Volume 04 - Capítulo 1: Realidade execrável
1. Realidade execrável
A dor de perder alguém é insuportável.
Afinal, Haruhiro certamente não imaginou que seria forçado a passar por isso novamente.
Claro, ele considerou a possibilidade. É fato que ruminava1 a respeito dessas eventualidades mais do que qualquer um de seu grupo. Era como uma sombra amedrontadora que sempre habitou o âmago de seu coração.
Mas, sobre a experiência real de perder um amigo, Haruhiro sempre via isso como uma possibilidade e não uma certeza.
Foi bem diferente de quando perderam Manato. Dessa vez, aconteceu sem que eles realmente entendessem a situação em sua completude e, quando perceberam, havia apenas dor.
Carregaram o corpo de volta para Allpea, o cremaram e enterraram as cinzas na colina onde ficava a torre. Essas memórias ainda são recentes, mas tudo passou estranhamente rápido e essas lembranças quase se tornaram um borrão. Provavelmente porque Renji e os outros os ajudaram, então as coisas correram relativamente bem.
Porém, a partir daí, foi terrível.
Haruhiro perdera outro amigo. Eles o queimaram, reduziram-no a cinzas e ossos, e agora ele descansava eternamente naquela colina onde ninguém o perturbará. Daquele dia em diante, Moguzo viveria apenas nas lembranças de seu grupo.
Embora ele tenha partido, ainda existiam vestígios deixados para trás como pegadas que comprovariam sua história.
Seu equipamento, por exemplo.
Lá estava sua armadura de placas e seu capacete, ambos amassados, junto com o Triturador, um dos espólios da luta contra o Deathpach. Eles não podiam queimar essas coisas, mesmo se quisessem. Afinal, eram feitos de metal, então isso seria muito custoso.
Mesmo assim, não podiam simplesmente se desfazer de tais itens. Também não tinham espaço para guardá-los.
— … por enquanto, poderíamos deixá-los em um depósito… talvez. — Disse Shihori.
Ninguém se opôs à proposta dela. No entanto, quando foram para o depósito da companhia Yorozu, descobriram um inconveniente.
— Sim, é possível, para você, depositar itens que não sejam dinheiro em nossa companhia. — Disse a quarta Yorozu, uma jovem usando trajes vistosos carregados de vermelho e branco com detalhes dourados, além de um par de óculos presos numa armação dourada. Ela bateu seu cachimbo de ouro no balcão. — Quando você deposita dinheiro, a taxa de depósito é um centésimo do valor depositado. Quando você deposita um item, a taxa sobe para um quinquagésimo do valor estimado do item. Entretanto, mesmo sem avaliá-los, posso dizer que aquele capacete e aquela armadura não valem nada.
— Hein…? Como assim? — Haruhiro ficou um pouco indignado.
— Você precisa que isso lhe seja explicado, insolente?
Desde o primeiro dia em que se conheceram, Yorozu dirigia-se a Haruhiro como “insolente”. Foi frustrante.
— Aquele capacete e armadura são inúteis. — Reforçou a quarta irmã. — Mesmo que você pague para consertá-los, me pergunto se ainda teriam alguma utilidade. De qualquer forma, sugiro que você vá a um ferreiro e pergunte se ele compra sucata.
— Ei, você! Enrole essa língua…! — Ranta vociferou.
Haruhiro impediu Ranta de pular sobre o balcão, mas compartilhava de sua raiva.
Sucata! O que você está chamando de sucata? Essa era a armadura do meu amigo, caso você não saiba! É uma lembrança. Você não pode chamar de sucata. Você não sabe porra nenhuma, então não vem me falar essas merdas!
No entanto, isso não era bem verdade.
Yorozu estreitou os olhos e encolheu os ombros delicados. — São lembranças de seu companheiro, correto? Informações de todo tipo tendem a chegar à Yorozu, sabe? Estou ciente da sua situação, mas nesta empresa existem algumas regras que nem mesmo uma Yorozu pode quebrar. Não importa o motivo, não podemos lhe dar um tratamento especial. Você não pode depositar itens sem valor em nossa empresa. Afinal, nosso espaço de armazenamento é finito. Se esses itens são tão preciosos que você não suporta a ideia de descartá-los, então deveria cuidar deles você mesmo.
Essa foi uma afirmação que forçou Haruhiro a ficar calado. Se os itens são importantes para eles, então deveriam permanecer sob seus próprios cuidados. Sim, é isso mesmo. Yorozu estava absolutamente certa e seria errado julgá-la por pensar dessa forma.
— … Bem, que tal a espada? — Perguntou Shihori.
