Índice de Capítulo

    O coração ainda pulsava, mas era sutil, silencioso e lento. Tornou-se somente um barulho que desagrada a escuridão e tenta agarrar-se à luz.

    As costas, agarradas ao chão, sentiam o ar gélido grudar na coluna e se espalhar para as costelas, como se fosse um parasita em busca de alimento.

    Sobretudo, uma sensação peculiar tocava cada lugar de seu corpo: temperatura elevada por todos os cantos, principalmente na barriga.

    Era como se incontáveis insetos de lava estivessem correndo em seu interior, devorando tanto as células quanto as fibras para se manterem vivos.

    Ainda que o abismo ocultasse sua visão, não era necessário ver para sentir o calor tornando parte de seu corpo a ponto de criar fumaça.

    Seu coração começava a bater mais forte, quase saindo do peito por vontade própria com tamanha força e, sobretudo, determinação.

    Pouco depois, os músculos, de pouquinho a pouquinho, se moviam pelo corpo, sutis feito cobras, e, por impressão ou não, o corpo de Douglas aparentava estar menor.

    Foi uma mudança discreta demais até para ele mesmo, mas os ganhos eram devastadores o bastante para fazerem os dedos se mexerem mais uma vez.


    Olhos, mais escuros do que o abismo que havia no céu, procuravam de leste a oeste o frágil coelho que ele permitira que escapasse.

    Os lábios, retos e monótonos, encurvavam-se discretamente perante o vazio do tédio. A mão, sem mais nada de útil para fazer, levou a foice ao trapézio.

    Narinas, desapontadas e um pouco tristes, desabafaram em um suspiro tão breve quanto um estalo. Pouco depois, encontrou a pista que buscava: rastro de sangue.

    Por um momento, questionou se a caçada valia a pena. Com tamanha fraqueza, tanto no físico quanto até mesmo no próprio título, Waraioni deveria estar morto.

    O pescoço inclinava-se de um lado ao outro, até as pernas cederem ao tédio e começarem a caminhar por vontade própria aonde ele poderia estar.

    Enquanto mantinha os olhos vagantes no céu abissal, não percebia a sombra, do tamanho de um gigante, ultrapassar seus pés. Os ouvidos, anestesiados em despreocupação e excesso de confiança, fizeram-se de mudos diante dos passos firmes e pesados que se aproximavam de suas costas…

    … No entanto, nada pode contrariar os instintos de sobrevivência. Por um momento, cessou seu caminhar e deu atenção aos sons, até um chamamento erguer-se logo após:

    — Ei.

    Assim que virou o rosto com desinteresse, um soco, tão rápido quanto explosivo, atravessou a defesa do vento e acertou a face em cheio.

    Os olhos viraram assim que sentiram o impacto, e as mãos perderam a força por um momento, deixando a foice escapar dos dedos.

    Uma pequena queda foi inevitável, mas não havia tempo para pausas. Não muito após, pôde sentir o estalar de um osso quebrado ecoar ao horizonte.

    Por instinto, agarrou a terra e impulsionou-se para frente, virando para trás logo depois, em uma distância segura o bastante para observar.

    Era aquele humano gigante de novo; no entanto, agora não estava tão grande assim. Seus pés pisaram com força na foice abandonada, quebrando-a sem pensar duas vezes.

    — Não tá esquecendo de nada?

    Os olhos de Douglas estavam firmes o bastante para confundir com um arregalar; as pupilas, por sua vez, dilatavam no ódio da fraqueza que apresentara.

    Seus punhos cerrados quase rasgavam a própria mão, e seu corpo aparentava estar intacto, até mesmo no nariz não muito tempo antes atingido.

    A criatura o observava com uma surpresa e confusão palpáveis nos olhos e lábios. A quebra de expectativa quase não o permitiu indagar-se:

    “Quem é esse…? É o mesmo humano fraco de antes?”

    Não foi de muita demora para o arregalar retirar-se de sua face. A neutralidade assumiu o controle, e o orgulho nublou seus pensamentos.

    “Tudo bem, eu só preciso arrancar a cabeça dele dessa vez.”

    Logo após sua conclusão cega pela confiança, seus pés, tão finos quanto ágeis, o locomoveram num instante para que ficasse frente a frente com o gigante renascido.

    Imediatamente depois, um soco de direita foi disparado no seu abdômen. A força foi a mesma, o impacto permaneceu gritante, mas o resultado foi diferente.

    Douglas permaneceu com as pernas firmes no chão, sofrendo somente um leve empurrão. Sua barriga ondulou em dor, mas não ousou fraquejar.

    Somente uma gota de sangue escapou dos lábios, e os dentes permaneceram firmes, cerrando qualquer dor que desejasse se expressar.

    A paralisia da dúvida afetou as ações daquela criatura por um breve período. Pouco depois, seus olhos do abismo ergueram-se para observar o humano…

    … Que não se parecia com sua raça. Ainda que o corpo estivesse menor, sua definição e musculatura o transformavam numa montanha desconhecida.

    Suspiro, ainda mais quente do que seu sangue borbulhando, caminhou por sua narina. Em seguida, os lábios, ainda firmes, abriram-se para indagar:

    — É tudo o que tem?

