
Tinha forças somente para respirar, mexer os braços demandaria um esforço exaustivo, mas, ainda assim, Saito, ofegante, virou seu olhar para Morfius, que também o observava de volta.
Mesmo que fosse doloroso para ambos, ainda assim se esforçaram para que os braços, com os punhos fechados, se movessem um em direção ao outro em um toque comemorativo.
Claro, os braços caíram como saco de cimento logo após, restando apenas o descanso pós-guerra a eles. Mas, você sabe como funciona, certo, leitor? A aventura dessa dupla não vai acabar só nisso.
Próximo Capítulo: Relâmpago Escarlate.
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