Yorozu acenou com a cabeça. — Isso, você pode depositar conosco, é claro. No entanto, ela já pertenceu Deathpatch, não é? Não será barato.
Quando pediram a um dos funcionários especialistas para avaliá-lo, o preço realmente foi alto. A avaliação estimou o item em 25 moedas de ouro. A taxa de depósito ficou em 50 moedas de prata. Embora não fosse um valor muito além de suas possibilidades, foi o suficiente para fazê-los ponderar.
— Yumi acha que talvez não precisemos decidir agora…
Haruhiro concordou. Na prática, postergar essa decisão os deixava com o problema do que fazer com os itens. Parecia que, apesar dos pesares, eles não teriam escolha a não ser depositá-lo de qualquer maneira. Ainda assim, não precisavam decidir imediatamente. Poderiam fazer isso amanhã, depois de amanhã ou na próxima semana, etc. Haviam outras prioridades no momento.
— Enquanto você está aqui, por precaução, deixe-me perguntar, o que deseja fazer com os ativos do falecido?
— Ativos? — Haruhiro perguntou.
— O falecido tinha dinheiro depositado em nossa empresa. Normalmente, apenas ele próprio seria capaz de retirá-lo, mas, em caso de morte, é possível que outra pessoa o faça seguindo os procedimentos adequados.
— Bem… Isso é sério? — Perguntou Haruhiro.
— Especificamente, você teria que passar pelo escritório do Corpo de Soldados Voluntários para adquirir uma certidão de óbito e uma procuração, ambos emitidos pelo marquês.2 Após a verificação desses documentos, nossa empresa devolverá os bens do falecido ao seu representante legal. — Disse ela
— O escritório… Certificados…
— Para sua informação, no momento, não podemos divulgar mais detalhes sobre os bens do falecido. — Informou Yorozu.
Quanto Moguzo economizou? Haruhiro ponderou. Ele comprava uma armadura sempre que tinha dinheiro para isso, e suas refeições não eram baratas, então ele não poderia ter economizado muito. Ainda assim, acho que seria muita negligência ignorar isso. Quando perdemos Manato, não sabíamos distinguir entre esquerda e direita, então não pudemos lidar com isso de maneira adequada. Desta vez, quero fazer as coisas do jeito certo. Eu preciso.
Haruhiro seria o único a pensar nisso?
Um dia depois de irem ao depósito da Companhia Yorozu, Haruhiro visitou o escritório do Corpo de Soldados Voluntários sozinho. Ranta não saía da cama e Haruhiro não conseguia ter uma conversa clara com Yumi e Shihori. Quanto a Mary, ela sequer estava no mesmo prédio. Haruhiro não teve escolha a não ser vir sozinho.
Quando foi falar com Britney, também conhecida como Bri, sobre a papelada, ela o ouviu sem demoras.
— Ah é você! Timing perfeito. Vamos falar sobre recompensa. Hã, o que você quer dizer com isso? Você não foi à reunião para decidir como ia ser dividida, não é? Ouvi dizer que isso causou alguns problemas para eles. Renji e Kajiko, claro. Bem, tenho certeza de que você estava muito ocupado se preocupando com outras coisas. Ainda assim, é em momentos como esse que você precisa entrar lá e reivindicar seu direito, caso contrário você acaba de mãos vazias, sabe?
— … Recompensa. — Haruhiro murmurou. — E-espera. Huh…?
Eles já tinham recebido o pagamento da encomenda quando regressaram à Allpea após a conclusão da operação. O restante do saldo devedor era de 80 pratas cada, pago na forma de alforge militar: finas notas de cobre emitidas pelo Exército da Fronteira.
— Ah. —Haruhiro percebeu. — Você se refere ao guardião, Zoran Zesh, e ao feiticeiro, Abael…?
— Sim. — Bri lambeu os lábios negros e fechou um olho.
Oh, por favor, pare, pensou Haruhiro. Não me provoque, não agora.3
— Zoran Zesh valia 100 de ouro, Abael valia cinquenta. Isso dá 150 no total. — Disse Britney. — Pelo que ouvi, você e seu grupo acabaram com Abael quase que totalmente sozinhos.
— Ah… Bem, sim… eu acho. Agora que você mencionou, acho que meio que não foi exatamente assim.
— Então, em casos como esse, as coisas geralmente são divididas igualmente. — Inquiriu Britney. — De outra forma, haveria confusão.
— Bem… você pode estar certo sobre isso. Ou não. Quem sabe!?
— Qual o seu problema com você? — Bri ficou um pouco revoltada. — Vocês realmente se destacaram lá. Não está feliz?
