Capítulo 86: Proteção da Chuva
Os olhos do abismo observavam o garoto dos olhares brilhantes e cianos, e tudo o que se passava por sua mente era: “Não posso permitir.”
Ainda que não soubesse a causa, seus instintos o alertavam: se deixá-lo viver por mais tempo, seria forte o bastante para se dizer intocável.
Sendo assim, fincou os dedos no chão e inclinou os joelhos, e estava quase tudo pronto para seu avançar, só faltava o suspiro… E foi feito. Seu disparar humilhava a velocidade de um tiro, e em um único instante ele já estava frente a frente com a tão incômoda existência…
… No entanto, aqueles olhares cianos o acompanhavam sem pressa alguma, e o observavam como se tudo estivesse ao alcance de seu futuro.
Aquela serenidade inabalável, ainda mais estável e calma do que um mar que nunca foi tocado; esse controle, que beirava o celestial, fazia o monstro desejar vomitar.
Seu punho cerrou antes que o cérebro comandasse, e sua atenção estava abraçada ao garoto estúpido mais do que deveria. Ao focar-se em um único ponto, esqueceu que o exterior ainda existia, e tampouco sentiu ou ouviu os passos pesados que buscavam sua vida.
Antes que pudesse lançar seu corpo, Douglas saltou em sua direção e golpeou sua costela com a cabeça, lançando ambos ao chão enquanto se arrastavam na terra.
As pálpebras da criatura se ergueram ao céu, e os olhos mal percebiam que seu corpo estava ricocheteando no solo até que o atrito o impedisse de continuar.
Ainda que não tivesse um corpo cem por cento humano para chamar de seu, sentiu angústia o bastante para fazê-lo levar a mão ao local atingido.
Os dentes cerravam com o incômodo que se transformou em dor, e seus olhos só não caíam do rosto porque eles nem sequer existiam.
Não demorou muito para que procurasse aquilo que o atingiu: um homem, também caído, erguia-se sem pressa enquanto os dedos esmagavam o chão.
Entretanto, alguma coisa estava tão visível quanto diferente. Sua altura continuava a mesma, mas todos os músculos gigantes desapareceram.
Tudo o que restava era um corpo definido e atlético, um que não tinha a desvantagem do tamanho, mas carregava consigo o benefício da força.
Segundos foram necessários para que ele entendesse que quem estava há alguns metros de distância era o mesmo homem que sua foice tinha atingido.
Ainda assim, negou-se. Ele, por acaso, voltou dos mortos? Onde estava a ferida quase fatal que tinha causado ao humano como uma garantia de sua morte?
Sem que tivesse um coração para bater, sentiu os arrepios causados por um, que trouxe consigo, dos pés à cabeça, a ansiedade da morte.
Não muito distante de si estava um humano com um físico com mudanças extremas, e logo atrás dele estava o garoto que via o futuro.
O ego tentava convencê-lo: “Basta matá-los! Qual a dificuldade?”, e os instintos de sobrevivência alertavam: “Se você não matar um dos dois, morreremos.”
E assim o tempo passou, até que Douglas se levantasse para continuar a batalha. Enquanto estalava os dedos, vapor escapava pelos lábios entreabertos.
A criatura também estava de pé, e raciocinava sobre qual era o alvo mais fácil de matar; no entanto, dessa vez, não seria ele quem avançaria para começar uma batalha.
Douglas já havia feito isso, e em um único momento estava à sua frente, com o punho cerrado rente ao abdômen exposto daquele ser.
O golpe foi certeiro, e o impacto foi forte o suficiente para fazer a chuva se ausentar por um instante. Os olhos abissais da entidade explodiam em dor, e um suspiro levava consigo todo o ar que havia guardado.
Não havia tempo para pensar, outro golpe tão poderoso quanto estava em direção à sua cabeça. Ao perceber o destino que o aguardava, entregou-se a um berro.
O desespero, a ansiedade, a angústia, a frustração… Tudo isso culminou em um grito ardente, que ecoou ao horizonte como uma carta assinada de sua ira.
Quando o ataque estava a poucos períodos de acertá-lo, inclinou os joelhos e jogou o pescoço ao chão enquanto cerrava o punho direito.
Assim que sua esquiva aconteceu, lançou seu mais poderoso soco até então, em direção ao abdômen adversário. Poucos ossos quebravam, outros trincavam, mas todos os gritos foram ouvidos.