    Arrepios imperaram pelo corpo da criatura, e os instintos travaram o movimento dos pés. Imediatamente após, os braços, por vontade própria, protegeram o rosto com os dois antebraços.

    “Esse humano…”

    Logo depois, um soco de Douglas caminhava até a defesa daquele monstro e anunciava sua chegada forçando o vento a berrar. Esse ataque ecoou sua potência ao horizonte assim que fez contato com o alvo. Os antebraços daquele ser, por sua vez, entortaram levemente para frente.

    Seus lábios cerravam-se em dor e, pela primeira vez, sentiu seus próprios ossos; entretanto, ouvi-los trincar não foi uma experiência agradável.

    A pressão o arremessou para trás, mas não o suficiente para fazê-lo voar. Pouco tempo depois, jogou os pés ao chão para obter apoio.

    “Ele ficou mais forte…? Impossível.”

    Os joelhos encontravam conforto no solo, e seus braços se jogavam no chão, buscando refúgio no lugar onde incontáveis almas foram sacrificadas.

    “Nenhum de sua espécie fez isso até agora… Minha adaptação única era perfeita por conta disso.”

    Seu poder se resume no próprio resumo que fez: uma adaptação que supera todos os pontos fortes do adversário só de observá-lo, mas só pode ser usada uma vez por alvo.

    “Deve ser impressão, é a primeira vez que ele me acerta; mas, se, por acaso, não for…”

    Os dedos dos pés fincavam-se no chão. Uma energia sutil e prateada percorria todo seu corpo, até que curasse os danos do local atingido.

    “… Tenho que acabar com isso agora.”

    Seus olhos, ainda que refletissem o abismo, agora não eram entediados, muito pelo contrário, estavam tão atentos quanto pupilas dilatadas.

    Não havia mais deboche em sua fala, afinal, o tempo o fez calar-se. Não muito após sua recuperação, distribuiu força em uma das pernas para avançar.

    Seu salto, como sempre, foi ridículo de rápido, quase como um teletransporte. Assim que esteve frente a frente com o adversário, preparou os punhos.

    O ego atrapalhou seus sentidos a prestarem atenção em um detalhe importante: se o corpo diminuiu, a leveza ergueu-se de mãos dadas com a velocidade.

    Antes que pudesse esticar o braço para golpeá-lo, o punho cerrado de Douglas avançava primeiro, sedento pelo sangue de um ser incapaz de sangrar.

    A criatura, por sua vez, só conseguiu raciocinar sobre quando o ataque estava rente ao seu rosto, impossibilitando qualquer desvio ortodoxo.

    Só podia agarrar-se aos instintos, e assim foi feito. Em um instante, considerou todo o corpo inútil, senão seu único apoio no momento: as pernas.

    As pontas dos dedos foram as primeiras a agirem: doaram toda força que tinham para agarrar o solo, entregando uma base sólida o bastante.

    Em seguida, todo seu peso foi distribuído ao calcanhar, e o pescoço se jogou para trás logo depois, permitindo uma esquiva no limite do possível…

    No entanto, o perigo ainda não havia desaparecido. Para garantir que mais danos não o atingissem, saltou para trás, recuando pela primeira vez.

    “Não, não é por acaso…”

    Ainda que não tivesse um coração que funcionasse, sentiu seu peito pulsar em alerta. Os olhos arregalavam-se aos detalhes, e os dedos sentiam a tremedeira.

    “… Esse humano… Vou matá-lo agora.”

    Antes que pudesse dar continuidade, passos começaram a ecoar ao horizonte. Eram secos, sobretudo, lentos, como se tivessem tudo sob controle.

    A criatura foi a primeira a direcionar o olhar para onde o som vinha, observando de longe a presa que procurava: Waraioni. Seu semblante era neutro, e os olhos enxergavam tudo com desinteresse, até que encontrassem o estado atual de seu único aliado.

    Os músculos estavam visivelmente menores, mas a definição não deixava a desejar. Bastou um momento para que entendesse que aquilo era efeito de seus poderes.

    Assim que analisou o cenário com toda a calma que adquiriu, caminhou até que ficasse lado a lado com Douglas, dizendo logo após:

    — Poder maneiro o teu.

    Douglas o observou assim que notou sua presença. Seu olhar ficou sereno em um instante, e um leve conforto abraçou seu peito ao ver o atual estado de seu companheiro.

    Aquela raiva, cega e aparentemente sem propósito, tinha cessado. Ainda que não fosse algo permanente, era um progresso que o deixou orgulhoso.

    — É, pois é. Nem sabia que eu tinha.

    A criatura os observava com uma atenção que nem sabia que tinha. Se um já era perigoso o bastante, dois seria suportável? Pela primeira vez, a possibilidade da derrota passou por sua cabeça, e isso foi desagradável o suficiente para fazê-lo torcer os lábios.

    Em um suspiro tão profundo quanto rápido, afundou o braço no chão mais uma vez, criando para si mesmo uma foice ainda maior que a anterior.

    Agora, era tudo ou nada. Na escuridão de seus olhos, não havia espaço para brincadeiras, e tudo o que via à sua frente eram dois seres que deviam morrer.

    Próximo capítulo: A Morte Deseja Vida.

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