Capítulo 31 - Olhares
Narrado por Aisha
Pedaços de pedras em brasas ainda cortavam o ar quando vi Ian avançar em passos firmes em direção aos dois desconhecidos.
Ou melhor… aos dois que ele chamava de velhos amigos.
O abraço entre eles não foi comum. Não era só o choque físico entre três guerreiros. Havia algo mais ali. Como se anos de silêncio, saudade e guerras esquecidas se juntassem num único gesto.
E eu, de canto, só conseguia pensar que esse homem que faz a cidade tremer tem amigos. Reais. Que o abraçam sem medo.
Lys, ao meu lado, não demorou a intervir.
— Dispensados. — disse, e a voz dela soou como lâmina afiada em direção aos soldados presentes.
Os soldados obedeceram de imediato. Mas o restante do Círculo… esses não se moveram. Permaneceram firmes, olhos duros, bocas prontas para criticar. E as criticas não demoraram para vir
.
Murmúrios começaram a se espalhar, como faíscas em palha seca. Alguns falavam da arena destruída, outros da tempestade que não deixara ninguém dormir, e alguns ainda lançavam olhares atravessados para Ian, como se ele fosse um criminoso e não um convidado da Rainha.
— E quanto à destruição parcial da arena? — Ydrine, uma das Matriarcas, ergueu a voz, ajeitando o manto como quem queria lembrar a todos a própria importância. — E agora a tempestade de raios na madrugada? Vai ignorar, Majestade?
Ian e os outros já estavam se aproximando quando a pergunta ecoou. Eu vi a mandíbula dele se mover, pronto para soltar alguma resposta atravessada. Mas antes que pudesse, Lys deu um passo à frente.
— O que aconteceu ontem foi necessário, Matriarca. — disse, firme. O tom dela não admitia réplica. Mas seus olhos… seus olhos brilhavam de um jeito estranho, como se a presença daqueles três mexesse até com ela. — Se não entende, é porque não compreendeu quem eles são… e do que são capazes.
— Acho que é você quem não entende, minha Rainha. — Ydrine falou, encarando os Guardiões com frieza. — Está permitindo que manchem Altheria simplesmente por terem poder.
— Sou obrigada a concordar. — A Matriarca Elenys completou, cruzando os braços com elegância. — Mal chegaram e nossa população já está em pânico.
Nenhum conselheiro ousou retrucar de imediato.
Foi Malrik, se aproximando de forma vagarosa de Lys, quem quebrou a tensão.
— Nesse caso… que tal irmos às apresentações formais? — disse, a voz carregada mais de prudência do que de reprovação.
Ian tomou a frente, o peso da decisão estampado nos ombros.
— Esta é Naira, Guardiã da Montanha.
Naira avançou um passo. A armadura de rochas que a cobria começou a se soltar em lascas, caindo uma a uma no chão até revelar o corpo por trás, uma mulher de traços firmes, próxima dos trinta anos. O cabelo preto, curto, ainda guardava poeira de terra; a pele bronzeada brilhava sob a luz das tochas; a roupa de couro reforçada parecia feita para suportar tanto batalha quanto viagem.
Quando falou, a voz dela veio primeiro como um trovão subterrâneo, grave, ecoando pelo salão como se fosse a própria montanha falando. Mas logo se firmou em um timbre humano:
— Guardiã Rumbra. Protetora das terras do sul. — Ela sacudiu o cabelo, espalhando areia e pequenas pedras como se a própria terra se recusasse a abandoná-la. — Talvez me conheçam mais por esse nome hoje em dia.
O impacto foi imediato. Os murmúrios cessaram, cortados como por lâmina invisível. Alguns conselheiros baixaram os olhos em respeito ou medo. O nome Rumbra não era apenas um título. Era uma cicatriz. Elandor ainda lembrava a última guerra, apesar de terem vencido contra os Rumbra eles ainda contava seus sobreviventes, e ver uma deles ali… viva… e ainda mais, guardiã… era como ver um mito materializado diante de todos.
Eu, Aisha, engoli em seco. Pela primeira vez desde que cheguei, vi até Lys hesitar. Só um instante, mas vi. Como se até ela, que raramente deixa algo transparecer, tivesse sido tomada pela brutalidade serena daquela presença.
E então Thamir pigarreou, quebrando o peso do silêncio como quem quebra o protocolo de propósito.
