Capítulo 25 -“Discípula”
Narrado por Aisha
Se um dia eu imaginasse onde acabaria depois de atravessar aquela maldita fenda, a última coisa da minha lista seria: “em um quarto de pedra, em uma cidade feita de gelo, sendo chamada de aprendiz por um homem que literalmente fez o céu tremer com um gesto.”
Mas ali estava eu.
O quarto era… funcional. E isso era eu sendo gentil. Uma cama de pedra forrada com palha (espalhada, não arrumada), uma janela que deixava entrar mais vento do que luz, e um silêncio tão espesso que até meus pensamentos pareciam bater nas paredes e voltar.
Eu estava no templo superior. Não por mérito ou escolha, mas porque, depois do caos causado pelo Guardião com aquele pulso de mana, as famílias dos nobres de Altheria haviam corrido para separar as acomodações. Diziam que era mais seguro me deixar ali, junto de emissários e famílias que a cidade considerava importantes… mas em um quarto de serviçal.
Seguro… talvez. Confortável… nem um pouco.
E Ian? Esse, é claro, não poderia ficar ali. Depois de praticamente acordar metade de Altheria, a Rainha pessoalmente teve que o conduzir até a cidadela. Um gesto que soava tanto como honra quanto como precaução, mas na verdade foi simplesmente pela confusão causada pelas matriarcas falando que não iriam permitir uma arma dormisse perto de suas famílias. Eu ainda não tinha certeza se queriam mantê-lo protegido… ou vigiado. Acho que ambos.
Não sei o que me irritou mais, a cama que arranhava a pele ou o fato de Ian ter recebido um quarto digno de lenda. Tapeçarias nas paredes, lareira acesa, travesseiros de verdade a rainha disse que era “por segurança”. Claro. Como se ele fosse o tipo de homem que precisasse de guardas e travesseiros para sobreviver.
Joguei o manto no chão com um suspiro e me joguei sobre o colchão improvisado. Era pior do que parecia. A palha coçava. A pedra era gelada. E eu estava cansada demais, fedendo demais, para reclamar em voz alta.
Fechei os olhos. Só um segundo.
Foi quando senti um arrepio.
Não ouvi passos. Nenhum som sequer. Quando abri os olhos, ele estava lá.
Ian.
A silhueta dele recortava-se contra a luz pálida da lua na janela. Não bateu, não anunciou entrada, só… estava ali. Como um fantasma.
— Já ouviu falar em portas? — sussurrei, endireitando o corpo devagar.
— Muitas vezes. — respondeu ele, baixo, quase conspirando com a noite.
Pulou para dentro com a leveza de quem treinou isso vezes demais. Sentou-se no parapeito, braços cruzados, olhar sério.
— Precisamos conversar.
Ah, claro. O famoso “precisamos conversar”. Nada como um início tranquilizador.
— Deixa eu adivinhar… você veio me dizer que, além de aprendiz, eu também virei camareira do Guardião do Norte e preciso preparar seu café da manhã?
Ele riu. Um som breve, inesperado.
— Não. Vim saber como você está.
Eu pisquei. Isso… não era o que eu esperava.
— Como eu estou?
— Sim. Depois de ser congelada, levada como prisioneira, interrogada, ignorada… achei que era justo perguntar.
— Um pouco cansada. Um pouco confusa. — Respondi, sincera. — E… curiosa.
— Sobre?
— Sobre tudo. — Suspirei. — A cidade, a tal rainha, os guardiões, os sinais mágicos, os seus velhos amigos… e principalmente você.
Ele não respondeu logo. Olhou pela janela, como se buscasse as respostas lá fora.
— Não se preocupe. Você vai ter tempo de sobra para entender.
Hesitei. A pergunta que me rondava desde que fui deixada ali finalmente escapou:
— Por que eu estou no templo superior e você na cidadela?
Ele me olhou de volta, calmo.
— Porque você acha? Foi simplesmente pela confusão causada pelas matriarcas falando que não iriam permitir uma “arma” dormisse perto de suas famílias — ele coçou brevemente a parte de trás da cabeça — O templo superior abriga os que precisam ser vistos, não os que precisam ser temidos. É um lugar para famílias de prestígio, emissários estrangeiros, aprendizes talentosos… e, às vezes, para pessoas que ninguém sabe bem onde colocar. — Ele arqueou uma sobrancelha. — Você se encaixa nessa última categoria.
— Então me jogaram aqui por conveniência?
— Mais ou menos. — ele respondeu. — Já a cidadela… essa é a espinha dorsal da cidade. Além de conter a residência da Rainha possui arquivos antigos, salas onde decisões mudam destinos. a partir disso você já deve imaginar o tanto de proteção tem aquele lugar. É onde colocam alguém como eu um risco, mas também um recurso.
Fiquei em silêncio por alguns segundos, digerindo.
— Então a Rainha te levou para lá porque não podia deixar um Guardião solto nos corredores do templo?
Ele sorriu de canto.
— Provavelmente.
Suspirei, puxando o manto para mais perto de mim.
— Essa cidade parece uma engrenagem. Cada parte girando para manter o todo… mas sempre tem alguém esmagado no meio das rodas.
Ele inclinou a cabeça, me observando.
— Boa leitura. Você aprende rápido.
— Eu observo. — corrigi, mais ácida do que pretendia.
Ele desceu do parapeito, caminhou até a parede à minha frente e se encostou, braços cruzados.
— Por isso mesmo eu disse o que disse hoje. — Sua voz estava séria agora. — Se você quiser, posso treiná-la. Ensinar o que sei. Não só sobre mana ou luta, mas sobre carregar algo maior que você mesma.
Meu peito apertou.
— E se eu disser que não quero?
— A gente volta para estaca zero. — Ele deu de ombros. — Mas se disser que sim… sua vida vai mudar. Vai doer. Vai pesar. Vai te quebrar um pouco. E talvez… reconstrua algo melhor.
Ele ficou em silêncio por um momento, depois falou ainda mais baixo:
— Mas há algo que você precisa entender. Não fale para ninguém neste continente que você veio de Ignaris. Para eles, tudo que vem de além da barreira é corrupção. É sentença de morte.
Engoli em seco.
Ele colocou as mãos nos bolsos, como se fosse um aviso casual, mas a sombra nos olhos dele não deixava dúvidas: não era.
— Então se contar para alguém daqui… tem grandes chances de você ser morta.
O coração batia forte demais. Talvez fosse o jeito que ele dizia. Talvez fosse porque, pela primeira vez, eu percebia o peso real do que carregava comigo.
Não respondi.
Ele não cobrou. Apenas ficou ali, parado, me olhando como quem entende que algumas decisões precisam nascer no silêncio.
E então, sem mais palavras, voltou pela janela como tinha chegado.
Deixando para trás apenas a pergunta no ar.
E a decisão batendo no meu peito como um segundo coração.
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