Ao mesmo tempo, rotacionava o corpo para trás para o lançar na direção oposta de Waraioni, e assim foi feito; o impacto foi poderoso o bastante para arremessá-lo mais uma vez.
Não havia tempo a perder, a ação seguinte deveria ser imediata, e foi. Virou-se logo após, e correu em direção ao inimigo que mais lhe ameaçava.
Enquanto isso, moveu a palma direita para o ombro esquerdo, agarrando-o com tudo o que tinha até que arrancasse seu próprio braço.
Pouquíssimo depois, fez de seu próprio braço a foice mais afiada que poderia criar, e não foi de demora alguma para que ficassem frente a frente.
Waraioni fixou seu olhar na arma, e nenhuma outra reação senão a neutralidade afetou sua face. Sabia que o ataque estava cada vez mais próximo e, ainda assim, não se moveu.
Na ausência de uma resposta, a foice alcançou sua barriga e começou a atravessá-la; no entanto, não havia corte e tampouco sangue.
Pouco depois, a arma completou o seu “corte”, que conheceu a barriga e massageou as costas até se afastar por completo de seu corpo…
… No entanto, esse era apenas o presságio. Assim que o começo do seu ataque terminou, a criatura endireitou as costas e respirou fundo.
Logo depois, fechou o olho direito e levou o esquerdo ao topo, encarando brevemente o céu antes de levar sua foice para cima. Os punhos apertaram o cabo de sua arma, e os lábios curvavam em hesitação, mas agora não era a hora certa para voltar atrás.
Seu grito ecoava ao horizonte enquanto o braço erguido se abaixava o bastante para que a ponta da foice encontrasse o chão. No mesmo instante, uma energia vermelha começava a vazar do olho aberto1 e se expandia por metade de seu corpo, deixando-o em cor carmim.
Em seguida, uma névoa do mesmo tom se retirou de lá e caminhou em direção a Waraioni sem pressa, e manteve-se não muito distante dele.
Por alguns minutos, fixou-se no mesmo lugar enquanto o restante de seu “corpo” movimentava-se como uma onda, até que o próximo instante chegasse.
E então, afiou-se de uma hora a outra, e disparou feito uma bala a caminho do peito de Waraioni, que ainda se ausentava de respostas.
A névoa invadiu-o pelas costas e avançou rumo ao seu coração, e não foi de demora alguma para que o enrolasse por inteiro. A fumaça contorcia-se em si mesma, como se desejasse apertá-lo até a morte, mas não era o caso; o que ela buscava era autodestruição.
Sua vontade tornou-se uma realidade em poucos instantes. A névoa se dissipou e, por vontade própria, saiu do corpo em passos lentos.
Todo esse evento aparentemente sem sentido tinha um único propósito: um ataque fatal e “impossível” de desviar, que começava agora.
Ao redor de Waraioni, as cores abandonavam a vida, deixando-o em um mundo onde só havia preto e branco, e o único brilho que existia vinha de seus olhos.
Seu corpo sentia o ar tornar-se gelado de repente, e tanto os dedos quanto o restante do corpo não conseguiam se mover de forma alguma.
A única coisa que se movimentava era seu olhar sereno, que caminhava de um lado ao outro, até que encontrasse algo sob sua cabeça: uma lâmina.
Estava afiada, sobretudo, aos outros, era entregue ao tom prateado; para ele, ciano, e tal arma caminhava com pressa para matá-lo.
Ainda que não pudesse se mover, havia uma habilidade que o permitiria se transportar, e foi ela a escolhida para salvá-lo dessa situação.
Quando estava prestes a ser atingido, sua forma espectral estava numa posição onde a lâmina não alcançaria seu crânio, e foi para ela que ele trocou de lugar.
O primeiro ataque foi esquivado com sucesso, mas ainda havia o segundo, correndo em direção ao seu peito enquanto rezava para acertá-lo. Seu poder foi ativado novamente; dessa vez, em posição de rasteira, e assim a lâmina não encontrou o alvo que tanto procurava.
A última tentativa vinha de cima para baixo, ocultando-se na terra para que fosse certeiro, mas nem isso escapou dos olhares cianos.
Seu fantasma azul estava posicionado um passo atrás, e a troca foi mais do que natural. O ataque que custou metade do corpo da criatura foi tão inútil quanto correr atrás do vento.
O monstro, que não olhou para trás em nenhum momento até então, encontra-se ajoelhado, respirando com pressa enquanto toca na própria face.
Ainda que não visse, podia sentir a carne latejando, ocultando sua aparência podre no tom vermelho que sua alma ofereceu naquele ataque.