— Agora é minha vez? — ergueu a mão de leve, como se pedisse licença numa taberna, não numa corte. — Bom… formalmente, sou Thamir. Guardião do Oeste.
Fez uma pausa dramática, só para lançar um olhar preguiçoso em direção ao Círculo. Os olhos dele pararam rápido demais em Elenys para ser acaso.
— Mas lá fora… gostam mais de chamar de Espectro das Areias.
O murmúrio recomeçou, desta vez carregado de reconhecimento. o primeiro a falar foi Malrik
— Espectro das Areias. Eu já tinha ouvido histórias viajantes que juravam que um vulto de trovão cruzava os desertos, apagando bestas como quem apaga velas. — eu finalmente consegui perceber um pouco emoção em Malrik quando ele falou, talvez empolgação — Templos devastados onde só se encontravam rastros queimados. Caravanas salvas por alguém que ninguém conseguiu ver direito.
— Eu mesmo — Thamir falou com naturalidade, como se não fosse uma lenda viva… E agora esse alguém estava diante de nós, sorrindo como se fosse apenas um piadista de taverna.
Foi nesse instante que Elenys avançou. Ela não se deixou intimidar. Pelo contrário: estendeu a mão com a compostura exata de quem sabe o valor da sua posição.
— O Espectro das Areias. Guardiã Rumbra. — A voz dela era cristalina, mas havia um toque de curiosidade escondido. — Prazer em conhecê-los.
Thamir segurou a mão dela. O aperto foi firme, mas o sorriso enviesado que acompanhou o gesto carregava mais charme do que respeito.
— O prazer é todo meu… — disse ele, e demorou um segundo a mais olhando nos olhos dela do que o necessário. — Pode me chamar de Thamir..
Elenys não recuou. Sorriu de volta. Um sorriso calculado, como quem aceita um duelo que ainda vai acontecer, mas sem pressa.
Eu, ao lado de Lys, só consegui pensar: é sério que ele tá paquerando uma Matriarca no meio disso tudo?
Ian, por sua vez, apenas suspirou e passou a mão no rosto, com a resignação de quem já previa isso.
— Vocês não mudaram nada…
O Círculo os observavam como quem avalia armas perigosas com cautela, mas também como futuros aliados.
Eu, por outro lado, só conseguia encarar Ian.
Era estranho vê-lo ali, entre eles, e pensar: ele pertence a isso. Esse é o lugar dele. Não o de um soldado, não o de um prisioneiro, mas de algo maior. Muito maior.
— Precisamos conversar… nós cinco. — Ian disse de repente, olhando para mim também.
Cinco.
Meu coração deu um salto. Eu, no mesmo nível de Guardiões e de uma Rainha? Só podia ser uma piada.
Mas ninguém riu.
Seguimos para o salão lateral. As portas se fecharam atrás de nós, abafando os sons da cidade. O silêncio lá dentro era outro denso, cheio de expectativas.
Thamir se encostou na parede, braços cruzados, o olhar cansado mas atento.
— Então, Ian… o que está acontecendo?
Ian passou a mão no rosto, como quem busca palavras que não existem.
— Resumindo? O continente está prestes a ter problemas maiores do que qualquer um aqui imagina. — o olhar dele passou de Thamir para Naira, depois para Lys, e… para mim. Eu engoli em seco. — Vou entrar em detalhes quando Kael chegar. Até lá, vocês precisam descansar e recuperar forças.
Naira arqueou uma sobrancelha.
— Você nos chama como se o mundo estivesse prestes a ruir, e a primeira ordem é “descansar”?
Ian sorriu de lado.
— Sim. Porque vocês vão precisar de energia pra reclamar ainda mais quando eu contar.
Thamir soltou uma risada baixa, quase sem humor.
— Irmão… o quão ferrado a gente ta?
Ian respondeu de forma seca: — Muito, mas muito mesmo..
Eu fiquei ali, tentando processar.
Aquele salão, que parecia grande demais para reuniões comuns, de repente parecia pequeno demais para conter tanto poder. Tanto peso.
E no meio de tudo isso… eu, com minhas dúvidas, cicatrizes e perguntas.
Quem sou eu para estar no meio deles?…
Por um instante, me perguntei se não teria sido melhor nunca ter atravessado aquela fenda.
Mas então vi Ian.
E percebi que, gostasse ou não, eu já estava dentro desse círculo.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.