— Feliz…? — Haruhiro quase caiu na gargalhada. Não porque ele achasse engraçado, é claro. Não, não era isso. É mais como se ele…
Tudo o que ele podia fazer era rir? Não, não era isso também. Tipo, “Você não entende? Você é burro?” Tipo, “Isso é brincadeira, não é?”
Haruhiro olhou para baixo, cerrando os punhos. — … não, não vejo razão para estar feliz.
— Entendo. — Bri suspirou.
Haruhiro ainda olhava para baixo e não podia ver a expressão no rosto de Britney A intenção era justamente não olhar diretamente para o resto dela.
— Independentemente disso, você tem direito a uma parte do dinheiro da recompensa e eu estou segurando sua parte. De acordo com Kajiko, Renji basicamente a esmagou, mas você ganha 60 de ouro.
— Sessenta?! — Haruhiro engasgou.
Foi difícil não ficar chocado com esse número. Ele sentiu como se de repente tivesse acordado de um sonho.
Ah, se tudo isso fosse apenas um pesadelo, então havia motivos para felicidade.
— Sessenta ouros? V-você quer dizer, tipo, 60 moedas de ouro…? — Ele gaguejou.
— Isso mesmo. — Bri confirmou — ou, se convertermos em moedas de prata, 6.000. Divida por seis – não, cinco – e cada um de vocês receberá 12 de ouros.
— Doze… — Haruhiro murmurou.
A maneira como Britney evidenciou a conversão do valor em moedas de prata tocou em um ponto crítico por se tratar de uma quantia tão grande de dinheiro que ele ainda não havia caído que era real.
Mas não estou feliz, Haruhiro pensou. Nem um pouco feliz.
— …Vamos levar tudo que pudermos, mas…
— Mas? — Bri interpelou.
— Não… Nós aceitaremos. Com gratidão. Afinal, é melhor ter dinheiro do que não ter. Aceitar isso não vai nos machucar. Ah, mas antes disso
— Uma certidão de óbito e uma procuração, certo? — Perguntou Britney.
— Sim.
— Vai demorar um pouco.
— Quanto? — Haruhiro perguntou.
— Afinal, tem que passar pelos burocratas. Seja paciente, deve levar uns dez dias. Eu acho que por volta das sete, talvez. Quase nunca os emitem em seis dias. O quê? Parece que você só quer que isso acabe logo.
— … Honestamente, acho que é isso mesmo que estou sentindo. — Haruhiro disse.
— Não vai ser tão simples. Se você fosse parente de sangue, poderia ir à Torre Tenboro e assinar os papéis você mesmo. Mas soldados voluntários não são família. Se ele fosse casado, seria diferente.
— Casado…
Essa era outra palavra que simplesmente não parecia real, e Haruhiro não pôde deixar de pensar em como Moguzo nunca seria capaz de se casar.(O jeito como essa novel me deixa p baixo é diferente))
Ele não poderia. Não mais. Parece uma mentira. Eu levantei o corpo imóvel de Moguzo com minhas próprias mãos, carreguei-o até o crematório, e até vi os ossos e cinzas que sobraram depois, e ainda não consigo acreditar. Eu não quero acreditar.
— Ele ainda não estava, certo? — Bri perguntou. — Casado, quero dizer.
— … Não, não estava.
— Para um soldado voluntário solteiro, sem parentes, é o escritório do Corpo de Soldados Voluntários que confirma sua identidade. Vou precisar das assinaturas de todos vocês.
— Hã? Não só de mim? — Haruhiro perguntou.
— Não. Tem que ser o grupo todo. — Confirmou Bri. — E eu vou precisar que todos vocês assinem na minha frente. Essa é a lei.
— Então, então… — Haruhiro balbuciou.
— Volte mais tarde.
Ao sair do escritório desanimado, Haruhiro não sabia o que fazer. Ranta, Yumi e Shihori ficariam bem. Mas e quanto a Mary?
Pensando bem, até agora, nunca conversamos de verdade sobre planos, pensou Haruhiro. Nós apenas nos reuníamos no portão norte todas as manhãs, como se fosse a coisa natural a se fazer. Depois que Moguzo morreu, nós conversamos sobre o que fazer no dia seguinte? Espere, não, é só isso. No dia em que aconteceu, tivemos que cuidar do enterro e outras coisas, então Mary ficou no quarto de Yumi e Shihori naquela noite. Acho que foi por volta do meio-dia, no dia seguinte. Quando eu a vi na pousada, conversamos sobre o que fazer com as coisas de Moguzo, então fomos para o depósito… e, quando nos separamos à noite, não decidimos o que fazer no dia seguinte.