“Me custou quase tudo, mas…”
A fadiga era palpável, mas a certeza iluminava o seu olhar o bastante para fazê-lo, de pouco a pouco, mover o pescoço para trás com uma leve determinação.
“… Pelo menos ele morreu.”
O fio de esperança murchou como flor ao ver o humano em pé, intacto, logo à sua frente, observando-o de cima como se ele não fosse nada.
Antes que pudesse sequer perguntar como, Douglas surgiu de repente e chutou sua face; assim, lançou-o ao horizonte, e o deixou rastejar sozinho no chão.
A energia já não era mais a mesma após seu chute. O corpo sutilmente voltava ao seu tamanho normal, e a fadiga tornou-se seu sobrenome.
Escuridão, tão silenciosa quanto fria, invadiu a mente sem sua permissão, deixando-o pesado o suficiente para derrubá-lo de costas ao chão.
Waraioni olhou para seu companheiro, e deu atenção exclusiva aos hematomas do corpo que estavam ocultos pela determinação. Eram inúmeras, e nem eram todas; quanto mais tempo se passava, mais eles apareciam para decorar Douglas com as dores que escondeu.
Infelizmente seus olhos não tinham tempo para lamentar, e ele sabia disso. Alguns segundos foram necessários para que ele retornasse o pescoço para a frente.
Lá estava a criatura: deitada, agarrando a terra em uma tentativa desesperada de tentar absorver os mortos, mas não havia força sobrando para isso.
Waraioni aproximou-se dele com passos calmos, mas audíveis o suficiente para ecoar até os ouvidos do “morto” que teme a morte. Ainda que seu corpo murcho tremesse dos pés à cabeça, olhou para cima, e observou o ser que o encarava de volta como se ele fosse um simples nada.
O garoto tocou seu próprio peito, e um chuvisco de sangue começou a cair dos olhos, e não foi de demora alguma para que se tornasse chuva.
— Quer saber de uma coisa…?
Uma energia ciana, tão brilhante quanto o sol ao meio-dia, iluminava seu peito enquanto seus olhos giravam no sentido horário cinco vezes por segundo.
— Eu vi todos os futuros…
Pouco depois, a energia crepitou, colapsando consigo mesma para que pudesse criar a arma que pertence aos ceifadores: foice da cor ciana.
— … Em nenhum deles você vencia.
A arma saiu de seu peito instável, quase desaparecendo enquanto se contorcia para manter-se existindo, mas ainda estava usável. Isso não é nada mais e nada menos do que uma variante da forma espectral. Ao usar a visão de futuro em si mesmo, pode moldar sua recém técnica o quanto quiser.
Logo depois, ergueu a foice contra o ceifador, que não tinha mais forças nem para gritar. Tudo o que pôde fazer foi observar sua própria lâmina voltar contra si.
— Vaza.
O golpe foi certeiro no pescoço, e o corte foi limpo o bastante para entregar ao rei dos mortos uma morte indolor que ele nunca ofereceu aos outros. Silêncio prevaleceu por alguns segundos, até que, do pescoço vazio daquele ser, incontáveis fagulhas de luz começaram a surgir.
Cada uma delas era como pétalas prateadas e sutis, que caminhavam ao mundo externo antes de subir ao céu que estavam à sua procura.
Waraioni também sentia seu limite: tontura, olhar embaçado, leveza repentina, mas, ainda assim, ergueu os olhos ao topo e manteve-se firme.
Ainda que não estivesse enxergando perfeitamente bem, pôde testemunhar as almas dos que sofreram retornando às nuvens. De pouco a pouco a chuva recuperava a vida que não tinha: toque, temperatura, presença… Tudo aquilo que foi tomado pela morte.
Passou-se tanto tempo para aquela floresta abandonada que a possibilidade de encontrarem vida era algo que até mesmo o universo duvidava; entretanto, o universo não prevê o futuro.
No seu próprio ritmo, as chuvas mudavam a cor para verde e a temperatura para morna, não por enfeite, mas com o propósito de proteger e curar.
Aos dois guerreiros que encontram fadiga e dor, ela será o refúgio. A cura que o sistema não tem interesse em oferecer, ela doou de bom grado.
Próximo capítulo: Eclipse em Direção ao Fim.
- @Maik: Muita calma nessa hora, viu? No capítulo 80 eu disse a vocês que ele não tinha olhos, e não tem! Só que, falando dessa forma, fica mais fácil de descrever.[↩]

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