Capítulo 65: Olhos do Sacrifício
Os pés estavam levianos sobre as folhas, ainda mais leves do que elas, como se nem as tocassem, mas ainda estavam ali, firmes, apoiando-se na delicadeza que ofereciam.
Faíscas elétricas emergiam e explodiam em todo o corpo como um ciclo interminável, influenciando a mente a pensar que estava cheio de energia, mesmo que não fosse o caso.
O olho intacto brilhava em um farol escarlate. A fenda que lá habitava estava dilatada como nunca antes, concentrando a atenção em um único ponto.
O outro, ainda cicatrizado, expulsava brasas em um tom amarelo neon, tentando enxergar o que estava à sua frente, mas, permissão, tampouco capacidade, tinha para isso.
Aquele que era o centro das atenções desse mar de ira encontrava-se à esquerda desse cenário, com os olhos mortiços e a face ainda neutra.
Suas mãos, antes expostas com a palma aberta, retornaram ao bolso da blusa. A ausência da guarda era sua defesa, e a tranquilidade que mostrava o avisava sobre o que iria acontecer.
— Entendi… Você quer minha vida o mais rápido possível pra conseguir proteger o garoto dos olhos estranhos, né?
Uma faísca sutil erguia-se atrás do rapaz, acompanhando o ritmo de sua voz enquanto almejava altitudes maiores do que as árvores podiam alcançar.
— Mas, deixa eu te contar um segredo antes…
O que era faísca tornou-se grande como uma bolinha de gude. Em pouquíssimos instantes já tinha a circunferência de uma bola de basquete e, segundos depois, transformou-se numa lua.
Era calma, seu ar transpirava serenidade e compaixão, quase como uma cópia perfeita do satélite natural que temos, mas, de pouco a pouco, tornava-se diferente.
Uma linha, mais escura do que qualquer abismo, conquistava seu espaço naquela esfera como uma linha do equador, conquistando tanto o leste quanto o oeste.
Segundos depois, cílios começaram a se formar, em uma tentativa de criar algo parecido com olhos humanos, e essa tentativa teve seu êxito.
Como se tivesse pálpebras, aquela lua abria de pouco a pouco o olho que as sombras lhe deram de presente, até que mostrasse sua face ao mundo.
Além da mais profunda escuridão, não existia nada; nem pupilas, tampouco luz, apenas a ausência da existência, até que algo começasse a surgir por vontade própria.
De pouco a pouco, faíscas prateadas começavam a se reproduzir sem descanso, como se tentassem ser algo parecido com um olhar já existente, um olhar universal.
Corrompendo a luz que iluminava as trevas, minúsculas letras se infiltravam no centro delas. A cor que tinham não era mais nada senão vermelha, composta por apenas dois caracteres: SC
E então, aquela coisa estava completa, fixa no céu, levantando ainda mais alto até que alcançasse as nuvens e se ocultasse atrás delas.
Nada aconteceu durante alguns segundos, quase como se tudo estivesse normal, mas, nada estava. Aquela coisa estava apenas esperando seu domínio crescer.
As nuvens começaram a se corromper com a cor vermelha conforme o tempo passava, e as estrelas deixavam de existir, suas presenças eram incômodas.
Alguns brilhos surgiram no seu lugar, brilhos esses que se locomoviam do oeste pro leste, rasgando os céus como se fossem estrelas cadentes.
Lá estava a lua obscura: posicionada no centro, olhando para baixo com seu olhar punitivo e paciente, observando como principal espectadora o embate que aconteceria.
Atrás dela, estavam seus incontáveis meteoritos em tom vermelho, reverenciando a mestra que os chamou para iluminar a escuridão com sangue.
— Me matar é um pouco difícil.
A tranquilidade ainda existia no garoto. Os olhos continuavam sem vida. Para ele, esse evento não importava. Se houver morte ou não, pouco interessa.
Enquanto esperava Saito fazer alguma coisa, algo era, de pouco a pouco, desenhado em sua testa com a cor de sangue que existia nos meteoritos.
Brevemente depois, a tatuagem temporária estava quase pronta. Lá estavam as mesmas duas letras que existiam na luz que a escuridão da lua criou: SC.
Completando o que faltava, um universo que conhecemos serviu de parede para essa sigla, olhos que são felicidade para alguns e sacrifício para outros: os olhos universais.
Uma linha em tom vermelho desceu da letra S até os olhos, cessando sua expansão somente quando atingiu a bochecha direita. O mesmo evento ocorreu com a letra C.
Diante dessa apresentação celestial, Saito respondeu com um suspiro envolto em chamas, firmando os pés no chão para dar base ao avanço.
As brasas elétricas eram lapidadas em hostilidade, crepitando1 sem um instante de pausa. O palco, feito de sangue, está montado. A batalha está pronta para começar.
Só que não. Indo além do que todos imaginavam, Morfius, com a cabeça baixa, quase inconsciente, caminhou por Saito até que ficasse em sua frente.
Metade do cabelo estava tingido em um tom enfraquecido do amarelo. Os olhos, mesmo que estivessem cansados, quase mortiços, ainda brilhavam em ciano.
De começo, Saito não entendeu. Ele havia se erguido para ajudar? Mesmo com a fadiga quase o derrubando sozinho? Suas dúvidas quase o fizeram indagar; no entanto, Morfius disse algo que ele não esperava.