Me pergunto o que Mary está fazendo. Yumi e Shihori talvez saibam onde ela mora. Acho que o único jeito é perguntar pra elas. Na verdade, pode ser melhor Yumi e Shihori conversarem com ela em vez de mim. Em momentos como este, seria melhor se fossem todas meninas. De qualquer forma, preciso encontrar uma maneira de entrar em contato com ela.
Haruhiro segurava uma nota de 60 ouros. Ele precisava dividir entre cinco pessoas.
Cinco, hein. Cinco pessoas. Uma nota. Divida em cinco partes…? Eu não posso dividir uma única nota. Tenho que trocá-lo por dinheiro primeiro. Se bem me lembro, posso fazer câmbio na Companhia Yorozu. Gostaria de ter passado pelo escritório antes de ter ido à Yorozu. Mesmo assim, só descobrimos o procedimento que precisamos seguir lá na Companhia, então acho que ia dar na mesma.
— Ahhh… — Enquanto Haruhiro arrastava os pés pela estrada de volta à pousada, começou a sentir repulsa do que acontecia. — Mas que merda…
Eu queria simplesmente ficar parado. Me encolher num canto e segurar minha cabeça. Eu quero me enrolar feito uma bola e ficar assim para sempre.
De repente, ele se lembrou de Choco. Ele tinha se esquecido totalmente. Haruhiro esteve tão centrado em si que acabou se esquecendo.
Não estou nada bem. Minha situação é tão ruim que tudo que posso fazer é rir. Choco morreu, não morreu? O grupo dela também. Certamente morreram em batalha. Eu me pergunto o que aconteceu com Choco. Alguém deu a ela um enterro adequado? Para começo de conversa, o plano foi conduzido pelo Exército da Fronteira. Duvido que eles deixem corpos espalhados após a batalha.
Enterro…
Velório…
Nós os queimamos, os reduzimos a ossos e cinzas e depois os enterramos naquela colina, mas de que adianta? Não faz a mínima diferença. Porém, se não os cremarmos, a maldição do Rei Imortal os transformará em zumbis. Não me agradaria permitir que Choco retornasse como um zumbi. Eu não quero isso, definitivamente não.
Aos que morrem, nada mais lhes resta a fazer. Cabe aos vivos fazer algo a respeito dos corpos.
Mas esse é o jeito certo de lidar com as coisas? Há outra maneira? O que você acha, Moguzo? Não há mais nada que poderíamos fazer? Tipo, você gostaria que fizéssemos as coisas de alguma forma? Ou havia coisas que você não gostaria que fizéssemos? Não estamos fazendo nada de errado, estamos?
Ah, tanto faz, ele não responde. Moguzo se foi. Choco também. Mortos.
Não parece real, mas é.
Essa é a verdade.
Nua e crua.
— Nós nunca deveríamos ter ido… — Ele murmurou.
A ordem. Nunca deveríamos ter aceitado isso. O grupo da Choco também não deveria. Foi demais para nós.
— Quem teve a ideia…? — Ele se perguntou.
Foi o Ranta. Maldito seja.
... Mas fui eu quem tomou a decisão.
Se Haruhiro não tivesse votado a favor, poderiam não ter aceitado a ordem. Não, não teve essa de “poderiam”. Eles simplesmente não teriam aceito.
Se ele não tivesse falado com Choco sobre seu grupo aceitar, ou não, o pedido, Haruhiro provavelmente não teria se convencido a fazê-lo. Naquela época, ele deveria impedir Choco, convencê-la do contrário. Ele deveria ter dito a ela que era perigoso. Que seria imprudente. Que ela não podia ir.4
Se seu grupo não estivesse disposto a mudar de ideia, ela poderia simplesmente tê-los deixado. Ele deveria tê-la persuadido. Haruhiro deveria ter votado contra. Independente do quanto Ranta insistisse, esse era um “peixe” grande demais para seu “barco”. Muito além da conta. O risco era altíssimo.
Mas, na época, Haruhiro supôs que o risco não era tão alto, então votou a favor.
Eu sei, ele pensou amargamente. É fácil saber o jeito certo depois de fazer do jeito errado. Quando algo assim acontece, é natural pensar que tudo o que fiz foi um erro. Eu quero culpar alguém, mesmo que seja eu mesmo. Mesmo que isso seja inútil.
Não importa o que eu faça, Moguzo não vai voltar.
Haruhiro olhou para o céu.
Que horas são? Por volta das três horas da tarde. Está quente. Não sei o que dizer. É um dia ensolarado, Moguzo.
— Eu só preciso continuar olhando para frente, não é? — Haruhiro indagou. — Não há mais nada que eu possa fazer…
O céu está tão lindo que quase parece uma piada.
Haruhiro cobriu metade do rosto com a mão direita. Seus olhos doíam.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.