— Vá… Até ele.
Os olhares de Saito abandonaram a hostilidade de uma hora à outra, abraçando o misto entre a hesitação e a confusão, deixando a guarda alta para trás.
Morfius moveu os dedos estremecidos para o lado esquerdo, apontando para a seta que Saito havia criado para indicar onde o norte ficava.
— É importante, né…? Se ele acabar morrendo, tudo acaba pra vocês.
Qual escolha tomar? Priorizar a sobrevivência de seu irmão ou arriscar a própria vida para salvar alguém que não conhece, mas que há vínculo?
Saito estava diante de diversos abismos: indecisão, impasse, incerteza, dúvida… O que sua mente não conseguia processar, os lábios tentavam encontrar a solução:
— E você?
Um breve silêncio expandiu seu véu. Aproveitando-se da ausência das palavras, a mente de Morfius revivia cada minuto de fraqueza que ele encontrou com aquele predador esverdeado.
Rendeu-se à dor, rendeu-se ao medo. Como se não bastasse, entregou a própria vida à sorte, sendo salvo por alguém que nem mover o corpo podia.
Cada miserável segundo de covardia que sua alma enfrentou, mesmo que estivesse em um passado próximo, ainda martelava dentro de si várias vezes sem um instante de descanso.
Tendo seu espírito totalmente quebrado, deseja por qualquer mínima oportunidade para se redimir consigo mesmo, e agora era perfeito.
— Você entende, né…? Por favor, de homem pra homem, me deixa ter meu orgulho de volta.
Ainda existia incerteza, sobretudo, insegurança. Deveria permitir essa ponta solta? Essa pequena chance dele morrer numa tentativa improvável de ficar bem consigo mesmo?
Como se lesse todas as preocupações de Saito, Morfius virou o pescoço gentilmente, encarando-o com olhares gentis e um sutil sorriso, pedindo com serenidade:
— Pode confiar em mim?
Não havia mais outro caminho. Respeitando tanto sua vontade quanto a pessoa que ele estava se tornando, Saito passou por cima de toda ansiedade gerada pela incerteza, virando-se para a seta que havia feito.
Em seguida, sem dizer uma única palavra, disparou rumo ao norte como um raio, cerrando os dentes para amenizar a dor no peito enquanto os olhos apertavam.
Agora, existiam apenas os dois: alguém com os olhos entregues à desesperança, e o outro com os olhares que buscam redenção a qualquer preço.
Pouco depois, o sorriso murchou feito uma rosa. Os olhares, antes calorosos, tornaram-se gelos, afiados e lapidados na dor da derrota.
Seus suspiros, longos e lentos, tatuavam na testa toda a fadiga que a mente tentava esconder atrás das cortinas, mas a poeira ainda era muito bem visível.
Em contraste, o garoto coçava a bochecha sem preocupação alguma, observando seu adversário com o olhar banhado em pena. Segundos após o breve silêncio que se instaurou, o mesmo apontou o dedo para Morfius, concentrando ali um pouco de sua energia.
— Meu nome é Marcos. É um prazer conhecer você.
Um barulho, agudo como um apito, se erguia gradativamente com o apoio do vento. Um brilho em tom amarelo, tão sutil quanto tímido, levantava-se da mesma forma na ponta de seu dedo.
— Vamos fazer isso rápido, por favor.
Morfius não dava a mínima a essas palavras fúteis. Toda sua atenção era direcionada à própria recuperação, preocupando-se com a dificuldade que teria para desviar do que viesse.
Feito um estalo que impede seus pensamentos, um assobio ecoou por todo sul, como se fosse fogo de artifício mais barulhento do que já era.
Ao olhar para o céu, a origem daquele som incômodo, percebeu um forte rastro em tom vermelho, indicando que uma das estrelas havia “caído”.
Não houve tempo para raciocinar. A mesma estrela vermelha já estava em terra firme, ao lado de seu portador Marcos, avançando em direção ao oponente apontado.
Quando os olhos de Morfius se deram conta da ameaça, ela já estava diante de seu torso, pronta para acertá-lo feito uma esfera cósmica.
Os braços, sem o consentimento do cérebro, levantaram-se em defesa, fechando os punhos depressa, fortificando o antebraço da maneira que podia.
Foi então que o impacto veio. O acerto foi certeiro, sem uma única margem para erros. Seus pés, incapazes de se opor a tamanha violência, não puderam evitar o voo de Morfius.
Os dentes cerrados impediam que quaisquer gemidos saíssem. A dor ressoava inquietantemente nos braços, caminhando entre os dedos até os ombros.
Felizmente, o dano era suportável. Mesmo que fosse uma aparente estrela, ainda não era mais bruta do que o oponente que ele havia enfrentado alguns minutos atrás… Por enquanto.
Os braços foram ao horizonte, buscando equilíbrio. Em seguida, distribuindo parte da energia em seu corpo, pôde atingir a estabilidade que desejava, manobrando a si mesmo para que caísse em pé, arrastando-se pela pressão do vento.
Com o breve descanso que surgiu, aproveitou para respirar o mais fundo que podia, entregando a mente ao vazio, deixando o combate nas mãos dos instintos.
Próximo Capítulo: Morte Estelar.
- @Maik: Significa estalar, produzir pequenos estalos como o som do fogo queimando madeira seca.[↩]
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